A ALMA ERRANTE DO SONETO
A Literatura elevada — como a Arte pura — em geral, nasce nas épocas de
tranqüilidade, ou de relativa tranqüilidade.
Assim foi na Grécia de Péricles, na Roma de
Augusto, na Europa do Renascimento, na Inglaterra da Rainha Vitória, na França
de Luís XIV, "o Rei Sol".
Ao contrário, quando o mundo se conturba e
se envolve nos vórtices da barbárie, dos ódios, da violência, do materialismo
desenfreado, das guerras impiedosas, "quentes" ou "frias" —
enfim, quando o mundo se transforma num oceano indomável, sorvendo os náufragos
da humanidade sofrida — a Arte e a Literatura se escondem, confusas, omissas,
incapazes. Compreende-se, assim, por que, nos dias atuais, quase não haja lugar
para os sentimentos altos.
Está, em parte, obnubilada a Poesia. Mas,
se a Poesia é a primeira manifestação de qualquer literatura, conclui-se que
nos encontramos, apenas, diante de uma crise passageira. A presente crise já se
prolonga por alguns decênios... Porém, o que são decênios, diante da
eternidade? São minúsculos grãos de areia que as praias devolvem para o ritmo
das vagas — versos verdes de um poema infinito, eterno como a própria Poesia.
Sempre houve — e por que não os haveria
hoje? — valores humanos e místicos que colocam o espírito acima do realismo
vulgar e inconseqüente. Graças a esses eleitos, que deveriam constituir a regra
e não as exceções, a Arte e a Literatura sobrevivem e sobreviverão sempre.
É o caso do Poeta. É o exemplo do Soneto,
um bravo lutador, um vitorioso de sete centenários nos prélios da literatura
universal. Vamos reler estas palavras sentidas de Afrânio Peixoto, escritas em
1932:
— "Os gêneros
literários são apenas modos e modas de expressão: passam e morrem, com a fadiga
das emoções; revivem, quando já esquecidos. Não se inventa, ainda que em arte,
senão o que se esqueceu". (....) "O soneto, que veio dos Provençais,
de Girard de Bourneuil, ou de Pedro das Vinhas (Sicília), tem tido, desde o
século XIV, seus grandes poetas: Petrarca, Ronsard, Shakespeare, Camões, Lope
de Vega, Quevedo, Bocage, os Parnasianos, Herédia... morrendo e renascendo.
Agora mesmo, está morto, ninguém faz mais sonetos. Quando o esquecerem, um
inovador o inventará".
Afrânio
amava a poesia clássica. Daí, um pouco do desencanto que se pode vislumbrar em
suas palavras... Mas, haverá sempre alguém que aprecie o soneto. Disse Zola que
"a Arte é a natureza vista através de um temperamento". Se o estilo é
a forma de exprimir os pensamentos por escrito, o soneto pode ser a forma
através da qual um poeta consiga expressar melhor o que sente. "O poeta
pensa em versos", como, aliás, julgava Banville.
*
Neste capítulo, tentaremos armar um plano destinado a revelar o que tem sido a caminhada luminosa do Soneto, desde o seu nascimento até nossos dias.
Destacamos os melhores sonetistas de
Portugal. Nosso idioma tem, estamos certos, uma participação brilhante. Mas,
queremos desfilar, também, de outros países, sonetistas que, naturalmente,
escreveram em suas línguas de origem. E eles serão conhecidos de maneira
racional e prática, ou seja, com o auxílio de boas traduções.
Seria absurda a transcrição, aqui, das
obras originais, pois, obviamente, grande parte dos leitores não teria
condições de lê-las todas, com a eficiência desejada. Ademais, nosso objetivo é
oferecer ao público o enlevo dessas produções, num clima intelectual o mais
agradável e o mais simplificado possível. Não haverá a idéia ou o cuidado da
erudição, mas o prazer de um encontro informal com o Belo.
Sabemos que um poema não pode ser exatamente
o mesmo quando passa para uma língua diferente daquela em que foi criado e
escrito.
Uma idéia, uma imagem, podem, em geral, ser
transportadas para língua estrangeira. O mesmo êxito, entretanto, não se deve
esperar na transposição fiel de palavras próprias e inalienáveis; de sons que
dão vida e harmonia às expressões poéticas; de rimas que, inapelavelmente,
terão de ser substituídas na nova língua. Num soneto, então, a dificuldade é
muito maior.
