(Baguari, Figueira do Rio Doce), Governador Valadares, MG (1921-2013)
(grafia
da época)
VOZES
Soares
da Cunha
Vozes
antigas e misteriosas,
tão
distantes, mas claras e perfeitas,
rompendo
das searas ondulosas
pelo
tempo sagrado das colheitas,
Vozes
alegres, plenas, vigorosas,
em
louvores e cânticos desfeitas
à
Terra Mãe, de entranhas generosas,
numa
expansão das almas satisfeitas.
Onde
já vos ouvi, ó vozes gratas,
que
a mim chegais, puríssimas e intactas,
do
fundo do passado e da distância?
Ressôa
em vossos cantos a saudade
dos
povos e nações da antiguidade,
na
plenitude bíblica da Infância!...
NA
MONTANHA
Soares
da Cunha
Galguei,
galguei o cimo inacessível
da
montanha... banhado em claridade,
foi
a minha emoção irreprimível,
em
face da beleza e a magestade.
Ébrio
de azul, rondava-me, terrível,
a
vertigem, sondando a imensidade:
e
ao ver que era o seu fundo inatingível,
provei
a sensação da eternidade.
Atrás
de uma montanha, sempre havia
outra
montanha; ao alto, infinda e calma,
a
vastidão azul, que se estendia...
E
deixei-me ficar, olhando a esmo,
nesse
profundo esquecimento d’alma,
nessa
ausência completa de mim mesmo.
MANHÃ
Soares
da Cunha
Brancas,
eis que as estrelas, de uma em uma,
desmaiam
já, na cúpula azulada:
um
sôpro virginal corre e perfuma
a
imensa natureza repousada.
Em
longas espiráis, veleja a bruma
dos
vales, no frescor da madrugada,
enquanto
que as estrelas, de uma em uma,
desmaiam
pela cúpula azulada.
Mas,
num crescendo, de listrões de fogo
se
tinge o céu... E enfim num desafôgo,
como
uma porta de oiro se descerra:
E
como um Cesar da gloriosa Roma,
em
seu mando de púrpuras, assoma
pomposamente
o sol, no alto da serra.
MEIO-DIA
Soares
da Cunha
Ó
luz, gloriosa luz, luz soberana
do
meio-dia, esplêndida fogueira
acêsa
no Infinito, que se explana
em
reverberações de alma guerreira!
Luz
deste sol da plaga americana,
que,
num rubro holocausto, abre em sangueira,
seu
coração, que jorros espadana,
regando
a terra mole de canseira.
Com
que volúpia, nessas ondas puras,
que
em cataratas rolam das alturas,
todo
o meu ser se banha e se extasia!
—
Se a luz, como um dilúvio que inundasse,
em
suas grandes ondas afogasse,
afogado
na luz eu morreria!
ÂNGELUS
Soares
da Cunha
Entre
os incensos dos véus crepusculares
Que
envolvem no poente a serrania,
Padre
Sol, ajoelhado ante os altares,
Reza
a longa oração da nostalgia.
Páira
uma unção litúrgica nos ares...
Na
catedral da Tarde, erma e vasia,
por
fim, rompem em côro os seculares
sinos
de bronze, lamentando o dia.
Sinos!
Quando nessa hora de tristeza,
fazeis
vibrar de dor a imensidade,
amortalhando
a paz da natureza,
julga-se
ouvir, em mística ansiedade,
do
Infinito na augusta profundeza,
o
próprio carrilhão da Eternidade!
TARDE
Soares
da Cunha
Enfim,
numa apoteose luminosa,
sumiu-se
além o sol... Serena e quêda,
desce
em cortina a gaze vaporosa
da
rósea tarde: — o céu é como sêda.
Do
jardim na paisagem preguiçosa,
no
lago de um cisne vai, como o de Lêda;
e
há um esfolhar de pétalas de rosa
pelo
recolhimento da alamêda.
Mas,
como um rio, imperceptível, brando,
vai
docemente o tempo se escoando,
enquanto
o poeta absorve-se a cismar.
E
despertando, fica deslumbrado,
ao
ver em tôrno o chão todo alagado
pela
chuva de prata do luar.
NOITE
Soares
da Cunha
Na
imensidade azul, onde flutua,
—
ninféa enorme, pálida, dolente,
destilando
narcóticos, a lua
dorme,
como num lago, molemente.
Da
curva praia o seio se debrua
de
uma renda de espuma alvinitente;
e
a planície do mar, infinda e nua,
se
perde num sossêgo transcendente.
