UM
"SONETO" DE CASIMIRO
Por Sânzio
de Azevedo
Rafael Sânzio de Azevedo, nasceu em
Fortaleza, Ceará, em 11 de fevereiro de 1938. Professor, poeta, ficcionista,
crítico literário e ensaísta brasileiro.
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(respeitadas as grafias das épocas)
Quem folhear a coletânea Sonetos
Brasileiros, organizada por Laudelino Freire no início do século, vai encontrar
cada poeta representado por um sonêto apenas, como aliás ocorre com inúmeras
outras antologias, antigas e modernas.
Tratando-se de coletânea que se restringe
apenas à composição poética de 14 versos, com dois quartetos e dois tercetos,
era natural que lá não figurasse Casimiro de Abreu, poeta que, segundo nos
consta, jamais rendeu culto ao poema que imortalizou Félix Arvers.
Não obstante, o cantor de As
Primaveras está incluído na antologia citada, com êste «Ontem à Noite»:
Ontem — sozinhos —
eu e tu, sentados,
Nos contemplamos,
quando a noite veio:
Queixosa e mansa a
viração dos prados
Beijava o rosto e
te afagava o seio,
Que palpitava como
— ao longe — o mar,
E lá no céu êsses
rubins pregados
Brilhavam menos,
que teu vivo olhar!
Co'a mão nas
minhas, no silêncio augusto,
Tu me falavas, sem
mentido susto,
E nunca a virgem,
que a paixão revela,
Passou-me em sonhos
tão formosa assim!
Vendo a noite tão
pura, e a ti tão bela,
Eu disse aos
astros: — dai o céu a ela!
Disse a teus olhos:
— dai amor p'ra mim (1)
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(1) — Laudelino Freire. Sonetos Brasileiros. Rio
de Janeiro, F. Briguiet & Cia., s/d, p. 60.
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Cassiano Ricardo, num livro em que
justifica a concessão de prêmio de poesia a Cecília Meireles, pela Academia
Brasileira de Letras, em 1938, afirma em certo trecho, combatendo o
«Sonetococus brasiliense» ou seja, aquilo que na Alemanha Goethe chamou de
«fúria sonetífera»: Schiller nunca quis saber de sonetos, tal como o nosso
Gonçalves Dias. (2)
Afirmação que se repete um pouco adiante,
desta vez com a presença de dúvida, não porém quanto ao fato de o poeta
maranhense haver feito ou não sonetos, mas quanto a haver sido o único a deixar
de fazê-los: «Parece que só houve um que não perpetrou a «flor medieval»: foi
Gonçalves Dias.
Quero dizer: o único intelectual brasileiro
que não escreveu sonetos foi... um poeta». (3).
Engano de mestre Cassiano. Basta que se
lembre aquêle sonêto de Gonçalves Dias, composto no Rio de Janeiro e datado de
17 de junho de 1847:
Baixel veloz, que
ao úmido elemento
A voz do nauta
experto afoito entrega,
Demora o curso teu,
perto navega
Da terra onde me
fica o pensamento!
Enquanto vais
cortando o salso argento,
Desta praia feliz
não se desprega
(Meus olhos, não,
que amargo pranto os rega,)
Minha alma, sim, e
o amor que é meu tormento.
Baixel, que vais
fugindo, despiedado,
Sem temor dos
contrastes da procela,
Volta ao menos,
qual vais tão apressado.
Encontre-a eu
gentil, mimosa e bela!
E o pranto qu'ora
verto amargurado,
Possa eu então
verter nos lábios dela! (4)
Êste sonêto figura em inúmeros florilégios,
inclusive nesse, de Laudelino Freire, a que nos referimos, cuja 1ª edição é de
1904 e a 2ª, sem indicação de data, é talvez de 1915.
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(2) — Cassiano
Ricardo. A Academia e a Poesia Moderna. S. Paulo, Est. Gráfico «Revista dos
Tribunais», 1939, p. 122.
(3) — Cassiano
Ricardo. Op. cit., p. 126.
(4) — Gonçalves Dias.
Poesias Completas. S. Paulo, Ed. Saraiva, 1957 (2.o ed.), p. 932.
Isso, para não falarmos de outros tantos
sonetos gonçalvinos menos famosos.
Teria Cassiano Ricardo confundido Gonçalves
Dias com Casimiro de Abreu? Isso é pouco provável, mas não impossível. Porque
de Casimiro de Abreu, sim, jamais vimos, em parte alguma, um soneto sequer, ou
mesmo qualquer referência a sonêto que haja composto. Até prova em contrário,
podemos afirmar que o bardo de Indaiaçu, fugindo à quase regra geral entre
nossos poetas, jamais compôs um sonêto, jamais perpetrou a indefectível «flor
medieval» de que nos fala o grande poeta de Martim Cererê.
