Palmyra Wanderley

Natal, RN (1894-1978)

(Precursora do jornalismo feminino no RN)


PALMEIRA
Palmyra Wanderley

Abres em luz, os leques verdejantes,
Palmeira erguida em meio do caminho...
Rezas, por todos nós, aos céus distantes,
Enquanto eu rezo pelo meu carinho.

Fazes o bem, em dádivas constantes,
— A flor, o fruto, em cada palma um ninho...
Se não tens sombra para os viajantes,
Tens agasalho para o passarinho.

Trazes na alma a esperança sempre acesa,
Do mal não te arreceias, com certeza,
— Não dura sempre a dor por mais sentida!...

Julgo-te assim, no bem tão dadivosa,
Tão constante no amor, tão luminosa,
A palmeira que eu sonho ser na vida!



BEM-TE-VI
Palmyra Wanderley

Todas as tardes, sempre à mesma hora,
Vem visitar-me um passarinho amigo...
Canta cantigas que eu cantava outrora,
Canta coisas que eu sinto, mas não digo.

De onde ele vem, não sei; nem onde mora;
Se lembranças me traz, guarda-as consigo.
Sinto, no entanto, quando vai-se embora,
que a minha alma não quer ficar comigo.

Hoje tardou... Há chuva nos caminhos,
Mas chuva não faz mal aos passarinhos
E ele há de vir, a tarde festejando...

Lá vem ele, ligeiro como um sonho...
Canta cousas tão minhas, que eu suponho
Ser o meu coração que vem cantando.



FORTALEZA DOS REIS MAGOS
Palmyra  Wanderley

Em frente o mar, fervendo e espumando de ira,
Na nevrose do ódio, em convulsões rouqueja
E contra a Fortaleza imprecações atira
E blasfema e maldiz e ameaça e pragueja.

Todo ele se baba. E se arqueia e delira,
Na fervente paixão de vencê-la... Peleja.
Ergue o dorso e se empina e se estorce e conspira
E cai, magoando os pés daquela que deseja.

A Fortaleza altiva, agarrada às raízes,
Nem parece sentir as fundas cicatrizes,
Dos golpes com que o mar o seu corpo tortura.

Evocando o passado, avista as sentinelas,
No cruzeiro do sul a cruz das caravelas
E as flechas de Poti rasgando a noite escura.



PALMA DA RESSURREIÇÃO
Palmyra Wanderley

Da escarpa na aridez, ela rebenta,
Filha das rochas, nos sertões nascida;
Parece ter brotado da tormenta
De uma alma que venceu e foi vencida.

É um gesto de dor; não se lamenta,
Porque a dor mais calada é a mais sentida...
No entanto, se adivinha que é sedenta
Da água que baste para lhe dar vida.

Contraste dessa palma milagrosa
Que do batismo sai nova, viçosa,
E de verde se veste e se refaz...

É uma antiga lembrança que ainda abrigo,
Um velho sonho que murchou comigo,
É qualquer coisa que não volta mais!!



BAUNILHA
Palmyra Wanderley

Lembra um jarro de flor, balança ao vento
A floração que é pluma enluarada.
Doce aroma de rosa e cravo bento
Vêm da baunilha, aos pés da Imaculada.

O seu perfume é prece. E no momento,
Rezam tôdas as flores. Ajoelhada,
Noviça na capela do convento,
Não seria mais bela, engrinaldada.

Ramos de neve estende na invernia,
De mãos postas parece a ramaria
Rezar, com mais fervor, sua oração.

Curva a baunilha a fronte alva e divina,
Como se fosse angelical menina,
Na mesa da primeira comunhão.



FLOR DE URTIGA
Palmyra Wanderley

É um resquício de espuma a flor de urtiga,
Um pingo de água doce e perfumosa,
Um pensamento bom... Não há quem diga
Que ela nasce de planta venenosa.

Apanhá-la ao pé, talvez consiga
Mão de mulher, sutil e carinhosa,
Que agrade muito e seja muito amiga,
De bem fazer, sem mesmo ser ditosa.

A flor de urtiga é um lírio bem pequeno,
Um beijo muito alvo no sereno,
Um dengue, um ai, um doce bem-querer...

Faz-se tão langorosa perfumando,
Que eu fico, às vezes, sem querer, pensando
Numa cousa de amor que ouvi dizer...



