Humberto Rodrigues Neto (Humberto - Poeta)

São Paulo, SP (1935-2017)


CONTRASSENSO
Humberto Rodrigues Neto

(1º  colocado em concurso de sonetos patrocinado 
pela “Estância Gaúcha”, de Porto Alegre, RS, 2012)

Quem dera, oh... Deus, o ser humano fosse
mais fraternal e mais cristão, de sorte
que não herdasse o instinto de Mavorte,
contrário à vida, que é tão bela e doce!

Quanta alma pura fez de Ti o suporte,
e ao mal que nos judia contrapôs-se!
Quanta alma vil, de Ti distante, pôs-se
a criar engenhos de tortura e morte!
                                                                            
Estranha grei de gênios e estafermos,
num conúbio de crentes com pagãos,
eis o que é o homem nos exatos termos!

Sujeito a instintos nobres ou malsãos,
concebe a Ciência pra salvar enfermos
e inventa a Guerra pra matar os sãos!



AGORA...
Humberto Rodrigues Neto

Agora que o meu sonho está desfeito,
e enfim sepultos os meus ideais;
agora que, ao invés de madrigais,
choram dobres de réquiens no meu peito;

agora que me foge até o direito
de imaginar-te em sonhos irreais;
agora que ilusões não me vêm mais
ao coração magoado e insatisfeito;

que eu siga só, o meu trágico caminho,
onde da sorte a aguda e acerba foice
ceifou-me as dádivas do teu carinho;

que por ti meu coração não mais baloice...
ah... deixa-me esquecer-te, aqui sozinho,
soprando o pó de um grande amor que foi-se!



AMPARO
Humberto Rodrigues Neto

Não mais desfruto a paz que tinha outrora,
neste martirio que o meu peito ceva;
em meu tugúrio nada mais me enleva
e em cada canto uma tristeza chora.

Eu sei, Senhor, que toda a espessa treva
em que anoitece o meu viver de agora...
toda essa angustia que me desarvora
provém de alguma encarnação longeva.

Mesmo carpindo tão amargo teste,
que me corrói a alma e o organismo,
sempre hei de crer no teu amor celeste,

pois trocas do meu rosto cada trismo
por essa doce Estrela que me deste,
pairando linda sobre o meu abismo!
  


ANCORADOURO
Humberto Rodrigues Neto

Ah... meu amor, se um dia me fosse dado
riscar desta existência as amarguras,
eu te daria a paixão que hoje procuras,
sem noutro alguém teres um dia achado!

Abraços, beijos e outras mil venturas
mescladas de carinho e de pecado,
desfrutaríamos ambos, lado a lado,
livres da farsa de enganosas juras!

Ah... quanto, meu amor, quanto eu quisera
soltar ao vento as velas da galera
deste viver tão solitário e torto!

Vencer um mar de escolhos e sargaços,
fazer do ancoradouro dos teus braços
o meu tranquilo e tão sonhado porto!



ANGÚSTIA
Humberto Rodrigues Neto

 Supor em ti um céu sutil, de bens extremos,
te idolatrar, cativo sempre a um sonho insano
é cultivar no íntimo d'alma o acerbo dano
de não gozar, do amor em si, os bens extremos.

Nosso romance, que eu em sonho inda profano,
mas que nós dois por puro e limpo concebemos,
jamais leremos sem que a letra em que o grafemos
omita os verbos do ancestral pecado humano!

Como alhear-me a esta ansiedade intensa e louca
de ter nos lábios a carícia da tua boca,
e ao teu fascínio me fingir de indiferente?

Jamais me peças pra esquivar-me à sedutora
ânsia de ter-te, pois pra tal preciso fora
dar-me à renúncia de te amar tão loucamente!



AQUELA FLOR...
Humberto Rodrigues Neto

Quero que saibas que tal flor, tão linda,
jamais eu deixaria de notá-la,
pois do meu coração na ampla sala
eu a conservo em rico vaso ainda...

Que o meu ser dessa flor jamais prescinda,
e nunca mais deixe de apreciá-la,
pra que não venha nunca a sobrevoá-la
um outro beija-flor em sede infinda!

Privei-te, sim, da luz do meu sorriso
com que te fiz alegre e fiz contente,
num tempo que saudoso ainda diviso...

Quero tornar àquele tempo ausente
pra que retorne aquele mútuo riso
aos nossos lábios, como antigamente!



 CAMINHADA
Humberto Rodrigues Neto

(À minha esposa, in memorian)

 Eu ao teu lado e tu pelo meu braço,
parece um sonho percorrer a vida...
é como se ela fosse uma avenida
cheia de luz e pródiga de espaço!

