A Aliança do Corpo com a Alma


Vimos que é necessária a aliança da estrutura com o espírito do soneto, a fim de que este se realize totalmente.

Para a conquista de tal finalidade, lógico, não se conhecem leis absolutas, e sim princípios consagrados. Mas, convém se façam, a respeito, algumas observações, em favor da feitura, da essência e da melodia dos versos, para que corpo e alma se casem, formando um conúbio feliz.

A longa prática de lidar com sonetos e a ajuda de subsídios coletados em obras diversas nos levam a reunir algumas sugestões, que oferecemos aos leitores, a título de modesta colaboração.

Esses alvitres são válidos para qualquer composição poética, não nos cabendo, todavia, esquecer de que perfeições e defeitos, belezas e fealdades, sobressaem muito mais num poema curto e exigente, como é o soneto.
Vejamos nossas propostas:

1)  Escrever com naturalidade, evitando as palavras preciosas, rebuscadas, ou de difícil pronunciação. Compor os versos com palavras justas, apropriadas, proporcionando um efeito agradável na armação das estrofes. Os versos têm de ser ou parecer fluentes, nunca deixando revelar as. dificuldades de sua construção.

2)  Pureza de ritmo, ou seja, sonoridade e cadência. O ritmo é aquela sucessão repetida de sons tônicos e átonos: vozes fortes e fracas empregadas com intervalos regulares. O ritmo é o talismã da poesia. Escreveu Maritain que, "para a poesia clássica, ao contrário do que acontece com a poesia moderna, a música das palavras é de uma absoluta necessidade".

3)  Servindo-se de palavras comuns, arquitetar arranjos artísticos, fugindo às figuras e símbolos repisados e enfadonhos. Mesmo as expressões simples podem dotar os pensamentos de atraente roupagem poética.

4)  As boas imagens podem ser antigas, mas os versos devem ser modernos, embora com a forma clássica, no caso do soneto.
Imagens singelas, vitais, incisivas, harmoniosas, expressivas e, tanto quanto possível, inéditas. Devemos ter em mente que quase tudo aquilo que nós escrevemos, nossos antepassados já o fizeram. Apenas lhe damos uma "nova forma". Humberto de Campos achava que, "insensivelmente, podemos reproduzir imagens e sons que ficaram pousados em nossa imaginação e em nossa retina".

5)  Os versos devem conter: criação, dinamismo, engenho artístico, idéias e expressões — dignos da poesia pura. Lembremo-nos de que o mármore, apenas uma rocha, pode vir a ser pedra valiosa no templo; que a cor, em si, qualitativamente insignificante, proporciona à pintura belezas surpreendentes; que o ruído se transforma em som mavioso na música; e que a linguagem pode vestir a poesia de riquezas maravilhosas.

6)  É importante a disposição das palavras nos versos. Deve ser preferida, sempre, a ordem direta com as palavras em ordem inversa, fica prejudicado o efeito estético do verso. Além disso, pode, este método, dar a impressão de falta de recursos do poeta — em que pese tratar-se de um uso bastante empregado pelos parnasianos, muitas vezes até propositalmente.

7)  Esquivar-se da adjetivação excessiva. É preciso adjetivar com toda a propriedade e moderação.

8)  Usar, inteligentemente, os verbos, com os quais pode-se dar imprevisto e esplêndido meneio às imagens, tornando-as inesquecíveis.

9)  Afastar as dissonâncias ou quaisquer tipos de sons menos agradáveis: versos duros, versos sibilantes, cacofonia, monofonia; enfim, quaisquer vícios contra a pureza musical do verso.

10) Livrar-se dos versos frouxos, que se arrastam sem energia: hiato; acentos rítmicos fracos; falta de acentos rítmicos secundários; acento forte antes ou depois de acento rítmico.

11)  Arredar as licenças poéticas. Não precisamos entrar em detalhes a respeito desses defeitos, que o próprio uso diário da língua ensina a evitar ou, pelo menos, contornar. Por outro lado, há de se ter presente que licenças poéticas admitidas em Portugal podem não ser consideradas como tais no Brasil, e vice-versa.