Calma...
mudês... nenhum sinal de vida;
a
natureza inteira, adormecida,
sonha,
no encantamento do luar.
Apenas,
como um eco de outro mundo,
escuta-se,
recôndito e profundo,
o
coração da terra e palpitar.
PASSEIO
Soares
da Cunha
Era
o céu, eram pássaros cruzando
o
azul profundo, um grande azul de calma,
azul
que nos vertia dentro d’alma
um
êxtase infinito... Caminhando,
Lado
a lado, esquecidos, avançávamos
olhando
ao longe... Mas, de quando em quando,
os
nossos olhos, meigos, se encontravam,
e
logo os retirávamos, corando.
Era
o azul... eram pássaros supensos...
Os
anseios em nós eram imensos,
E
imenso era o pudor no coração.
E
caminhando, houve um momento extremo,
em
que, num gesto impávido e supremo,
arrebatei-lhe
a pequenina mão!
METEMPSICOSE
Soares
da Cunha
Talvez,
em outros dias, outra Idade,
numa
vida passda que tivemos,
de
graça, de alegria e de bondade,
e
cujos episódios esquecemos;
Talvez
(quem sabe se não é verdade?)
habitando
outro corpo, que perdemos,
nalgum
belo país da antiguidade,
foi
que primeiro nós nos conhecemos.
Porisso,
meu amor, por tal razão
é
que ao te ver, primeiro dia,
nas
vestes da presente encarnação,
Tive
a estranha impressão de que lembrava
que
antes de ver-te, já te conhecia,
e
antes de conhecer-te, já te amava.
O
RIO
Soares
da Cunha
Como
a corrente túrgida e bravia
que
asperamente rasga a natureza,
assim
eu era, e a esbravejar corria,
no
delirante afã da correnteza.
Em
arremesso impávido, rompia,
levava
de roldão toda defêsa,
e
para diante, em escarcéus, seguia,
todo
tumulto, cólera, rudeza.
Mas
um dia surgiste! E de repente,
deu-se
o milagre: — o rio catarata
asserenou-se
todo... E hoje, dolente,
num
marulhar de idílio e serenata,
rola
sobre as areias, mansamente,
as
suas águas líricas de prata.
ELA
Soares
da Cunha
Ela
é tão branca, ela é tão loira, ela é tão pura,
e
eu sou por natureza às vezes tão violento,
que
tenho medo de num instante de loucura,
machucá-la,
ái de mim, com o próprio pensamento.
Ela
é tão loira, ela é tão branca, ela é tão pura,
que
o amor que me inspira é mais um sentimento
de
respeito, que amor; e em mística ternura,
julgo-a
bem longe, enclausurada num convento.
Ela
é tão branca, ela é tão linda, ela é tão pura,
que
eu pergunto se amar tão sublime creatura
não
seria, talvez dos anjos privilégio.
E
amando-a, no meu sonho esplêndido e divino,
com
um misto de temor sagrado, eu imagino
que
estou a cometer um grande sacrilégio!
ROSA
MÍSTICA
Soares
da Cunha
Trazes
a branca fronte circundada
de
uma auréola de sonho e de mistério,
feita
da incerta luz da madrugada
e
do prestígio de um fulgor sidério.
Quando
apareces, pálida e gelada,
um
místico perfume, vago, etéreo,
sente-se
em tôrno; e, tímida e velada,
ouve-se
a melodia de um saltério.
Não
sei quem és... Vieste de outra Idade...
vejo-te
em frente, cheio de ansiedade,
toda
envôlta de bruma e de ideal.
Ah!
Se com as mãos jamais hei de tocar-te,
jamais
também o tempo há de ultrajar-te,
esplêndida
mulher, visão astral!
ARREPENDIMENTO
Soares
da Cunha
Eu
amava, meu Deus, essa mulher.
Porém
ela não soube, não sabia;
quantas
vezes estive em lhe dizer,
quantas
vezes estive, e não dizia!
E
por que não? Que mal podia haver?
quem
sabe se ela não me quereria?
Deixava
sempre o instante se perder,
sem
confessar-lhe o amor que me oprimia.
E
não disse! E talvez ela o esperasse.
Certa
noite, sosinhos, face a face,
Abri
os lábios... Que covarde eu fui!
Nessa
noite, talvez, se eu lhe dissesse,
talvez
ela me ouvisse e me quizesse:
hoje
é tarde demais, — outro a possui!
O
IMPORTUNO
Soares
da Cunha
Fechado
há longas horas em meu quarto,
não
posso tolerar mais o castigo,
e
abrindo a porta, já cansado e farto,
fujo
de mim, como de um máu amigo.