Deve-se, ainda, levar em conta outro tipo
de dificuldade: a assimilação de sonetos escritos muito tempo antes, em
ambientes diversos, onde as cenas, os fatos, e suas respectivas influências não
se adaptam às épocas posteriores.
Aliás, esse obstáculo pode ser superado
pela agudeza de percepção do tradutor, considerando-se que o sentimento
independe do tempo.
J. G. de Araújo Jorge, também um excelente
poeta-tradutor, diz que a tradução, às vezes, é fácil, como nos poemas
espanhóis e até mesmo franceses, duas das línguas mais próximas da nossa. Mas
observa:
“Outras vezes, uma pequenina "pedra no
caminho" cria dificuldades imprevisíveis. Quanto mais se luta, mais ela
cresce, parece intransponível".
E adiante:
"Isto não quer dizer, entretanto, que
um poema não possa ser 'recriado" em outros idiomas, com vocábulos de
correspondente valor, de idêntico sentido e aproximadas sonoridades e
ritmos".
São palavras de Sérgio Milliet, na
Introdução de sua antologia Obras-Primas da Poesia Universal" (Livraria
Martins Editora S.A., São Paulo, 1954):
"Não é esta, uma antologia dos
melhores poemas da literatura universal desde os românticos até os modernos. É
apenas uma antologia dos melhores poemas vertidos para o português ou escritos
nesta língua. Há falhas nessa tentativa, portanto". (...)
"Confessada essa lacuna, expliquemos
porque se escolheu esse período, porque não se foi mais longe no passado, até o
Renascimento senão até os gregos. É que na verdade a fase romântica da
literatura não findou ainda, apesar de algumas tentativas de retorno ao
classicismo". (....) "Os quadros das elites estouram, e quem se
encontra de repente solto no espaço e no tempo é o poeta, é o artista, já sem
Mecenas, sem audiência e ainda sem Estado que o proteja". (....)
"Tais hesitações na caminhada para um novo classicismo são naturais. Que
forma assumirá ele, não o sabemos" (....)
"Tivemos que nos ater, como já se
disse de início, às versões que pude encontrar em português. Não nos
censuremos, pois, a escolha, que fora outra, se publicados os poetas em sua
língua original".
A exemplo de Sérgio Milliet,
contentamo-nos, até o momento em que escrevemos estas linhas, em apresentar as
traduções e versões, felizmente muitas, que pudemos encontrar em português.
Muitas, embora algo longe do que era de nosso desejo fazer. Poderíamos
prosseguir, tentando adicionar outras que, evidentemente, estão faltando, mas
seria retardarmos, ainda mais, a publicação desta obra, com prejuízo para os
demais capítulos, que cumprem, pelo menos em boa parte, aquilo que planejamos.
Nas biografias, curtas ou não, dos poetas
que apontamos neste capítulo — "A alma errante do Soneto" — tivemos o
cuidado de citar os nomes de todos os que foram sonetistas, mesmo deixando, por vezes, de mostrar, traduzidos, sonetos
seus. Isto facilitaria o trabalho de alguém, ou de alguma editora, que, depois
de nós, se propusesse organizar uma possível segunda edição, mais completa do
livro.
As traduções e versões que selecionamos e
apresentamos são o produto do esforço de poetas que penetraram no sentimento e
na personalidade dos poetas traduzidos.
Não esqueçamos aquele aforismo italiano
que, à maneira trocadilho, tacha de infiel toda tradução: "Traduttore,
traditore”.
Vamos, todavia, dar um crédito de confiança
aos nossos tradutores. Em homenagem à sua inteligência e em respeito à honestidade
de propósitos.
Preferimos partir do princípio de que os
poetas se entendem bem, pelo coração...
*
Antes de iniciarmos a apresentação das
obras traduzidas, queremos fazer uma rápida referência aos seus tradutores.
As traduções, ou versões, foram, todas,
recolhidas de documentos hábeis, isto é, de antologias, coletâneas e outros
tipos de divulgação tradicional, como livros poéticos colocados ao alcance
público, revistas, jornais, e até mesmo livros em preparo.
Há traduções antigas, de poetas falecidos,
traduções mais recentes, de poetas vivos, assim como, naturalmente, de poetas
cujos destinos ignoramos. Fato muito normal nestas circunstâncias e, ainda
mais, num país imenso e de quase nenhum intercâmbio literário como é o nosso.