12)  O poeta tem, necessariamente, de conhecer a própria língua, para se poupar, inclusive, do emprego de expressões forçadas que enfeiem seus poemas. Não só conhecê-la teoricamente, mas ler os clássicos, adquirir um bom, mas nunca presunçoso, vocabulário. Só depois de estudá-la, é que o poeta, se tiver, mesmo, vocação, estará em condições de se dedicar à arte do verso, com probabilidades de voar a grandes alturas. Alguém, talvez, possa querer desmentir-nos, citando poetas, grandes poetas, que, em geral, pela sua pouca idade, não tiveram tempo de se aprofundar nos domínios da cultura, mesmo como autodidatas. Mas, esses poetas foram exceções, honrosas exceções, para confirmação da regra.
A fim de fazer sobressair o primeiro plano, a pintura clássica conquistou a perspectiva. Na música, esse papel é exercido pela melodia. Pois bem: no poema, às palavras cabe tal conquista.

13)  As sílabas métricas, ou seja, os elementos sonoros do verso, não coincidem, muitas vezes, com as sílabas gramaticais. Por isso, é importante ter o maior cuidado ao fazer a elisão de dois vocábulos, bem como a fusão de vogais dentro da mesma palavra. A pronúncia usual em cada língua, ou no ambiente de cada povo, é que ensina a melhor maneira de dividir ou contar as sílabas métricas.

14)  Abandonar as rimas de sons muito comuns. Também as rimas extravagantes, o oposto das triviais. Não se deve esquecer de que as rimas difíceis sacrificam a emoção e, por isso, devem ser usadas com parcimônia.

15)  Evitar, ao máximo, as rimas que, tradicionalmente acasaladas, "se oferecem", de maneira quase fatal, privando o leitor ou o ouvinte daquela surpresa que tanto agrada na poesia. Evitar, por exemplo: olhos, abrolhos, escolhos; noivo, goivo; noite, açoite; tédio, remédio; etc.

16)  Utilizar o "enjambement" com sobriedade, atenção e habilidade, pois a falta de talento na aplicação desse recurso pode redundar em fracasso. Em capítulo à parte, voltaremos ao assunto.

17)  A homofonia (insistência da mesma vogal) é desagradável num verso, excetuando-se os casos em que a empregamos para certos efeitos procurados, principalmente para o de harmonia imitativa (sugestão musical àquilo que o verso exprime):

"Tíbios flautins finíssimos gritavam;
e, as curvas harpas de ouro acompanhando,
crótalos claros de metal cantavam".

  (Olavo Bilac)                          

Outro exemplo de homofonia aceitável, que Murilo Araujo cita, sem lhe declinar a autoria, é o seguinte verso, que nos dá a impressão de uma gota d'água contínua:

... fina, ferindo, fria, a fria cantaria".

18)  As consoantes insistentes também podem traduzir efeitos necessários e até apreciáveis, como nestes versos:
"Rápido o raio rútilo retalha" (Raimundo Correia).
"Basta a brava e brutal e bárbara beleza" (Martins Fontes).

ou como nestes conhecidíssimos versos de Cruz e Sousa (aliteração), em que o poeta procura imitar o rumor dos ventos, fazendo-se valer da figura denominada onomatopéia:

"Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. . .

19)  Se os versos devem ser eufônicos, o mesmo se deve exigir das rimas. As rimas próximas, que se alternam, que se entrelaçam, têm de oferecer "contraste" ou oposição de som. Do contrário, acarretam monotonia.

Dizem que Bilac não gostava dos elogios ao seu mais célebre soneto "OuvIr estrelas"... Talvez porque se descuidara ao escrever o primeiro terceto com rimas de sons parecidos (homofonia):

"Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
tem o que dizem, quando estão contigo?"

Aliás, nem Bocage, considerado um dos mais perfeitos sonetistas da língua, escapou a esse descuido:

"Ao crebro som do lúgubre instrumento
com tardo pé caminha o delinqüente;
um Deus consolador, um Deus clemente
lhe inspira, lhe vigora o sofrimento".

Também Camões cometeu, nesse particular, inúmeros pecados mortais. E iríamos muito longe se fôssemos apontar inadvertências semelhantes em poetas portugueses e brasileiros.

20)  Eximir-se de enxertar no verso consonâncias ou palavras inúteis, com o fim exclusivo de ajustar a métrica. É a chamada cunha, ou cavilha:

"Teu coração  um rubi
teu coração de menina... “
(Osório Duque Estrada)


"Por ti, meu pobre irmão   extinta palma
chora minha arte, pelos olhos da alma '
(Luís Carlos)

"Que seja o nosso amor — sidério mito!
o límpido turíbulo das dores. . . "
(Cruz e Sousa)

21)  Os versos "agudos" não têm a suavidade dos versos graves. É quase sempre monótona, e até insuportável, uma composição poética, notadamente um soneto, que só tenha versos agudos.
Tal processo seria aceitável nas composições de gênero burlesco, humorístico ou satírico.
Quanto aos versos "esdrúxulos", devem ser empregados com moderação. Quando há abuso, podem tornar-se ridículos.
Mas, os agudos e os esdrúxulos têm meios de conseguir efeitos propícios, quando combinados com os versos graves.