O UIRAPURU
Palmyra Wanderley

Das matas é o cantor aprimorado,
O monarca real da melodia,
Vive cantando sempre descuidado,
Como se fosse o dono da alegria.

Quando desfere o mágico trinado,
Saudando a aurora, bendizendo o dia,
Um bando de aves voa ao seu chamado,
Para escutar-lhe a estranha sinfonia.

E a passarada estática, silente,
Procura descobrir se o canto ardente
Vem da garganta em fúlgido descante,

Ou se das nuvens desce o dom dorido,
Das contas sôltas de um colar partido,
Caindo em salvas de cristal cantante.



PALMEIRA DO ROSÁRIO
Palmyra Wanderley

Sem que mais possa ver, palmeira amiga,
A tua irmã que outrora aqui vivia,
Vejo as dunas, o mangue, a Igreja antiga,
O mesmo rio, a Santa Cruz, a Pia.

Que a tua fronde o pássaro bendiga,
Atalaia do Templo de Maria!
Parta, embora, de ti doce cantiga,
Eu sinto que entristeces todo o dia.

A brisa geme. A farfalhar, soluças,
E sôbre a própria sombra te debruças,
Querendo agasalhar doutra o destrôço.

De minha terra a natureza inteira
Chora contigo a morte da palmeira,
Tronco partido de um passado nosso.



ÁRVORE DO BEM
Palmyra Wanderley

A corola vermelha ao fogo se compara,
No cálix de coral, o pólen de ouro se inflama,
Rubra, a flor de romã, de pétalas avara,
Lembra a chama do amor, do meu amor a chama.

Romãzeira a florir, tu, na existência amara,
És a árvore do bem, que a doçura derrama.
De ti é que nos vem essa virtude rara
De ser feliz no amor, de amar a quem nos ama.

O fruto circular, sem atrativo, embora
Em escrínios encerra as gemas côr da aurora,
Veladas por um véu dourado... E se adivinha

Que a coroa que cinge o fruto apetecido,
É a coroa de um rei, talvez desconhecido,
A guardar os rubis de um colar de rainha.



PITANGUEIRA
Palmyra Wanderley

Termina agôsto... A pitangueira flora...
A umbela verde cobre-se de alvura.
E, antes que de setembro finde a aurora,
Enrubece a pitanga, está madura.

Da flor, o fruto é de esmeralda, agora.
Num topásio depois se transfigura
E, pouco a pouco, um sol de estio o cora,
Dando a côr dos rubis à carnadura.

A pele é fina, a carne veludosa,
Vermelha como sangue, perfumosa
Como se humana a sua carne fosse...

Do fruto, às vezes, roxo como espargo,
A polpa tem um travo doce-amargo,
O sabor da saudade, amargo e doce.



AGUARELA
Palmyra Wanderley

O rio azul, volutuosamente,
Se espreguiça na areia côr de prata,
Estende os braços, amorosamente,
Para abraçar melhor a verde mata.

À beira da água, perfumosamente,
A ramaria o seu buquê desata.
Canta a floresta e o coração da gente,
Na voz do sabiá, que se dilata.

Uma canoa esguia o rio desce.
Desce tão vagarosa, que parece
Falar de amor às águas em segredo.

De pé, o canoeiro, olhando o rio,
Recebe, da ramagem no cicio,
O bafejo selvagem do arvoredo.



NÃO CANTAS MAIS
Palmyra Wanderley

Não cantas mais! Junho, brumoso e frio,
Hoje foi teu coveiro, meu cantor.
Chove lá fora. E eu sinto na alma o estio
Da tua doce voz cheia de amor.

Não cantas mais! Do teu cantar o fio
Partiu-se na garganta, sem rumor...
Morreu contigo o derradeiro pio
E na roseira a derradeira flor.

E assim, tão só, como viver agora,
Sem ter mais quem me entenda, como outrora,
No canto irmãos, no sentimento iguais?

E, enquanto na minha alma dolorida,
A tua voz me fala para a vida,
A dor que me doeu, dói muito mais!



FLAMBOYANTS
Palmyra Wanderley 

Verão. A natureza no-lo atesta,
Dos flamboyants nas flôres nacaradas.
Derramou-se, talvez, pela floresta
Uma porção de flôres encarnadas.

As cigarras cantando fazem festa
As corolas de seda ensanguentadas.
Quanta cousa esquecida ainda nos resta
No “si-si” das cantigas nas ramadas.

Inverno. Os flamboyants despedem-se agora.
Nem mais um canto. Emudeceu lá fora
Das cigarras, no estio, o bando álacre...