Porem
não adianta: quando parto,
o
importuno que eu sou, parte comigo,
não
me deixa na rua, e nem um quarto
de
hora, livrar-me dele não consigo.
Volto
então para casa, andando a esmo,
vendo
que ninguém foge de si mesmo,
em
canto algum desta pequena esfera.
E
quando chego e, de esperança morta,
com
um gesto melancólico abro a porta,
já
“o” encontro lá dentro, à minha espera.
HAVIA
EM SUA VOZ
Soares
da Cunha
Havia
em sua voz, amena e grave,
um
acento velado de tristeza,
uma
agonia mística e suave
da
chama que se esvái na profundeza.
Havia
em sua voz uma humildade
nazarena,
uma ausência de aspereza,
um
requinte, um pudor de alacridade
que
fere o ouvido, sem delicadeza.
Havia
no seu timbre doce e amigo,
um
não sei quê de sofrimento antigo,
uma
resignação, uma pureza...
A
perfeição moral própria do santo,
alcançada
só Deus sabe por quanto:
—
havia em sua voz uma Certeza.
MÃE
Soares
da Cunha
Quando
eu estou ás vezes muito triste,
mas
muito, muito triste desta vida,
uma
sombra piedosa, que me assiste,
vem
consolar minh’alma dolorida.
Sombra
de alguém que já não mais existe,
Minha
saudosa mãe, longe e perdida,
que
sabe, de onde está, quando estou triste,
e
vem me consolar enternecida.
Como
quem junto a um berço mal se atreve,
sinto-a
chegar-se a mim muito de leve,
toda
cheia de amor e de desvêlo.
E
como se menino ainda eu fosse,
num
gesto maternal, divino e doce,
com
as mãos acaricia o meu cabelo.
TRISTEZA
Soares
da Cunha
Eu
só tenho comigo esta tristeza.
ás
vezes acho a vida tão vasia,
tão
sem finalidade e sem grandeza,
que
partir para a guerra eu quereria.
Não
sei por que razão, em nossa mêsa,
foi
sempre amargo o pão de cada dia;
seria
preferível a pobreza,
com
um pouco mais de graça e de alegria.
Eu
só tenho comigo esta tristeza...
tristeza
que não sei se é covardia,
se
é mostra de cansaço e de fraqueza,
Ou
se é a alma ferida que confia
e
espera, qual magnífica surpreza,
a
aparição de Deus, que se anuncia.
SONETO
CRISTÃO
Soares
da Cunha
Por
que queixas, homem, o que dizes?
somos
todos uns pobres desgraçados,
somos
todos uns pobres infelizes,
á
mesma pena juntos condenados.
Homens,
mulheres puras, meretrizes,
ricos
e pobres, todos, recurvados,
trazemos
as secretas cicatrizes
dos
golpes pela vida suportados.
Que
adianta o teu grito, que adianta,
num
desvario que comove e espanta,
blasfemar
contra Deus, em voz funesta?!
Sejamos
resignados e cristãos:
amar-nos
uns aos outros, como irmãos,
é
o único consôlo que nos resta.
Á
MINHA NOIVA
Soares
da Cunha
Venho
de muito longe... Venho, Amada,
de
uma viagem através dos anos:
percorri
a gemer a longa estrada
das
dôres e cansaços quotidianos.
Trago
a alma ferida e amargurada
de
lutas vãs por ideais insanos,
tendo
apenas colhido, na jornada,
em
vez de glórias, rudes desenganos.
Sinto
como se houvesse regressado
de
um longo exílio ao carinhoso solo:
estou
cansado e triste, estou cansado...
—
Deixa tombar, feliz, minha cabeça,
deixa
que eu a repouse no teu colo
e
soluçando, aos poucos adormeça.
INVOCAÇÃO
DOS VENTOS
Soares
da Cunha
Ventos,
ó ventos, ventos implacáveis,
ó
vós, erguei-vos rugidores ventos!
(Estremecei
na base, monumentos
que
assinalais os feitos memoráveis)
Ventos,
ó ventos, ventos implacáveis,
ó
vós, erguei-vos rugidores ventos,
em
torvelins, em hordas... e violentos,
a
uivar, a uivar, ferozes, formidáveis,
numa
voragem, numa fúria insana,
como
de Deus a cólera tremenda,
varrei
a miserável raça humana!
E
após a convulsão do cataclismo,
como
um sudário, fúnebre, se estenda
o
repouso perpétuo sobre o Abismo.
