O fim da Poesia? - (Nelson Asher)



É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular?
  

A PARTIR de 1922, oficialmente, os poetas brasileiros deixaram de lado tanto os augustos mármores com ecos argênteos ou brônzeos do parnasianismo como os turíbulos, missais e castos aromas de incenso do simbolismo, e passaram a compor, pelo telefone, poemas sobre o trânsito, o semáforo e a eletricidade.
Claro que nem tudo se reduzia a esse esquema simples. Augusto dos Anjos já recorrera a um léxico de estudante de medicina ou de biólogo amador, à cultura de um leitor provinciano de almanaques que, vindos da capital federal, anunciavam novas descobertas e invenções, para orquestrar em seus sonetos uma sonoridade grotesca cujo fascínio hipnótico poucos negariam.
Enquanto isso, Manuel Bandeira, familiarizado com Heinrich Heine, criava suas canções pseudo-ingênuas ou, inspirado por Verlaine, transformava nosso carnaval tropical num espetáculo a um tempo melancolicamente decadente e elegante o bastante para evocar a corte dos Bourbons.
Independentemente, porém, de contra o quê se revoltava, a poesia moderna como ela começou a ser praticada aqui nos anos 20 caracterizou-se pelo abandono das formas fixas e pela adoção da linguagem coloquial. O que, pelo menos de início, ocorreu com as formas não foi diferente no seu caso do que sucedera com a pintura quando saiu dos limites do figurativismo e com a música atonal. O curioso é que sua contrapartida, a incorporação de temas não "poéticos" e de uma fala oriunda do cotidiano, apontava numa direção oposta.

Pois as formas fixas fornecem ao leitor um padrão consagrado, um ambiente seguro dentro do qual este se sente em contato com a poesia. Graças, em geral, a esse acordo de base, o poeta pode negociar com ele a alteração de outros elementos. Sem a certeza prévia que essas formas lhe dão, cabe a cada leitor se tornar um especialista que tenta desvendar se aquilo que lhe foi apresentado é de fato um poema ou não. Uma tarefa exigente e, enfim, para poucos.

Qual, no entanto, o vínculo de necessidade entre essa redução do círculo de leitores e a propensão a falar quase sempre nas cadências de uma pretensa "vox populi"? Menos de complementaridade que de compensação: talvez os poetas de então pensassem que, buscando competir com o noticiário e as manchetes jornalísticas, recuperariam os leitores que perdiam com o que, embora o chamado de experimentalismo, era antes a quebra de um contrato secular.

O coloquialismo em si já era, não uma conquista, mas uma concessão e, depois desta, outras viriam, todas insuficientes. O fato é que os poetas da geração seguinte, os que estrearam nos anos 30/40, recuaram diante da possibilidade de alienar de vez o público restrito que a poesia ainda possuía e se lançaram na criação de obras complexas que não desistiam de antemão de nenhum instrumento potencialmente útil. Não é à toa que Drummond escreveu sonetos, Vinicius compôs baladas e João Cabral raramente se afastou da quadra.

Seja como for, nenhuma medida, nenhum recuo tático bastou para recolocar a poesia na posição de arte central à qual ela naturalmente aspira. E, para provar involuntariamente essa constatação, os poetas dos anos 70 se autodenominavam "marginais" como se ainda houvesse algum que não o fosse.

De quantas artes já tiveram um estatuto melhor e um público maior, nenhuma parece ter caído tanto quanto a poesia e isso, paradoxalmente, durante o século 20, quando surgiram não somente algumas das vozes mais memoráveis que o Ocidente produziu, mas também tradições anteriormente ignoradas se apresentaram, através da tradução, a um público que, pela primeira vez na história, prometia se tornar universal.


É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular? Por sorte, o futuro a deus pertence e as tendências que abriga não são facilmente desvendáveis. Muito depende do empenho dos próprios poetas, naturalmente, de sua capacidade de reconhecer que sua arte, se bem que nutra inúmeras outras, talvez esteja beirando a extinção. O papel do público, porém, não pode ser ignorado e tudo, no último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor?









Nelson Ascher (São Paulo SP 1958) 

Dileto e dialético exemplo duma cabível e bem-concretizada sonetística pós-concreta (diretamente filiado que é a Haroldo de Campos), Ascher articula seus sonetilhos com ferramentas e precisão de joalheiro ou relojoeiro, manejando o enjambement a serviço do metro e da rima mas visando multifacetar um polimorfema preciosista. Estas amostras são poucas, visto que as gemas costumam ser raras:

(sonetário brasileiro)



PALINODIALÉTICA (1982)
Nelson Ascher

Um cisne, que insinua,
no signo, o palimpsesto
cuja inverdade, presto,
desata em outras duas,

dobrando, neste incesto
de si consigo, as suas
insígnias, canta, estua,
desdito, em pira: texto.

Eclipse. Mas, o insigne
de outrora, por estorvo,
desova (gris no tisne)

seu mesmo (fênix?) torvo.
Preto no branco. O cisne
se palindroma em corvo.



SONETO
Nelson Ascher

Fiz o que não devia,
o que devia, não;
compus uma canção
sem letra ou melodia.

À meia-noite ardia
meu sol que, sem razão,
legara de antemão
trevas ao meio-dia.

E enquanto lia tudo
que não dizia nada,
ouvindo na calada

da noite um eco mudo,
pensava, sobretudo,
que pouco sobrenada.



OUTRA GATA (para Haroldo, felinófilo)
Nelson Ascher

Embora seja tão
minúscula, está viva
a gata que se esquiva
enquanto minha mão,

com mais de um arranhão,
conclui a tentativa
inútil e, à deriva,
afaga o nada em vão.

Fruindo em paz de sete
vidas, no entanto, a gata
faz sua "toilette"

e assim não se constata
que esconde um canivete
suíço em cada pata.



BÁLSAMOS
Nelson Ascher

Embora eu sôfrego mordisque
nem tão de leve o teu mamilo
vermelho a ponto de induzi-lo
à rigidez que lhe condiz —

querendo ainda mais, tranqüilo
não ficarei sem que petisque
"in loco" os bálsamos sutis que
procedem — úmido sigilo —

da contração de internas dobras
que (enquanto delas se avizinha
meu hálito) afinal desdobras

para que se entredigam sábios
tudo que sabem sobre minha
língua teus dois pares de lábios.



OUTRA FACE
Nelson Ascher

Faces sem conta são
possíveis quando a face
perfaz, desfaz, refaz-se
na cristalização

efêmera que, impasse
a impasse, implica, não
obstante a interação,
além de uma interface,

com outras que, indevido
equívoco, depressa
reduzem-se a resíduo,

o impulso que a arremessa
a um face-a-face assíduo
com sua face avessa.


Fonte: sonetário brasileiro



Sobre Nelson Ascher:

Nelson Ronny Ascher, mais conhecido simplesmente como Nelson Ascher, é um poeta, editor, tradutor de poesia, crítico literário e cinematográfico. (Wikipédia)
Nascimento: 1 de janeiro de 1958 (59 anos), São Paulo, São Paulo
Tem quatro livros de poesia editados.

(Wikipedia)




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