Até que aos flamboyants a côr vermelha
Volte, na floração, que se assemelha
A lindas borboletas côr de lacre.



LAVADEIRAS DE MINHA TERRA
Palmyra Wanderley

Partem, cantando, à luz das alvoradas,
Molhando os pés na relva dos caminhos,
E ao som de suas vozes, acordadas,
Beijam-se as asas no frouxel dos ninhos.

As lavadeiras seguem descuidadas,
Ora prendendo as roupas nos espinhos,
Ora apanhando as frutas encarnadas,
Ou cantando, também, com os passarinhos.

Depois, a tarde. O sol desaparece
Por trás do rio. A noite desce, desce...
Tôda a mata rescende a alecrim bento.

Elas ao lar retornam, conversando,
Enquanto a lua, pelos céus pairando,
Esgarça a sêda azul do firmamento.



PAU-D’ARCO
Palmyra Wanderley

Domina a mata inteira. O grosso tronco escuro
Se eleva para o céu, em galhos esquisitos.
Seu passado de rei, de rei o seu futuro,
Nos ramos, em sinais estranhos, vejo escritos.

No inverno o conheci, sem flôres, obscuro,
Rei prescrito, o pau-dárco, entre muitos proscritos,
Floresce no verão. Dourada a copa, eu juro,
Ser o reino de luz dos pássaros bonitos.

É o marechal da mata. Altivo, nobre, belo,
No capacete ostenta o penacho amarelo,
Guerreiro destemido, em demanda da glória.

Orgulhoso, desfralda a bandeira bordada
E, enlaçado de flor, escuta na alvorada
Um concliz a tocar o clarim da vitória.



ALMAS PARALELAS
Palmyra Wanderley

Há nesta vida uma barreira densa,
Sombra maldita entre nós dois pairando.
Corvo de Poe, de garra adunca, imensa,
Tôda felicidade estrangulando.

Fôrça do mal sôbre nós dois suspensa,
Na figueira de Judas balouçando.
Um mistério, um abismo, a indiferença,
Reticências de amor nos separando. 

Almas proscritas, almas paralelas,
Jamais se encontrarão. As sentinelas
Da inveja andam de espreita. Sorte amara...

E assim dissimulando a nossa estima,
Quanto mais êste amor nos aproxima,
Maios a mão do destino nos separa.



CONSELHOS À MINHA ALMA (*)
Palmyra Wanderley

Não te maldigas. Não. Não te maldigas!
Se um gôzo retardado faz sofrer,
Há de chegar o dia em que consigas
Tôda a felicidade merecer.

Não te perturbe a sanha das intrigas,
Sê firme na vontade de querer...
“Dá o bem pelo mal...” Que assim prossigas
E a força do mais forte hás de vencer.

Perdoa sempre àquele que te odeia,
Recebe o teu quinhão na dor alheia,
Não te julgues feliz, no mal de alguém.

Ama sem recompensa e sem usura,
Pois, o amor, apesar da desventura,
É de todos os bens o melhor bem!

_______
(*)  – Traduzido para o francês pelo poeta Affonso Barrouin.



LUAR
Palmyra Wanderley

Campangna Romana (Numa tela)

Madona, do alto, a lua tudo assiste,
No varandim da noite se inclinando...
Quebra o silêncio da paisagem triste,
A oração dos pinheiros evocando...

Na voz dos ramos um lamento existe,
De cousas mortas, nem se sabe quando!
Luar, banhando a ramaria, insiste
Em abraçar as árvores, rezando.

O romantismo dêsse quadro belo
Evoca a velha história de um castelo:
A dama, o cavalheiro, o trovador...

Quebras de juras feitas em segrêdo,
Um duelo travado no arvoredo,
Um marquês que se bate por amor...



ESCUTA!
Palmyra Wanderley

Tenho um segrêdo na alma, tão guardado
Que escondo êle de mim, no meu sentido.
Mas tanto êle me tem mortificado,
Que eu vim queixar-me, ó Mãe, do que hei sofrido.

Quero contar-te tudo o que é passado
E te pedir perdão de haver mentido.
Mas, antes de contar-te o meu pecado,
Deixa beijar-te a fímbria do vestido.

Escuta: — um mal de morte me atormenta.
Eu sinto na alma uma agonia lenta
E vou morrendo aos poucos, sem querer...

