Versos isolados
Há
versos que, destacados do conjunto estrófico, têm sentido completo e encerram,
em sua síntese, um vasto mundo de beleza.
Cada
qual como se fosse um "monóstico", ou seja, estância de um verso.
São versos
que, isolados, constituem, só por si, pequenos poemas, pela sua idéia autônoma
e pela sua riqueza artística.
São
aqueles a que os franceses dão o nome de "vers —médailles".
Habitualmente,
são de ritmo agradável e de fulgurante conteúdo musical, além de conterem
profundidade de pensamento e momentos de eternidade no reino da poesia.
Um
verso, às vezes, é o suficiente para revelar um poeta. Um verso bonito é um
pequenino diamante. Canta no ouvido, ao mesmo tempo em que fulge nos olhos.
Não
apenas a título de curiosidade, mas, também, para que os interessados melhor se
inteirem daquilo que diremos, logo adiante, sobre o "enjambement" —
oferecemos aos leitores alguns (apenas cem) dos setecentos e tantos versos
dessa natureza, escritos por poetas brasileiros e portugueses, e colhidos, sem
grandes pretensões, na transcorrência do nosso trabalho de pesquisa.
De
Augusto de Lima:
"Sangrei meus lábios de beijar
quimeras".
De Olavo Bilac:
"Quem ama inventa as penas em que
vive!"
" E eu tenho amado tanto! E não
conheço o Amor!"
"Cada alma é um mundo à parte em cada
peito".
"A saudade, presença dos
ausentes".
De Hermes Fontes:
"Na floresta da Vida, eu sou um
triste arbusto".
"Um filho que tem mãe — tem todos os parentes".
De Da Costa e Silva:
"Saudade! Asa de dor do
Pensamento!"
"Já cansei de sofrer! Vou agora
sonhar...
De Moacir de Almeida:
"Um frêmito sacode os nervos das
paisagens".
"Ouve os passos de Deus na sombra das
tormentas".
"Porque a aurora boreal é a febre das
geleiras".
''Morria, rubramente, uma chama, de
joelhos".
De Humberto de Campos:
"Sobre a grama orvalhada há rugidos
de seda".
De Martins Fontes:
"Desce o carro do sol por trás das cordilheiras".
De Olegário Mariano:
"Quero iludir-me para ser feliz. . . ".
"Envelheci três anos em três dias!".
"A árvore é linda, mas a sombra é triste".
"Disse um nome baixinho... e não pôde falar".
"Os que te amaram te esqueceram. Menos eu".
De Benedita de Mello:
"Agora, sou teu sonho que morreu...
" ... E toda a dor que existe dói em
mim".
De Luís Carlos:
"0 bem é uma subida que não
cansa".
"Que fora o claro se não fora o
escuro?"
"Para vencer o mar bastam dois
remos".
De Gonçalves Crespo:
" Pode nascer ao pé da forca um lírio
branco".
De Vicente de Carvalho:
"O mar é para mim como o Céu para um
crente"
"Relampejam fuzis nos olhos de um
jaguar".
"Beijas-me ainda, e já não sou feliz”.
De Nilo Bruzzi:
"Eu também fui Romeu, tive Julietas...”
"Serei o triste mais feliz do
mundo".
"Dei-te tudo o que tinha, tudo apenas...”
De Maciel Monteiro:
"Quem pode amar-te, sem morrer de
amores?"
De Coelho Neto:
"Ser mãe é padecer num paraíso".
De Jaime Guimarães:
"Odiá-la, sim, mas esquecê-la,
nunca!"
De Alfredo de Assis:
"No sorriso do velho há quase um
pranto".
De Max Vasconcelos:
"Sino, boca do Além falando à Vida...”
De Judas Isgorogota:
"Pobrezinha da mãe que teve um filho
poeta!"
De Florbela Espanca:
De Luiz Delfino:
"Sob as urzes queimadas nascem rosas...”
"Vivo sozinha em meu castelo: a Dor... "
"O silêncio, em redor, é uma asa quieta..."
"Uma torre ergue ao céu um grito agudo...”
De Luiz Delfino:
"Estava no caixão, como num
leito...".
"Tinha a idade da aurora essa
menina".
