Glória Marreiros

Maria da Glória Duarte Marreiros José
Monchique, Portugal


AFETOS
Glória Marreiros

Perdi os afetos que tinha no peito,
no dia em que as magas fizeram bailado
na cinza da noite, calando o meu brado
no vinco da colcha que estava em meu leito.

Deitei-me na cama, vazia, sem jeito.
Olhei para o céu e revi um telhado
trazendo lembranças dum grande silvado
ferindo-me a face, onde agora me deito.

Talvez, amanhã, ao romper da aurora,
eu tinja mil noites, sombrias, de outrora,
com tinta dos versos que não foram lidos…

Depois, entre flores, irei pelo mundo,
levando nos braços um cesto bem fundo,
Pra pôr os afetos que foram perdidos.



AQUILO QUE SOU
Glória Marreiros
     
Eu sou a magia do teu pensamento,
quimera que trazes no peito escondida,
prefácio dum livro, falando da vida
que doiras ao sol e refrescas no vento.

Eu sou a visão que te ampara, em tormento,
levanta teu ego com força sentida
e sou a mensagem, por ti sempre lida,
na folha de outono deixada ao relento.

Agora que sabes aquilo que sou,
a força que emito no tudo que dou,
avança, sem medo, na tua jornada.

Depois de trilhares teu doce caminho,
com penas de pena alvora-me um ninho
e deita-me lá, porque vivo sem nada.


   
TECENDO A ESPERANÇA
Glória Marreiros

Amor, eu pensei em tecer a esperança,
fazendo com ela um xaile macio.
Depois enrolar-te em cadilhos de brio,
tal qual tua mãe te fazia, em criança.

E nesta corrida, no tempo que avança,
apenas à tarde recolho um só fio.
Preciso de tantos cobrindo esse frio
que sentes na alma, que aspira bonança.

Não temas o gelo da vida e dos anos!
Há portos de abrigo que abrigam os planos,
num cais mais seguro, com muitos faróis.

Tecer a esperança, num xaile bem quente,
nem sempre é possível. Amor, segue em frente
e vem aquecer-te em meus alvos lençóis.



TERRA DA MINHA VIDA
Glória Marreiros

Recordo aqueles troncos imponentes,
na serra onde nasci e fui menina.
E nem sequer sonhava com a sina
traçada sobre linhas resistentes.

Fui ave nas ramadas mais ardentes
e encostas maquilhadas de neblina.
Ouvi vozes de brisa calma e fina
falar-me de saudades já dormentes.

Toquei nas rosas bravas das roseiras
que trepam por memórias e ladeiras,
deixando antigos cheiros no meu rosto.

E vejo nesta terra mil peugadas
dos beijos que não dei, nas madrugadas
suspensas na agonia do sol-posto.



EMOÇÕES
Glória Marreiros

Sou prado sem flores, por causa do Estio
do tempo passado, que tudo enrugou.
Fiquei com mazelas e o sonho tombou
nos braços dos anos, sem água no rio.

Perdi as estrelas dum céu fugidio
da luz dos meus olhos, daquilo que sou.
Bebi os absintos, que a mágoa secou
em talhas bem cheias de grande vazio.

Voltei ao meu prado, mas foi por acaso.
Vi terra lavrada num campo mais raso
e aromas trazidos no rosto dos ventos.

As pingas da chuva trouxeram-me a calma,
deixaram sair emoções da minha alma
guardadas na caixa dos meus sentimentos.



FALTA DE ESPAÇO
Glória Marreiros

Tu nunca me leste, não sabes quem sou.
Nem tentas saber os anseios que trago
no livro, onde cito carências de afago
que o tempo de chuva, jamais saciou.

Da folha perfeita, o teu peito apagou
a prosa escrita num dia tão mago.
Fiquei a chorar, reparando que és vago,
por nunca subires degraus onde estou.

Agora desisto. Já nada me espera
na vida, onde foste madrasta severa,
deixando os atilhos, levando-me o laço.

A chama dos sonhos, agora não arde.
Não tragas o livro, repara que é tarde,
e nele não entras por falta de espaço!