E aquêle, acima transcrito, encontrado na
coletânea de Laudelino? — poderá alguém indagar.
Responderemos que aquêle simplesmente
não é soneto, como é facílimo demonstrar. Apenas Laudelino (se é que
o não copiou de outro antologista), organizando uma coletânea só de sonetos e
querendo, ao mesmo tempo, que nela figurassem todos os grandes poetas do
Brasil, deparou com o problema de Casimiro, que teria forçosamente de ficar de
fora. Não se amofinou o ilustre advogado sergipano, e terminou por descobrir a
fórmula salvadora: o poema «Ontem à Noute», composto precisamente de duas
estrofes, cada uma com sete versos. Eis a forma real do poema:
Ontem — sozinhos —
eu e tu, sentados,
Nos contemplamos,
quando a noite veio:
Queixosa e mansa a
viração dos prados
Beijava o rosto e
te afagava o seio,
Que palpitava como
— ao longe — o mar,
E lá no céu êsses
rubins pregados
Brilhavam menos,
que teu vivo olhar!
Co'a mão nas
minhas, no silêncio augusto,
Tu me falavas sem
mentido susto,
E nunca a virgem
que a paixão revela,
Passou-me em sonhos
tão formosa assim!
Vendo a noute pura,
e vendo a ti tão bela,
Eu disse aos astros
— dai o céu a ela!
Disse a teus olhos;
— dai amor pra mim! (5)
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(5) — Sousa da
Silveira. Obras de Casimiro de Abreu. Rio de Janeiro, Min. da Educação e
Cultura, 1955 ( 2ª ed. melhorada), p. 240
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Este poema, como demonstra o prof. Sousa da
Silveira, é uma «tradução, um tanto livre, de uma poesia de Vítor Hugo», (6) embora não haja indicação alguma a respeito, o que acredita o ilustre pesquisador
tratar-se de lapso do poeta ou de seus editôres, visto Casimiro detestar o plágio,
como deixou claro em carta dirigida a um amigo.
Com a transcrição do poema está explicado
por que o «sonêto» da antologia de Laudelino não obedece a nenhum dos esquemas
rimáticos conhecidos. Apenas o primeiro quarteto e o segundo tercêto poderiam
pertencer a um sonêto regular; ainda assim, convém observar que os sonetos da
nossa fase romântica seguiam, com raras exceções, o esquema clássico ABBA ABBA
CDC DCD, esquema em que esta vazado o sonêto que transcrevemos de Gonçalves
Dias.
Ademais, num sonêto romântico os períodos
se distribuem dentro das estrofes, não sendo permitido, geralmente, que um
período se inicie, por exemplo, no último verso do 2º quarteto, para terminar
no 1º tercêto, o que observamos no pretenso sonêto casimiriano.
Laudelino Freire, porém, não se contentou
com haver conseguido forjar um sonêto de Casimiro: modificou o poema.
(Repetimos que há a possibilidade de o antologista haver copiado o poema de
outrem). O verso 12º foi alterado, pois
no original, como vimos, tem 11 sílabas, embora seja todo o poema vazado em
decassílabos:
Vendo a noute pura, e vendo a ti tão bela.
Trata-se, na contagem pós-castilhiana, de
um hendecassílabo de andamento trocaico, que podemos assim escandir:
- U - U - U - U - U - U - (7)
São versos como aquêles famosos de Guerra
Junqueiro, no poema «A Moleirinha»:
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
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(6) — Sousa da
Silveira. Op. cit. Zoe. cit.
(7) —Na falta de
recursos tipográficos, usamos, no lugar das bráquias, o u maiúsculo.
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Ou ainda aquêles do nosso Vicente de
Carvalho, no «Pequenino Morto», um dos menos parnasianos
poemas de um poeta dito parnasiano:
Tange o sino, tange, numa voz de chôro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
Sousa da Silveira compara o verso vendo
a noute pura, e vendo a ti tão bela a outro verso de Casimiro, do poema
«O Lar»*, também vazado em versos de 10 sílabas:
Bentevis do campo, sabiás da praia,
caso em que poderia, além de outras
hipóteses, haver o poeta composto um verso com dois de 5 sílabas, repetindo o
rítmo da segunda metade do verso anterior:
Aves dos bosques, brisas das montanhas,
Bentevis do campo, sabiás da praia.
Teria ocorrido o mesmo com o poema «Ontem à
Noute»:
Passou-me em sonhos tão formosa assim!