Fonte:
“Sonetos e Poemas”, Editora Acalaca, Belo Horizonte, 1952.
O
GATO
Soares
da Cunha
Estirado
na ateia, a ronronar,
Como
um gato feliz que ao sol se esquenta,
Fico
a ouvir na distância a voz do mar,
Que
no embalo das ondas me adormenta.
Pestanejando
à viva luz solar,
Sinto
sobre o meu dorso, vagarenta,
A
carícia da brisa perpassar,
Doce
mão que de afagos se apascenta.
Longe,
o fundo rumor dos fundos mares...
E
além, pelas florestas milenares
De
um passado remoto infuso em mim,
Fico
a ouvir, na lembrança, o formidando
Tropel
dos elefantes, abalando
A
noite, a Grande Noite de onde eu vim.
VINGANÇA
Soares
da Cunha
Sereo
o mais devasso dos homens, eu te juro,
Serei
o mais canalha, serei o mais impuro:
Na
falta de pudor e no excesso de ronha,
Nero,
perto de mim, sentiria vergonha.
Serei
cruel comigo mesmo, serei duro;
Por
vezes baterei com a cabeça no muro,
Grite
embora de dor e embora ao mundo exponha
O
patético esgar de horrível carantonha.
Ouve!
— tu que és um anjo encarnado no demo —
Do
abismo onde caí, das trevas onde gemo,
Ouve
o meu uivo atroz, se ouvido tu tiveres:
Como
um cão que fareja o cio das cadelas,
Em
ganidos de amor, ao longo das vielas,
Eu
te possuirei em todas as mulheres!
IBITURUNA
Soares
da Cunha
Alteroso
penhasco de granito,
Ibituruna,
fortaleza ingente,
A
cuja face eu arrojei meu grito
De
desafio, em minha infância ardente!
Ao
pé de ti em vão estruge, aflito,
O
Rio Doce, em turbilhão fremente,
E
sobre ti as fúrias do Infinito
Desabam,
desde sempre, inutilmente.
Fosse
eu qual tu, rochedo inacessível,
Que
com a fronte soberba a altura invades:
Tu
que sereno, intrépido, impassível,
Através
do fragor das tempestades,
Segues,
— sempre de pé, sempre invencível,
E
hás de chegar ao termo das Idades!
OURO
PRETO
Soares
da Cunha
Entre
o incenso dos véus crepusculares
Que
envolvem, no poente, a serrania,
Padre
Sol, ajoelhado ante os altares,
Reza
a longa oração da nostalgia.
Paira
uma unção litúrgica nos ares...
Na
Catedral da Tarde, erma e vazia,
Ressoam
de repente os seculares
Sinos
de bronze, lamentando o dia.
Ó
simo! Quando em dobres de tristeza
Fazeis
tremer as lajes da cidade,
Os
profetas de pedra, com certeza,
Despertando
de um sono sem idade,
Hão
de falar aos homens da grandeza
De
Deus, e sua eterna majestade!
SONETO
QUASE NA MODA
Soares
da Cunha
Vamos,
doutor, pega essa lâmina e corta
A
minha pele um tanto ressecada
De
um homem que já fez cinquenta e tantos
E
vê se encontra tantos anos dentro.
Por
mais que escarafunche o fundo d’alma,
Dest’alma
que é figura de retórica,
E
me vire e revire pelo avesso,
Eu
não descubro a minha idade certa.
Que
estou já velho, o calendário o diz:
Mas
o espelho, onde faço a minha barba,
Não
confirma o que diz o calendário.
Quer
saber de uma coisa? — Para o inferno
Com
espelhos, calendários e o diabo:
Meu
projeto de vida é ser eterno.
COMO
AS GAIVOTAS
Soares
da Cunha
Quem
me dera vagar pelos espaços,
Livre
do peso morto da matéria,
Depois
de ter, enfim, rompido os laços
Que
unem ao corpo nossa essência etérea.
Como
as gaivotas, que não deixam traços
Em
sua infinda trajetória aérea,
Deslizar
e fugir sem embaraços
Pelo
vazio da amplidão sidérea...
E
após a noite escura desta vida,
Que
atravessamos de alma confrangida,
À
espera da sublime claridade,
Ver
despontar, dos cimos do Oriente,
O
sol, hóstia de luz resplandecente,
Que
se ergue sobre o mar da eternidade!
Fonte: “Sonetos (de ontem)", Edição do Autor, Belo Horizonte, 2009)
Nenhum comentário:
Postar um comentário