22)  Não consentir que sejam agudos os versos ímpares dos quartetos, principalmente quando são graves ou esdrúxulos os versos pares. Assim procedendo, o poeta preservará melhor a sonoridade e a naturalidade da estrofe.

23)  Nos decassílabos, preferir as estrofes "heterorrítmicas", ou seja, intercalar, habilmente, versos com a sexta sílaba tônica (decassílabo "heróico") e versos com a quarta e oitava sílabas tônicas (decassílabo "sáfico"). Essa maneira de agir impede a monotonia — aquela repetição fastidiosa que lembra a música de um realejo. Descarte-se, enfim, das estrofes "isorrítmicas": de versos que apresentam o mesmo esquema rítmico. Diga-se: não há esta obrigação. Apenas, questão de gosto.

24)  O verso alexandrino, entretanto, por ser o dodecassílabo clássico, o verdadeiro, o legítimo, não deve abdicar de sua origem, composto de dois versos de seis sílabas (hemistíquios).

25)  O poeta, ao expressar os seus sentimentos, não pode esquecer-se de que, no uso adequado das letras consoantes e vogais, principalmente destas, reside um dos segredos de seu êxito de artista do verso.
Deve jogar com três ou quatro, e até com as cinco vogais, em cada verso. Não repetir, se possível, no mesmo verso, as vogais das pausas métricas.
Esta prática, habilidosamente empregada, proporciona a música que se faz necessária, aquele ondular que é a razão mesma dos versos e das estrofes.
Os melhores versos são aqueles em que existe maior variedade de vogais, como:

"Rugindo estoura o mar em brutas serras".
"Nize formosa como as garças pura".


26)  É imprescindível que as expressões estejam coerentes com as idéias, de modo que umas e outras tenham correlações exatas, caminhando par a par, até atingirem o alvo pretendido, que é, inclusive, o sonhado "fecho de ouro".
Massaud Moisés interpreta esta reflexão assim: "O soneto camoniano, em geral, descreve um percurso perfeito, fechado, da primeira à última palavra, formando uma unidade plena, um universo completo, sem palavras supérfluas ou em falta". (....) "Dir-se-ia que, em se tratando do soneto camoniano e do soneto tradicional, o poeta objetiva traduzir todo um mundo de imagens e de idéias, que lhe povoam o espírito, numa conclusão final, num remate, o "fecho de ouro". Quase se diria que o soneto se constrói, tendo em vista culminar no conceito implícito na "chave de ouro" (....) "Na verdade, o conceito "fecha" a composição e dá razão de ser a todas as suas partes, a todos os seus conteúdos parciais contidos nos versos anteriores. O conceito "justifica" e explica" a estrutura e a coerência do soneto, tornando-o um corpo harmônico de quatro partes". (....) " “Cada palavra é uma ilha, de forma que o poema todo seria um arquipélago mantido coeso pelo fecho de ouro (pretendido), como se este fosse a água que circula por entre as ilhas, ligando-as em vez de separá-las".

27)  Falamos, páginas atrás, em forma e imaginação. Mas, a respeito, não podemos ignorar alguns conselhos dados por Júlio Dantas:
"Em geral, os poetas ingênuos, confiando nos acasos da inspiração e da rima, começam a escrever os seus versos antes de os ter pensado. Nas composições soltas não tem isso maior importância; no soneto, porém, pequeno poema de dimensões restritas e de tipo imutável, é preciso aproveitar bem os quatorze versos de que se dispõe, dizendo "tudo" o que tem de se dizer, mas "só" o que é indispensável dizer-se. Portanto (ele se dirigia a uma senhora que lhe pedira para ensiná-la a fazer sonetos), V. Exa. tem de pensar bem o seu soneto antes de principiar a escrevê-lo. São impossíveis as divagações e a multiplicidade de motivos dentro do soneto clássico. Temos de limitar-nos a "uma só" idéia, a "um só" motivo — a "um só" conceito" (....)" Se na poesia há uma parte espiritual, transcendente — divina, se quiser — insusceptível de transmitir-se ou de apreender-se, há outra que é mero ofício, que é puramente mecânica e material, de que não prescinde nem mesmo a arte mais pessoal e mais livre, e que, por conseguinte, se pode ensinar, como todo e qualquer sistema de processos técnicos capitalizados pela tradição. A alma dos versos não se transmite, é evidente; mas o seu corpo — a versificação — aprende-se sem esforço...