BEIJOS PERDIDOS
Glória Marreiros

Perdi tantos beijos no tempo passado,
por ser educada em severa doutrina.
Meus olhos brilhantes, olhar de felina,
perderam o verde, temendo o pecado.

Levaram-me as saias de seda e brocado.
Ficou o puído da velha opalina
cobrindo o meu corpo, marcando uma sina,
até que passasse tão grande tornado.

Depois de acalmarem os ventos agrestes,
fui ver os valados de amoras silvestres
onde eu escondi o diário sem lei.

Nas folhas rasgadas vi sonhos aos molhos,
e o tom de azeitona que tinha os meus olhos,
mas beijos perdidos jamais encontrei.



OS MEUS LIVROS
Glória Marreiros

Tu nunca pegaste nos livros que tenho
e nunca mediste a lonjura do grito
saído do peito, em rosas escrito,
mostrando o que sou, sem saber donde venho.

Reclamas, se escrevo com gosto e empenho,
não bebes licores do mundo onde habito,
desvias os olhos do céu onde fito
estrelas, que emitem meu dom e engenho.

A mesa tem lápis, canetas, papéis,
rascunhos torcidos em forma de anéis
e tuas ausências em noites de frio.

Um dia, hás de ler minha escrita rimada,
sentado no banco onde estive sentada,
chorando tristezas por vê-lo vazio.



O NOSSO ABRAÇO
Glória Marreiros

Caminho sem destino, junto ao mar,
com mil recordações no pensamento,
mas sei que o nosso pão não tem fermento
e minga em cada noite sem luar.

Gaivotas seguem loucas o seu par,
com grasnos onde mostram seu intento.
São sons não musicados, mas de alento
à minha alma perdida, a naufragar…

Queria ver-te agora. É impossível.
Tão pouco nos meus sonhos és visível,
há sempre escuridão no meu espaço.

Cheguei com muito custo à nossa gruta.
Olhei a rocha grande e resoluta
e vi lá esculpido o nosso abraço.



LEVEDAÇÃO
Glória Marreiros

Cantei os meus versos ainda menina,
no tempo em que o tempo passava sem horas
e a vida era quieta, não tinha demoras,
porque eu não sabia o que era a rotina.

Os ventos agrestes trouxeram-me a sina
que lia à lareira comendo as amoras
do verão que passava, deixando as esporas
cravadas na alma, por falsa doutrina.

A chuva caía deixando os regatos
causar, nas encostas, os seus desacatos
em rios pequenos, formosos, dispersos.

As mós do passado torturam sem dó
memórias e sonhos desfeitos em pó,
que amasso e levedam saudades e versos.



PARTISTE
Glória Marreiros

Recordo a toda a hora com paixão
a tarde em que pousei este meu rosto
nos braços do teu peito de sol-posto,
em cachos de vislumbre e de emoção.

E foi naquela tarde de verão,
tecida de alegrias e desgosto,
dum junho parecido com agosto,
que fiz a despedida à tentação.

Levaste beijos dados à socapa.
Vencemos, sem querer, a grande etapa
de sermos um só corpo, em pensamento.

Chamaram, de outro lado, e tu partiste.
Talvez eu nunca saiba o que sentiste,
mas eu senti tombar o firmamento.



CEREJA
Glória Marreiros
  
Eu sou a cereja vermelha e madura
que vai nos teus braços em cesto de vime.
E junto das outras, há algo que oprime
aroma sentido, que em ti não perdura.

Tentei desviar-me e suster a doçura
da carne que tenho e que julgas um crime.
Amor, tu não vez que meu âmbar redime
orgias secretas da tua clausura.

Colheste-me em dia que o tempo não quis.
deixas-te o pomar a gemer, infeliz,
trindades da hora, que nunca me invoca.

Cereja num cesto é somente o que sou.
Mas tenho esperança que nunca te dou
o dócil sentir do meu sumo na boca.



CHEGA O ANO NOVO
Glória Marreiros

Caminha o Novo Ano tão depressa.
A festa já o espera em plena rua.
O fogo-de-artifício esconde a lua
e deixa a natureza quase avessa.

Há copos tilintando na travessa
da vida, que se apraz e não recua.
Os brindes são silêncio que acentua
os laivos de alegria e de promessa.