Um beijo aqui, um riso ali, um abraço,
uma carícia a custo reprimida;
um sopro: "meu amor!" Outro: "querida!",
depois o sono, em tépido mormaço...

Mal a alvorada a serra ao longe azule,
e o sol aloire da janela o tule,
eis-nos trilhando a mesma e doce estrada...

Vivamos, meu amor, que a vida é imensa,
até que surja alguém que nos convença
que o paraíso fica além do nada!



CÂNTARO
Humberto Rodrigues Neto
 
Com que amor a campônia vai, cedinho,
com o jarro à fonte, a enchê-lo de água pura!
E volta, e a distribui, toda candura,
aos seus, na paz tranqüila de um ranchinho.

Faz do exemplo trivial dessa figura
um rumo a palmilhar no teu caminho;
em ânfora de amor, não de água ou vinho,
converte essa tua alma hoje insegura.

Nos vácuos desse cântaro, hoje frios,
despeja o bem que possas e vê quanto
é lindo o amor sem pompas e atavios!

Que o amor que dele vertas seja tanto,
que dê pra encher mil cálices vazios
de amargos corações em desencanto!



CIDADELA
Humberto Rodrigues Neto

Na vida quanto amor venci sorrindo!
De quantos sonhos eu zombei cantando!
Vivi ilusões alheias destruindo
e algemas de paixões despedaçando!

Muralhas de quimeras demolindo,
castelos femininos derrubando,
a cacos mil anseios reduzindo,
cadeias de ideais esfacelando!

Mas, eis que em meio à triunfal jornada,
por fina adaga de um olhar ferido,
dobrei-me em fragorosa derrocada!

E após ter feito grilhões em pedaços,
vi-me de rastos, afinal, vencido,
na débil cidadela dos teus braços!

  

CIÚME
Humberto Rodrigues Neto

Passam-se as horas e afinal não vens
vestir de sol meu tenebral caminho;
só de pensar, em ânsias me espezinho,
que são de outro os teus secretos bens...

Sim, é de outro o teu fugaz carinho,
toda essa ardência que em teu corpo tens,
mas fazes dos meus sonhos teus reféns
pra me obrigares a te amar sozinho.

Irás ao baile, e nele em ti pressinto
os teus enfeites, teus sutis rebuços:
a echarpe, o brinco, o bracelete, o cinto...

Num leito frio caio então de bruços,
quando duas lágrimas no rosto sinto,
rolando mansas sobre os meus soluços!



COMPARAÇÃO
Humberto Rodrigues Neto

Quando me pedes pra que nem comente
o alívio que me prestas na amargura
dos dias cinzentos, quando a desventura
paira sombria sobre a minha mente,

em frase mansa tua voz me assegura
que tais mimos já te pago regiamente
com os versos que te faço docemente,
te alçando a mundos de irreal ventura.

É por demais gentil teu julgamento,
pois com igual parâmetro mensura
o nosso desigual merecimento.

Não sei o que é melhor no que ele apura,
se o pouco que te dei de encantamento,
se o muito que me deste de ternura!



CONTRASTE
Humberto Rodrigues Neto

Aos teus pés, ah, quantos choram,
Maria! Que clamor triste!
Suplicam, pedem... deploram
um mal que nem sempre existe.

Toda vida é espinho em riste,
é legião de olhos que imploram,
é ventura que inexiste,
tormentos que nos devoram.

Sofra eu dor, desencanto,
firam-se em urzes meus passos,
que nunca me envolva o pranto,

pois sei que os teus olhos lassos
choraram sangue, e no entanto,
um deus dormira em teus braços!



COTEJO
Humberto Rodrigues Neto

Há um sol de ouro em teus cabelos flavos,
há no teu corpo da açucena o alvor,
há no teu beijo o doce mel dos favos,
há no teu peito turbilhões de amor!

Há nos teus lábios recender de cravos,
há no teu sangue o mais sensual calor,
há, por teus beijos, legiões de escravos,
há nos teus gestos virginal candor!

Há em teu semblante mutações serenas,
há na tua voz sutis modulações,
há no teu colo as ilusões mais plenas!

Há graça, encanto, madrigais, paixões,
há tudo em ti... dentro de mim há apenas
toda uma síncope de tentações!



DELÍRIO
Humberto Rodrigues Neto

Pressinto, algumas vezes, que me elevo
a alcandorados cimos majestosos,
de uma bizarra região de gozos,
à qual em êxtase também te levo!

Talvez lembrando algum viver primevo,
à mente vêm-me sonhos vaporosos,
de um tempo em que, juntinhos e ditosos,
nós já vivemos e do qual me enlevo!