Vendo a noite pura e vendo a ti tão bela.
Casimiro teria repetido o andamento da
segunda parte no verso anterior, sem atentar para o fato de que, neste outro
verso, (o segundo) terminando o primeiro hemistíquio por vocábulo paroxítono,
teria o verso uma sílaba a mais, pois o hemistíquio tem 5 sílabas, e não 4,
como o primeiro do verso anterior.
Essa a razão por que o verso passou-me
em sonhos tão formosa assim é um decassílabo sáfico perfeito, e o
seguinte, vendo a noute pura e vendo a ti tão bela, é um
hendecassílabo trocaico.
Seria assim, segundo Sousa da Silveira:
Cumpre-nos lembrar que outras
interpretações poderiam ser aventadas a respeito dessa irregularidade métrica.
Estudando o verso de Gonçalves Dias
No fronteiro pano da muralha estampa,
em um poema decassílabo, Manuel Bandeira
manda que se incorpore a primeira sílaba dêste verso ao verso anterior:
E a coruja sedenta, a luz dos mortos-no
Fronteiro pano da muralha estampa. (8)
Péricles Eugênio da Silva Ramos, por sua
vez, nos dá exemplos de sinalefa (o que não caberia no nosso caso) e chama a
atenção para o fato de às vêzes, à falta de silaba átona final no 1º verso,
haver compensação, «cedendo-lhe o segundo verso a sua sílaba inicial». E
exemplifica com o verso
Infante e velho! — princípio e fim da vida —
do poema «Quadras da Minha Vida», de Gonçalves
Dias, onde a sílaba inicial In «compensa o final agudo do verso
anterior». (9).
Ambos tão perto do céu!
A nosso ver, o exemplo cabe perfeitamente
para o verso de Casimiro, que é precedido de um verso com final agudo.
Mas é ainda Péricles Eugênio da Silva Ramos
que lembra o fato de, às vêzes, «negligenciando o mecanismo das sinalefas e
compensações, a 1ª sílaba do 2º verso,
começando por consoante», ser simplesmente cortada, como neste exemplo de
Alvares de Azevedo:
Que um amor insensato consumia
No deserto lodaçal, em frio leito, (10)
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(8) — Apud M. Cavalcante Proença. Ritmo e Poesia.
Rio de Janeiro, Organização Simões, 1955, p. 32.
(9) — Péricles Eugênio
da Silva Ramos. O Verso Romântico e Outros Ensaios, S. Paulo, Comissão de
Literatura, Conselho Estadual de Cultura, 1959 p.
(10)
— Pericles Eugénio da Silva Ramos. Op. cit., p. 12
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que vem coincidir com o exemplo do verso de
Gonçalves Dias, comentado por Manuel Bandeira.
Laudelino Freire, porém, não queria saber
de versos irregulares, e talvez até desconhecesse que, por sinalefa, por
anacrusa, ou ainda por outras razões, se explicam inúmeros versos «quebrados»
ao longo de todo o nosso Romantismo, a começar, como vimos, pelo mais culto e
mais perfeito artista do verso nessa fase da poesia brasileira, Gonçalves Dias.
Em plena idade de ouro do Neoparnasianismo,
quando ainda o Sr. Goulart de Andrade compunha poemas em que era obrigada a
consoante de apoio, e quando se consideravam simplesmente errados os versos que
fugissem à regra dos tratados de metrificação, época em que as edições Garnier «corrigiam»
os versos julgados defeituosos de Alvares de Azevedo e outros, nessa época, o
antologista, pondo os olhos naquele verso com 11 sílabas, verso que quebrava a
harmonia do poema, não hesitou em modificá-lo, e o resultado foi êste
decassílabo heróico, sòzinho, num poema todo êle vazado em decassílabos sáficos
Vendo a noite tão pura, e a ti tão bela.
Conclusão: Casimiro de Abreu
não deixou sonetos, e aquêle que Laudelino Freire transcreveu em sua coletânea,
além de não ser sonêto como ficou demonstrado, não é, como também foi dito,
poema original de Casimiro, e sim tradução de Hugo, daquele poema que termina
com êstes versos:
J'ai dit aux astres d'or: Versez le ciel sur elle!
Et j'ai dit à vos yeux: Versez l'amour sur nous!
Nota do blogue "O Secular Soneto":
(*) — O título correto do poema é "No Lar" (e não "O Lar"),
conforme o original do livro "As Primaveras", de Casimiro de Abreu,
publicado pela Typ. de Paula Brito, Rio de Janeiro, 1859.
Fonte digital:
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