Folias que se avultam neste povo,
que gasta o que não tem, por algo novo,
na busca de encontrar uma vitória.

Sozinho vai partir o Ano Velho.
Ninguém escuta já o seu conselho,
Que os velhos, para os novos, são história.



RETRATOS
Glória Marreiros

Não guardo retratos de antigos parentes;
de avós exibindo seus ricos peitilhos
em renda e veludo, com laços, atilhos,
e lenços de seda em lapelas, pendentes.

Não tenho lembrança de ouradas correntes
sustendo relógios que marcam os trilhos
de vidas faustosas, sem grandes sarilhos,
e mesas com sonhos bem fritos e quentes.

Recordo mil rugas em caras felizes,
mãos cheias de nada afagando petizes
e broa de milho cozida à lareira.

Mas trago na mente a distinta figura
do pai do meu pai, desbotado, em moldura,
num velho retrato tirado na feira.



VERÕES
Glória Marreiros

O campo tremia num sol feito brasa,
no tempo em que eu era mocinha pequena.
Verões tão antigos são eco que ordena
às heras que enlacem os cantos da casa.

Ao fundo a cozinha, hoje é campa rasa,
guardava a infusa de barro, morena,
com água fresquinha da fonte serena,
que sinto correr no meu peito, e não vaza.

À noite, na rua, contava as estrelas,
Ouvindo as histórias, tentando detê-las,
na voz, do meu pai, fatigada mas doce.

Relembro esses anos na dor que me invade,
sentindo o calor dos verões da saudade,
em pedras de gelo que o tempo me trouxe.



PERDI OS RASCUNHOS
Glória Marreiros

Deixei sobre a mesa imensos rascunhos,
do livro que tenta sorrir no papel.
Contém alguns textos com laivos de fel,
mas logo os cobri com aroma de abrunhos.

Fiz tudo sem pressa, mas há gatafunhos
a ser corrigidos, em noites de mel.
Armei um bom maço, que atei com cordel,
e fui à procura de mais testemunhos.

Cheguei numa tarde pintada de frio.
Não vi os rascunhos. Só vi o vazio
que sempre abraçaste, sem crer no meu rogo.

Já sei que pegaste nos sonhos que eu tinha
e, sem interesse por ler uma linha,
traçaste o cordel e puseste-os no fogo



O VENTO
Glória Marreiros

O vento zumbia por entre as ranhuras
das tábuas lascadas das velhas janelas,
deixando em meu corpo tormentos, sequelas
e a boca sem beijos gemendo securas.

Revi tempestades. Senti as agruras
do tempo passado, sem cotos de velas
a pôr esperança nos restos das telas
que foram pintadas com tons de amarguras.

O vento não tinha os aromas do funcho,
trazia a poeira que deixa o caruncho
nos sonhos parados por falta de trilhos.

Mas eu fui embora e levei os meus ais,
lembrando os afetos que tive dos pais,
a  ver se encontrava o carinho dos filhos.



VENDENDO ESPERANÇAS
Glória Marreiros

Eu vendo esperanças, à noite, ao relento,
e faço um bom preço, acessível a todos.
Já pus na bancada os anúncios, engodos,
Prá venda ser feita sem grande argumento.

A arte, o negócio foi sempre o talento
que fez eu sair da penumbra dos lodos.
Há gentes gostando de ver os meus modos,
vendendo sem ter um real vencimento.

Chegou-se à bancada um pobre, faminto,
sem ter onde pôr os atilhos do cinto
nas calças sem cós, suplicando mudanças.

Olhei-o no rosto. Revi-me na era
do tempo passado, sem ter primavera,
perdi o negócio, mas dei-lhe esperanças.



CESTO VAZIO (1)
Glória Marreiros

Colhi os sorrisos que a vida me deu
Em cesto de afetos, com tons de alvorada.
Depois, fui com eles, em longa jornada,
Por vales e montes, num louco apogeu.

Vi pedras caídas nas noites de breu
E choros vermelhos em boca calada,
Caminhos cortados, com muita ramada,
E ninhos sem aves, perdidos, no céu.

Senti  que esses vultos que vi no caminho
Olhavam meu cesto, queriam carinho,
Que desse aos desejos os sonhos de outrora.