Assim, nesse caso, temos de nos limitar ao
seguinte: prestar nossa comovida homenagem póstuma aos tradutores que já deixaram
este mundo; e enviar uma saudação carinhosa àqueles que Deus ainda conserva
entre nós, alguns dos quais nos distinguem com sua prestigiosa amizade. Estamos
certos de que, uns e outros nos proporcionaram ou nos proporcionam páginas de
raro valor, como estas que temos a ventura de mostrar aos amantes da Poesia:
principalmente do Soneto.
A todos, o pensamento positivo e a
gratidão, não apenas nossa, mas, também, daqueles que, porventura, vierem a se
deliciar com os seus trabalhos.
*
Apresentamos 89 tradutores, com um total de
253 traduções, inclusive diversas do Soneto de Arvers, contidas no capítulo
anterior. Os originais são de poetas de quase todos os países em que o Soneto
foi praticado e consagrado.
Alguns, com expressivo número de traduções:
J. G. de Araújo Jorge, 34; Delson Tarlé, 27; Rosália Sandoval e Álvaro Reis,
cada um com 10; Raimundo Correia e Carlos Maranhão, com 8 cada; Manuel Bandeira
e Modesto de Abreu, 7 cada um; Guilherme de Almeida e Luis Antônio Pimentel, 6
cada; Guimarães Passos, Mello Nóbrega e Fernando Torquato Oliveira, cada um com 5; etc.
Entretanto, desejamos pôr em relevo, neste
local, os nomes de todos os tradutores participantes, o que fazemos, obedecendo
à mesma ordem em que aparecem no livro. São eles: Pedro Luís, Lúcio de
Mendonça, José Augusto de Carvalho, Álvaro Reis, Luiz Pistarini, Raul Machado,
José Oiticica, Guilherme de Almeida, Osvaldo Orico, Antônio Filgueiras Lima, Carlos
Sá, Olegário Mariano, Xavier Cordeiro (português), João Coelho Nogueira
Ribeiro, Bastos Tigre, Edmundo Lys, Agmar Murgel Dutra, Benedito Lopes, Mello
Nóbrega, Martins Napoleão, Jorge de Sena (português), C. Tavares Bastos, Luiz
Delfino, Luiz Vicente De-Simoni, Waldemar de Vasconcelos, Jamil Almansur
Haddad, Delson Tarlé, J. G. de Araújo Jorge, Guimarães Passos, Batista Cepelos,
Hilário S. Soneghet, Othon Costa, Basílio de Magalhães, Altair de Almeida
Carneiro, Rubens de Mendonça, Modesto de Abreu. Edmundo Moniz, E. Vilhena de
Morais, Heitor P. Fróes, Fernando Torquato Oliveira, Maria Helena (portuguesa),
Manuel Bandeira, Alfredo de Assis, R. Magalhães Júnior, Silvestre Mineiro
(pseudônimo), Hélio C. Teixeira, Paulo Cesar Pimentel, Wenceslau de Queiroz, Júlio
Maciel, Conde de Sabugosa, Castro Fonseca, Raimundo Correia, João Ribeiro,
Álvaro de Castro Lima, Severino Montenegro, Rafael Simon, Augusto de Lima,
Antônio Sales, Carlindo Lellis, Edmundo Costa, Augusto Rodrigues, Ary de
Mesquita, Durval Mendonça, Viscondes de Castilho e de Azevedo (portugueses),
Carlos Maranhão, Atílio Milano, Olavo Bilac, Aristêo Seixas, Humberto de
Campos, Osório Dutra, José Augusto Cesar Salgado, Oscar Mendes, Xavier Placer,
Jerônimo de Aquino, Gomes Filho, Manuel Corrêa de Barros (português), Eugênio
de Castro (português), José Gomes Monteiro, Luís Antônio Pimentel, Jacy
Pacheco, Rosália Sandoval, Pedro Paulo Gavazzoni Silva, Jonathas Serrano,
Faustino Nascimento, Murilo Araujo, Virgílio Brígido Filho, Ana Amélia de
Queiroz Carneiro de Mendonça e I. B. de Mello e Souza.
(Das páginas 217 a 221 de "O Mundo Maravilhoso do
Soneto", de Vasco de Castro Lima)
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