De Onestaldo de Pennafort:
"Felicidade, não tens nada para
mim?"
"Há uma estrela no céu, que te
conhece...”
De Raul Machado:
"Noite. O açude lá embaixo é um
espelho de prata".
"O ouro do sol alegra-me a
pobreza".
De Heitor Lima:
"Rosas, vinde contar o que vos diz a
abelha!"
De Jonathas Serrano:
"Bendito o canto que adormece as
dores!"
De Aristêo Seixas:
"Se mostro desamar-te, é por
ciúme".
De Ana Amélia:
"A águia não chega ao sol: a Idéia
sobe além".
"Eu não vi só a estátua, achei-lhe o
fogo d'alma".
De Luiz Edmundo:
"Há uma lágrima, sempre, atenta em
nossos olhos...”
" Fez da boca uma rosa e ma ofertou
sorrindo".
De Corrêa Junior:
"Nossa Felicidade está doente...”.
"Florir e não achar quem nos colha
uma flor...”
De Pascoal Carlos Magno:
"Custa tão pouco ter uma esperança...”.
De Filgueiras Lima:
" Garças desdobram asas de
cambraia".
De Virgínia Vitorino:
"Tens lágrimas nos olhos e não
choras".
De Alberto de Oliveira:
"Vi-te em leito de sangue, entre os
linhos da aurora".
"E dava-me a beber no rio azul do
amor".
"Quem cansou foi a sombra que o
seguia”.
"O caminho morreu... Até os caminhos
morrem!"
De Luiz Guimarães Junior:
"Chorava em cada canto uma saudade...”
"Sinto o meu coração fugir
voando".
De Guimarães Passos:
"Subo às janelas dos teus lindos
olhos".
"Guarda espinhos traidores, como a
rosa".
De Raimundo Correia:
"Na alma do poeta voam
beija-flores".
Paz entre os homens! Os vencidos dormem...”
De Orestes Barbosa:
"Tu pisavas os astros, distraída...”
Lua — mentira branca dos espaços...”
"Minha vida era um palco
iluminado".
De Antônio Corrêa de Oliveira:
"E a ti descendo, eu nunca subi
tanto!"
De Guerra Junqueiro:
"O Sol bebeu de um trago as límpidas
correntes".
"Jesus, quase a expirar, cheio de
dor, sorria".
De Félix Pacheco:
"São sempre iguais na idade os deuses
e as quimeras".
"Unicamente Deus e o Poeta são
eternos".
De Gomes Leite:
"Achas-me triste... e eu sempre fui
mais triste...”
De Prado Kelly:
"Continuas a amar, eu começo a
esquecer".
De Menotti Del Picchia:
"Não amar é sofrer; amar, é sofrer
mais!".
"Coqueiro! Eu te compreendo o sonho
inatingível".
De Elmo Elton:
"Traz nos olhos dois pingos de
cascata".
De Augusto dos Anjos:
"Quebrei a imagem dos meus próprios
sonhos!"
"A mão que afaga é a mesma que
apedreja!".
"Deste-me fogo quando eu tinha
sede".
De Guilherme de Almeida:
"Mas, que importa a saudade, se há a
esperança?"
"Não queres que eu te beije! E o
beijo é a própria vida!"
"A Tarde morre, suavemente, como um
Poeta".
De Júlio Dantas:
"Em como é diferente o amor em
Portugal!"
"Era feia, talvez, mas Deus achou-a
linda..."
De Mário Quintana:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só
isto!"
De Nilo Aparecida Pinto:
"Olha os lírios do campo — que lição!"
"Mudas em paina o peso do meu
fardo".
De Gentil Fernando de Castro:
"Toda saudade é uma segunda vida..."
De Raul de Leoni:
"Tens legendas pagãs nas carnes
claras".
"Poupa ao prazer dos homens o teu
drama!"
De Adelmar Tavares:
"Deixas gorjeios de canários soltos...”
De Djalma Andrade:
"Que eu seja bom sem parecer que o
sou!"
De Paulo Eiró:
"Ó que velhice é a minha
mocidade!"