Peguei nos sorrisos e dei-os a todos,
Saíram, contentes, do fundo dos lodos.
De cesto vazio, feliz, fui-me embora.



CESTO VAZIO (2)
Glória Marreiros

Enchi o meu cesto com gotas de orvalho,
tapei-o com restos da prata da lua.
Depois caminhei na calçada da rua,
sentindo a certeza daquilo que valho.

Cansada de andar desviei por atalho
de terra batida, onde o pó se acentua.
As sombras deixaram a noite tão nua
por falta de estrelas com tons de agasalho.

Ouvi um murmúrio, olhei em redor,
vi uma criança carente de amor,
despida de afeto, tremendo de frio.

Peguei no orvalho teci doce manto.
Depus na criança, depois vi um santo
sorrindo pró cesto que estava vazio.



CESTO VAZIO (3)
Glória Marreiros

Enchi o meu cesto com beijos de amor
e fui para a feira fazer um leilão.
Naquela algazarra perdeu-se o pregão,
ficou o meu eco exalando clamor.

Os beijos queriam mostrar o calor,
nas bocas famintas de alguma ilusão.
Propunham volúpias com senso e razão,
deixando nos corpos suave tremor.

Eu fui leiloando com ritmo e bravura,
na espera de ter comprador à altura,
mas só o desdém do fracasso sorrio.

Fui dando os meus beijos gostosos, ardentes,
colaram-se a bocas que estavam carentes
e eu vi-me no cesto tombado e vazio.


               
DE MÃO ESTENDIDA
Glória Marreiros

De mão estendida, pedi uma esmola.
Passaste de lado, fingindo não ver
momentos de outrora, envolvendo prazer,
e agora escondidos nas tiras da gola.

Lembrei-me do tempo passado na escola.
Tu eras franzino, sem ter que comer.
Eu dava-te pão, ensinava-te a ler
e punha os meus sonhos na tua sacola.

Passaram-se os anos, gemeram verões
desfeitos no gelo, sem ter ilusões,
deixando apagar os mais débeis pavios.

A vida me trouxe uma fútil madrasta.
A ti deu-te mãe. Hoje passas de pasta
bem cheia de mundos, mas todos vazios.



DESEJO INFINITO
Glória Marreiros

Tu sabes o que são os meus poemas,
as vozes das palavras que não digo,
dias com teto e pão, mas sem abrigo,
correr e bater palmas, com algemas,

sentir dor e chorar sem ter problemas,
ser viva mas sentir-me num jazigo,
ter oiro e ser mais pobre que um mendigo,
nada ter e só ver mil diademas?...

Tu não sabes, amor, o que é sentir
este ser e não ser, este carpir
a rir às gargalhadas, sem ter dono.

Os meus poemas são um grito mudo,
um desejo infinito de ter tudo,
até a primavera, em pleno outono.



AGOSTO
Glória Marreiros

Ainda é agosto. Há lembranças na cesta
e fartas merendas untadas de aprumo.
A doce alfazema deixou no meu sumo
aroma e sabor, a lembrar uma festa.

Estendo a toalha no chão, onde resta
saudades escritas, num breve resumo,
às vezes cobertas por riscos de fumo
limando o destino, aguçando uma aresta.

Os dois nos sentámos na pedra dos anos;
e sobre os joelhos pousámos os panos
bordados com brilhos que temos nos olhos.

Colhemos amoras, fizemos licor.
Lembrando alegrias, distâncias e dor,
dos grandes amores que vencem escolhos.


                                                                 
PARTIMOS
Glória Marreiros

Chegaste na hora que eu ia partir.
Trazias quimeras fechadas na mão
e sonhos trepando em sublime ilusão,
p’ra pôr sobre a mesa do nosso porvir.

Trazias sorrisos de estrelas a rir
no céu cor de prata do teu coração.
No cheiro dos goivos plantaste a razão
que põe nas ausências discreto polir.

Fiquei  indecisa  perante o banquete,
mas tinha comprado, a chorar, o bilhete
do trem mais veloz, que não volta, depois…

Subi um degrau e senti minha idade,
olhei nos teus olhos e vi a saudade,
peguei-te na mão e partimos os dois.
                                         

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