Perdoa, Mãe do Céu, a covardia,
Pois, tôda filha em sua mãe confia
E eu tenho tanto mêdo de dizer!...



NORDESTE
Palmyra Wanderley

Que mais feliz o teu destino fosse,
do que sujeito ao sol que te consome.
Pedes na seca a esmola de água doce
e um pedaço de pão porque tens fome.

Sumiu-se a voz do boiadeiro, mudo.
Secaram as fontes que aleitavam o rio.
No desespero de quem perde tudo
fecha a porteira do curral vazio.

Teus lábios racham, ao travo das raízes.
carregas o destino de infelizes,
rasgando os ombros nus, nos espinheiros...

Enquanto arquejas, maltratado, langue,
a terra tísica vai golfando sangue,
pela boca vermelha dos cardeiros.



CRAVOS
Palmyra Wanderley

Muito obrigada! Cravos? Da cidade?
Onde fôste buscar tão lindas côres?
Vermelho, côr de rosa, raridade!
Como fôste gentil! Falam de amôres.

Que perfume sutil! Que suavidade!
Enchem meu coração cheio de dores.
E como eu te agradeço, na verdade,
Do cravo gosto mais que de outras flôres.

Sinto no cravo um cheiro diferente,
Um cheiro que me toma inteiramente
E faz leve a minha alma pesarosa...

E nesta embriaguez, tonta de espanto,
Vejo nascer, no vale do meu pranto,
Uma porção de cravos côr de rosa.



DE JOELHOS
Palmyra Wanderley

Não posso mais beijar-te a fronte imaculada,
De Pai, de justo e bom, de alma tão clara e pura.
Nem, sequer, agradar-te a cabeça nevada,
Onde a velhice fêz o seu ninho de alvura.

Nunca mais ouvirei a tua voz magoada,
A gemer, a rezar, submisso à tortura...
Um alívio, um carinho, um conforto, mais nada;
Tudo, agora, findou, na paz da sepultura.

Quando a vida parou, vi teu rosto tão manso,
Na suave expressão do divino descanso...
E uma estrela não vi, do Infinito, no véu.

E, a morte te levou, mesmo assim, tão velhinho!
E eu não pude, sequer, aclarar teu caminho,
Pelas sombras da noite, à procura do Céu!



HOMEM
Palmyra Wanderley

O amor tem dessas cousas, é diverso,
Guarda a felicidade, a glória, o bem.
Tudo quanto acontece no Universo,
De nobre e generoso, êle contém.

Contigo o amor foi mau. Deu-te o reverso
Do filtro milagroso que êle tem.
A ironia, a descrença, o orgulho imerso,
No travo do ciúme e do desdém.

De bom que és, sereno, delicado,
Ficas estranho, injusto, arremeçado,
Homem difícil de compreender...

O amor que fêz de ti um tormentoso,
Deu-te a maior volúpia de amoroso,
No triste encanto de fazer sofrer.



SONÊTO DA DISTÂNCIA
Palmyra Wanderley

Muito mais que tristeza! Uma amargura
Me dói no coração, pobre e sozinho.
Aflito, o meu olhar o teu procura,
Sem poder alcançar-te no caminho.

Insisto em ver-te, mas, que desventura!
Nem, sequer, os teus passos adivinho...
Nem, ao menos, te avisto, que tortura!
Na distância se perde o meu carinho.

Solto a minha alma em busca, pela estrada;
Tu partiste mais cedo que a alvorada,
Ninguém me dá notícia, que maldade!

E eu fico o dia inteiro a procurar-te,
Em vez de ti, encontro em toda parte,
A sombra pensativa da saudade.



A MANGUEIRA E OS PÁSSAROS
Palmyra Wanderley

Feliz, amigo meu, que acordas cedo
Pela voz matinal dos passarinhos.
Não te pese maldade, nem te ocupes
De cuidados maiores que dos ninhos.

Benfazeja mangueira, casa verde,
Que agasalha e dá sombra nos caminhos,
Gostas de vê-la, no quintal plantada,
Carregada de asas e de ninhos.

Consciência tranquila, sem amargos,
Coração generoso, gestos largos,
Não há porque te firas nos espinhos...

A bondade é azul, em céu vertida.
Só os bons são capazes, nesta vida,
De amar e de entender os passarinhos.


(Do livro “Roseira Brava e Outros Versos”, Fundação José Augusto, 
Natal, Rio Grande do Norte, 1965, 215 páginas)  



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