O "enjambement"
Se
fôssemos considerar versos dessa natureza, não isoladamente, mas integrando um
mesmo poema, verificaríamos que sua prática incessante poderia, e até deveria,
acarretar, no mínimo, uma inconveniência, ou seja: a sucessão de unidades
rítmicas idênticas, ocorrida pelo destaque inevitável das rimas e agravada pela
pausa obrigatória no fim de cada verso.
Ressalte-se
que o verso não pode ter, invariavelmente, uma autonomia completa. O seu final
nem sempre deve encerrar, de vez, o pensamento, salvo no momento propício. De
outro lado, a rima tem de subsistir na poesia clássica.
Que
fazer, então, para resolver o impasse?
Tomando-se
por base o princípio de que cada estrofe é um grupamento ou um conjunto que se
distingue pelo seu todo harmonioso, tornava-se necessário fugir à monotonia
certamente criada pela repetição dos versos completos. Para preservar a beleza
dos versos, estes devem ter, em geral, uma continuidade. E a saída não podia
ser outra senão a idéia de se fazer o desbordamento de um verso para o verso
seguinte, ou, no mínimo, para a primeira parte do verso seguinte, atenuando-se,
como medida óbvia, os efeitos da consonância.
Assim
foi feito, sob a inspiração do poeta Verrier, na Idade Média, quando se
inventou o chamado "enjambement". É um artifício, segundo o qual os
versos passam a interpenetrar-se, proporcionando maior movimentação dentro da
estrofe. Deve-se levar em conta que o emprego do "enjambement"
absorve, praticamente, a rima, e que o enfraquecimento desta tem de ser
disfarçado com habilidade.
Conforme
lembra Mello Nóbrega, o "enjambement" apareceu, "embora sem
intuitos libertários, em "Le Roman de la Rose", no século XVI".
É de um poeta anônimo.
Para
substituírem a palavra francesa "enjambement", foram cogitadas, ou
sugeridas, em língua portuguesa, várias denominações, como: "terminação
falsa" (Amorim de Carvalho), "cavalgamento" (Said Ali); além de
outras: "encadeamento", “transbordamento", "desbordamento",
"extravasamento", "transporte"...
Todas,
entretanto, de aplicação restrita. Melhor dizendo: nenhuma delas vingou.
Continuamos
utilizando, mesmo, o termo "enjembement".
Mestre
Aurélio, em seu Dicionário, registra a palavra como francesa (o que é verdade)
e limita-se a ensinar como se pronuncia:
No mais, trata-a como se já fosse um termo português ou brasileiro e transcreve
exemplos.
Ora, se
a usamos e a usaremos assim, por que não aportuguesá-la ou, pelo menos,
abrasileirá-la, como tem acontecido sempre em casos semelhantes? Mestre
Aurélio, data vênia, tem autoridade que basta para, tranqüilamente,
apresentá-la deste jeito: Anjambmã (do fr. "enjembement"), etc. etc.
O
recurso do "enjambement" vem sendo um dos mais discutidos, em termos
de estrutura das estrofes.
Lancelot,
em 1554. condenando o encadeamento, sentenciava que "a rima faz, sem
dúvida, a maior beleza de nossos versos".
O mesmo
disse Richelet, depois, em 1671. — La Harpe achava que "a
poesia rimada não admitia o "enjambement" ". — O abade Mablin
doutrinava "que o verso francês não podia extravasar, em sentido, a medida
silábica". —
Em
1863, Ducondut ainda condenava o encadeamento de versos. — Em 1910, Duhamel e
Charles Vildrac rejeitavam, também, o "enjambement".
Entretanto...
No
próprio século XVI, Marot e Ronsard empregaram, com assiduidade, o
encadeamento, o primeiro em decassílabos e o segundo em alexandrinos. — Na
Espanha, Herrera recomendou, abertamente, essa prática. — Na França, Victor
Hugo o empregou, igualmente. — La Fontaine usou largamente o recurso, que
servia como luva aos temas de sua poesia viva, graciosa e pitoresca. — No
Brasil, para citarmos alguns pontos altos da poesia, podemos dizer que Olavo
Bilac, Alberto de Oliveira, Luiz Delfino, Vicente de Carvalho, Luiz Guimarães
Júnior e, notadamente, Raimundo Correia, foram, sem dúvida, mestres do
"enjambement".