E é-me tão nítido esse tempo lindo....
luas... auroras... Posso até retê-las
nas mãos, o seu tamanho comprimindo!

E vão meus dedos, logo após contê-las,
revérberos de sóis em ti esparzindo,
e em teus cabelos debulhando estrelas!



DESENGANO
Humberto Rodrigues Neto

Um certo dia eu me julguei capaz
de conhecer de Deus todo o segredo;
mil teologias rebuscando a dedo,
fui pondo sins nos meus poréns e mas...

Buscando luz no que era outrora vedo,
e imune aos erros de um latim falaz
que alguém me dera a muito tempo atrás,
longas distâncias eu venci bem cedo.

Mas, já supondo-me de Deus bem rente,
eu vi que mal deixara os vãos espaços
de onde eu partira rumo à busca ingente!

Não percebera, em meus enganos crassos,
que a cada dez mil passos que ia à frente,
voltava atrás os mesmos dez mil passos!



DESFECHO
Humberto Rodrigues Neto

Sei que é preciso, deste amor suspeito,
esperar dias hibernais, tristonhos,
e estar consciente de cruciais, medonhos
e atros suplícios a ferir-me o peito!

Sim, é preciso que eu, a teu respeito,
não borde anseios por demais risonhos,
nem ponha em altos pedestais meus sonhos,
nem sonhe o Éden no teu níveo leito!

Se houver o adeus final de um sonho ardente,
que eu me acostume a não te ver jamais
e viva apenas de um idílio ausente...

Fins de romance...Tão comuns e iguais...
a flor-mulher que amamos loucamente,
que um dia nos deixa... E que não volta mais!



DESPEDIDA
Humberto Rodrigues Neto

Tu foste, sem saber, o meu castigo,
sem nem supores quanto eu te adorava;
só nos meus sonhos pude ter, contigo,
os bens secretos que eu imaginava!

Ah... quanto abraço, quantos beijos dava
nesse teu corpo que almejei comigo!
Em teus contornos, louco, rendilhava
carícias minhas, que a ninguém eu digo!

Mas vais partir, e eu me pergunto: E agora?
Já antevejo tuas mãos se aproximando
das minhas, para o adeus que me apavora!

Tu partirás... Eu ficarei chorando,
vendo aos poucos teu vulto ir se apagando
na extrema curva dos que vão-se embora!



DESVARIO
Humberto Rodrigues Neto

Não sei se as tuas colchas são de arminho,
se de cambraia teus lençóis e as fronhas,
se de brocado o edredom do ninho
onde comigo nem de leve sonhas.

Se são de seda, musselina ou linho,
tuas camisolas, sérias ou risonhas...
e ao ventre, aos seios, nem leve adivinho
de que é que seja tudo o mais que ponhas.

E em pensamento, meu amor, consigo
ir ao teu leito... O negligê... Tuas meias...
e abres-me o colo ao me sentir contigo!

E nua... Nua! Toda nua, enleias
teu corpo ao meu! E vens fazer comigo
— meu Deus, que lindo!  tantas coisas feias!



ENXURRADA
Humberto Rodrigues Neto

Eu lembro... era menino, e no piçarro
da rua, quando a chuva, em correnteza,
descia, eu ia armar uma represa,
juntando pedras com cascalho e barro.

Naquela tosca e débil fortaleza,
sujeita a esboroar-se a um leve esbarro,
quão fácil foi-me, num folgar bizarro,
manter sujeita a mim a natureza!

Depois cresci... vieram tempos risonhos,
e toda uma caudal fruí de sonhos,
de lábios, e de corpos tentadores!

Mas, lá se foi do tempo na devesa
toda a enxurrada dos febris amores
que eu não pude conter numa represa!



EPITÁFIO
Humberto Rodrigues Neto

Já fui vate sonhador,
já fui amante da lua,
cantei versos pela rua
e fiz-me escravo do amor!

De quimeras pescador,
vaguei do amor na falua;
talvez meu ser jamais frua
tão suave e meigo esplendor!

Quase sábio fez-me o estudo,
às derrotas fiz-me escudo,
só a morte foi meu revés...

E aqui estou, inerte e mudo!
Oh... meu Deus! Eis aos teus pés
o nada do que foi tudo!



ESPERA
Humberto Rodrigues Neto

Do que disseste nunca te convenças,
pois que nem sempre dá-se o que supomos;
tem o destino os mais variados tomos
e há sempre enganos nas mais veras crenças.

Enquanto moços, sem quaisquer descrenças,
louras quimeras para nós compomos,
sem suspeitar que toda a vida pomos
nos frágeis laços que as mantém suspensas!