28)  Continua Júlio Dantas:
"A maior dificuldade do soneto está nas rimas iguais dos quartetos. É preciso que essas rimas sejam muito bem combinadas, muito bem escolhidas dentro das possibilidades da expressão verbal do conceito, para que não se sinta o esforço do poeta e os versos corram límpidos, naturais, fluentes, sem transposições, sem divagações. cingindo sempre de perto a linha vertebral do assunto. É, em geral, no segundo quarteto que os poetas inexperientes fraquejam, por que não se lembram, ao rimar o primeiro, que têm de procurar rimas iguais para o segundo; e, uma vez colocados perante as dificuldades, resolvem-nas como podem, tateando, perdendo terreno, lançando mão das rimas forçadas, afastando-se da idéia diretriz. O segundo quarteto é a pedra de toque dos sonetistas; convém pensar sempre nele, ao escrever o primeiro".

29)  Júlio Dantas dá muitos outros conselhos, que não vêm ao caso repetir, pois já abordamos temas idênticos, aliás coincidentes com a palavra do mestre. O único ponto em que nos permitimos divergir dele — e lamentamos muito — é aquele relativo à "chave de ouro". Diz o poeta: ... "Chegou então o momento de fazer o último verso do soneto, que deve, em rigor, ser o primeiro a pensar-se e a escrever-se. Com efeito, minha senhora, os sonetos valem o que valer o seu último verso, e são bons ou maus conforme esse verso for, desde o início da composição, bem ou mal preparado. Tudo depende dele". Mas, logo a seguir, o excelso poeta quase se desdiz: "Não basta que esse verso seja tecnicamente perfeito; ele deve ser o "mot de la fin", a síntese, o "achado", a conclusão ao mesmo tempo fácil e brilhante, lógica e imprevista, inspirada e exata do pensamento que se desenvolveu".

Ora já anotamos que, para se fazer um soneto, qualquer diretriz é cabível. Esta, de se executar um soneto baseado na "chave de ouro" antecipadamente escrita, não serve para os iniciantes. Poderá servir e, mesmo assim, com rendimento discutível, para os poetas tarimbados, de grande talento e férteis em técnica e habilidade.

Não queremos terminar este item sem, antes, transcrever as últimas palavras de sua carta, acima citada:
"Há no soneto qualquer coisa de feminino — que o torna 'tão predileto das mulheres. Como os camafeus romanos, precisa de ser cinzelado lenta e pacientemente. O gênio —      sabe quem o disse? — não é senão uma longa paciência; e poucas composições precisam tanto dela como este pequeno poema que pretende fechar o pensamento dentro de quatorze versos — quer dizer, o infinito dentro de uma folha de rosa".

30)  Por fim e resumindo: — O poeta, embora admita uma premonição mental, no sentido de armar, tecer e concluir o soneto, deve começá-lo pelo primeiro verso, levando-o adiante, paulatina e engenhosamente. E, para que o plano decorra bem, terá de vencer as resistências, com habilidade, e captar o fluxo inspirador dos momentos preciosos, que podem desviar-se de um espírito mal concentrado. Todo um mundo de sensibilidades precisa caber num mínimo de palavras não forçadas, mas surgidas naturalmente. O artista, no meneio das imagens que, por certo, borbulham na sua memória, encerra os dois quartetos. É a exposição da idéia, um passo longo no caminho do êxito. E, ao iniciar o primeiro terceto, antevendo o desfecho do soneto, o poeta já poderá ir pensando num final feliz e até numa "chave de ouro". Mas esta só deverá ser escrita quando o clímax do pensamento coincidir com o daquelas palavras insubstituíveis que, afinal, serão lançadas ao papel, no último verso.

O soneto não é mais, hoje, "um pensamento de ouro num cárcere de aço", como, na segunda década deste século, lembraram Olavo Bilac e Guimarães Passos ("Tratado de Versificação").
Apesar de suas tradicionais regras de estrutura — que precisam e devem ser respeitadas — o soneto já tem, atualmente, uma certa liberdade, embora controlada. Foi, talvez, por isso, que os poetas voltaram a cultivá-lo com uma familiaridade quase igual àquela dos seus melhores tempos.
Ele tem corpo, mas, também, tem alma! Corpo e alma eternos, como a própria poesia!







(Das páginas 111 a 119 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)




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