As
discussões permanecem, mas o "enjambement" é, logicamente,
inevitável.
São
boas as relações entre o Soneto e o "enjambement"? Perfeitamente. São
as melhores possíveis, em que pese haver o preceito de se manter nos dois
quartetos uma certa independência de sentido; e, não obstante, saber-se que os
dois tercetos, formando a segunda parte do desenvolvimento do poema, sofrem uma
guinada significativa,
inclusive na indispensável mudança das rimas.
Com o
"enjambement" bem administrado, o soneto fica mais rico.
A
seguir, alguns exemplos de " enjambements" de grandes tas
brasileiros.
De
Raimundo Correia:
"Se
a cólera que espuma, a dor que mora
nalma,
e destrói cada ilusão que nasce,
tudo o
que punge, tudo o que devora
o
coração, no rosto se estampasse...”
"É
um poema de amor, que eu ouço; há tantas
rosas a
abrir no campo..."
"Rebenta
o mar de encontro ao duro peito
do
alcantil...”
"Pouco
a pouco, entre as árvores, a lua
surge
trêmula, trêmula... Anoitece".
"Tudo
passou! Mas destas arcarias
negras,
e desses torreões medonhos...”
"Vai-se
outra mais... mais outra... enfim dezenas
de
pombas vão-se dos pombais, apenas
raia
sanguínea e fresca a madrugada...”
"Quando
eu, porém, falei no amor, um riso
súbito
as faces do impassível monge
iluminou...”
De
Olavo Bilac:
"
Sobre tua cabeça ferverão
vinte
anos de silêncio e de tortura...”
"Olha
estas velhas árvores, mais belas
do que
as árvores novas, mais amigas...”
"Tens,
às vezes, o fogo soberano
do amor...”
"Mas,
sobre essa volúpia, erra a tristeza
dos
desertos, das matas e do oceano...”
"
És samba e jongo, chiba e fado, cujos
acordes
são desejos e orfandades
de
selvagens, cativos e marujos...”
"Pátria,
latejo em ti, no teu lenho por onde
circulo!"
"E
conversamos toda a noite, enquanto
a
Via-Láctea, como um pálio aberto
cintila".
"Ó
vós, que, no silêncio e no recolhimento
do
campo, conversais a sós, quando anoitece...”
Namorados,
que andais com a boca transbordando
de
beijos...”
"Sempre
o contraste! Pássaros cantando
sobre
túmulos...”
“Sobre
o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar,
como há pouco repousava...”
“Eu,
com o frio a crescer no coração — tão
cheio
de ti...”
"Casa
assombrada, onde andam penitentes
sombras
e ecos de amor...”
De
Alberto de Oliveira:
"Mas,
com a sombra, que aos poucos ao meu lado
cresce,
crescendo vai o sentimento...”
“Açoita-vos
o vento, como um bando
de
fúrias e anjos maus...”
"Desta
janela aberta à luz tardia
do luar...”
De Luiz
Guimarães Junior:
"Já
ninguém ouve os cantos prolongados
do
negro escravo...”
"
As alvas plagas, os profundos brejos
ficam
além, além! Adeus gostosos
tormentos
do passado!"
"Cresce
a invernosa noite, um frio intenso
morde-me
as carnes!"
"Hás
de ouvir, muitas vezes, os medonhos
e
surdos ais de uma ilusão perdida...”
De Luiz
Delfino:
A porta
está entre-cerrada; entulha
a
alcova a sombra espessa das cortinas...”
"Inda
não voltas? — Como a vida salta
destes
quadros de esplêndidas molduras!"
De
Vicente de Carvalho:
"Nem
ele mais a desejar se atreve
do que
merece...”
"Como
se não sentisse que em meu peito
pulsa o
covarde coração humano!"
"Que,
se vos aborrece, me tortura
ver-me
cativo assim do vosso encanto".
"Se
me quereis diverso do que agora
eu sou,
mudai!"
"Árvore
milagrosa, que sonhamos
toda
arreada de dourados pomos...”
"Deixa-me;
fonte!” Dizia
a flor,
tonta de terror...”
"A
alma arrogante, a alma bravia
do mar,
que vive a combater...”
Das páginas 165 a 174 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)
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