É então possível que a tua caminhada
termine em vértice na minha estrada,
após vencermos quase iguais barrancos...

Esperar-te-ei, nem que essa longa espera
traga-me apenas a tardia quimera
de um beijo teu nos meus cabelos brancos!



LÁGRIMAS
Humberto - Poeta

Ah... quanta vez o pranto derramamos
por coisas fúteis ou paixões banais;
quantas vezes em queixas lamentamos
a perda de valores materiais.

Muito sofremos e também choramos
em lacrimosos e doridos ais
pelos que um dia toda a vida amamos
e aos quais no mundo não veremos mais!

Porém, se a mágoa turva o teu olhar,
tira de ti tão depressivo enleio
doando aos tristes o teu dom de amar!

E então verás, nesse teu novo anseio,
que só não encontra tempo pra chorar
o que o gasta a enxugar o pranto alheio!



MESCLA
Humberto Rodrigues Neto

A vida é um trilho de ínvio sofrimento,
marginado de amarga nostalgia;
se raras são as horas de euforia,
extensos são os dias de tormento.

Vivendo de ilusões e fantasia,
sequer nos passa pelo pensamento
que é preciso arrostar um mau momento
pra sentir o valor de uma alegria.

Cumpramos, pois, a lei dessa mistura,
mesclando os risos que nos sejam dados
aos lancinantes ais de uma amargura.

E hão de ver os que carpem duros fados
como é doce o retorno da ventura
depois de termos sido desgraçados!



 MIGALHAS
Humberto Rodrigues Neto

Que mais desejas, afinal, que eu faça
pra ter por meu o que de ti não tenho,
se já cansado estou de tanto empenho
de haurir de ti a mais suprema graça?

A quanto tempo mendigando eu venho
um pouco mais que esta ventura escassa!
Do amor apenas pingos pões-me à taça
que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!

Somente a um outro, nas liriais toalhas
da mesa de Eros serves tua paixão,
mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!

E ali enjeitado, a farejar o chão,
o meu amor vive a lamber migalhas
que tu lhe atiras qual se fora a um cão!



REMINISCÊNCIAS
Humberto Rodrigues Neto

Foram-se embora aqueles tempos ledos,
em que da noite eu namorava os lumes;
da juventude aspirava os perfumes
e hauria do amor os mais febris folguedos...

O olhar bem claro, sem quaisquer ardumes,
a investigar do amor novos segredos
e a me enlear em tão gentis enredos
dos quais não lembro mágoas ou queixumes.

Foi-se o tempo... Hoje há neve em meus cabelos,
e pra tornar meus sonhos, pesadelos,
o horror das rugas que o meu rosto invade!

Dói ver um corpo que a idade corrói,
mas a dor que mais punge e mais me dói
é ver tão longe a minha mocidade!



TEATRO DA VIDA
Humberto Rodrigues Neto

Assim como acontece no teatro,
a vida também guarda a mesma média,
pois mescla ao riso da alegria nédia
os dissabores de um momento atro.

Da vida somos, pois, o anfiteatro
de co-partícipes de uma comédia,
e dos distúrbios de uma vil tragédia
que às vezes nos atinge a três por quatro.

Mas o destino, em condição expressa,
execra o ator que pouco se interessa
no aprimorar as suas encenações.

Da vida o palco não faz concessões,
pois Deus, que é o próprio Diretor da peça,
não quer saber de artistas canastrões!




3 comentários:

  1. Humberto Rodrigues Neto17 de março de 2017 às 20:10

    Alquebrado por meus 82 anos de existência, jamais poderia supor que alguns dos meus sonetos viessem um dia a constar de uma obra versando sobre esse tipo de poesia. E eis que uma adorável criatura, conhecedora profunda da matéria e hábil sonetista também, chama a si a iniciativa de me incluir no compêndio O SECULAR SONETO, uma obra que condensa tudo sobre o soneto, desde o seu surgimento com Petrarca, até a era moderna. Por isso, aqui deixo registrados os meus mais profundos e efusivos agradecimentos a Regina Coeli por tão belo e principesco brinde.
    Humberto Rodrigues Neto. São Paulo - 17/03/2017.

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  2. Tive imenso prazer de saborear e de escandir vários sonetos de HUMBERTO RODRIGUES NETO.
    Gostaria de o ter conhecido.

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  3. Tive o prazer e a honra de ler seus sonetos quando escrevi para BR Sonetos. Sempre admirei sua maneira de versar,primoroso no compasso e métrica. Deus o conserve por muitos e muitos anos nos brindando com suas jóias poéticas.

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