UMA NOITE SÓ TUA
Alphonsus de
Guimaraens Filho
Mariana, MG
(1918-2008)
Carregas no teu
bolso uma noite só tua.
Um poema? uma
canção? o rascunho de um grito?
Supões (por que o
supões?) que te mudaste em mito.
Que não és (se já
foste) e que a alma é fria e nua
Como uma extensa
praia, uma deserta rua.
Um poema? uma
canção? o rascunho de um grito?
Carregas no teu
bolso uma noite só tua.
Vais levando
contigo um tátil infinito.
Supões (por que o
supões?) que não pertences mais
à terra, nem ao
céu: o que quiseste, aflito,
é cinza só, e
nuvem. Num silêncio cais
tão forte e tão
absurdo, que teu corpo flutua.
Um poema? uma
canção? o rascunho de um grito?
Carregas no teu
bolso uma noite só tua.
Luz de agora (1991)
DA PRIMEIRA VEZ EM QUE
ME ASSASSINARAM
Mário Quintana
Alegrete, RS
(1906-1994)
Da vez primeira em
que me assassinaram
Perdi um jeito de
sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez
que me mataram,
Foram levando
qualquer coisa minha...
E hoje, dos meus
cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o
que não tem mais nada...
Arde um toco de
vela, amarelada...
Como o único bem
que me ficou!
Vinde, corvos,
chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão,
avaramente adunca,
Ninguém há de
arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas
do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula
e triste como um ai,
A luz do morto não
se apaga nunca!
(A rua dos
cata-ventos, 1940)
NESTA NOITE PRESSAGA
Nilo Aparecida
Pinto
Caratinga, MG
(1915-1974)
Que mulher amarei,
nesta noite pressaga?
Qual delas me
abrirá os seus braços de lua,
E me dará, no amor,
o seu corpo de vaga,
Fremindo de pudor,
como uma estrela nua?
Qual delas me virá,
sob o luar que flutua,
Derramar um perfume
e um beijo em minha chaga?
Será minha, e terei
uma carícia sua?
Que mulher amarei,
nesta noite pressaga?
Em que mundo ela
dorme? Em que estância perdida
Gozarei no seu
corpo, em maciezas de alfombras,
As carícias da
carne e a volúpia da vida?
Ah, não sei que
mulher em seus braços me acoite...
Mas estendo-lhe as
mãos e a procuro nas sombras,
Como um pássaro
cego arrastado na noite...
Roteiro do deslumbramento (1944)
CÉU E AREIA
Nilo Aparecida
Pinto
Homem afeito às
solidões terrenas!
Olha, em torno, o
deserto que te oprime,
E hás de sentir
que, em teu vazio, apenas,
Pesam teus dias, à
feição de um crime.
Assim, batido de um
simum de penas,
Sem que te salve o
Amor, grande a sublime,
Se ao fulgor das
miragens te asserenas,
O infinito da ideia
te comprime...
E ouve: por mais
que, em sonhos delirantes,
Busques, além, como
um deslumbramento,
Os teus oásis de
ilusões distantes,
Verás tão só, no
espaço em que te enleias,
A inútil vastidão
do firmamento
Sobre a humildade
inútil das estrelas!
Roteiro do deslumbramento (1944)
A CIDADE DO SONHO
Nilo Aparecida
Pinto
A cidade fantástica
que eu trouxe
no pensamento e
cuja ressonância
— sino a dobrar na torre da distância —
ouço chamar por
mim, longínqua e doce,
vejo-a no sono,
aspiro-lhe a fragrância.
A minha alma
perdida reencontrou-se
à sua antiga voz
como se fosse
o rio que escutei
na minha infância.
Mas se transponho
seus jardins cinzentos
sob as arcadas da
noturna praça,
logo batida de
confusos ventos
a cidade do sonho
se evapora:
ruas de cinza,
casas de fumaça,
beirais de bruma
adormentando a aurora.
Rua de Saron (1952)
SONETO PARA MEU PAI
Nilo Aparecida
Pinto
Sempre chegas
assim, não pela senda
em que buscaste a
inviolada aurora;
vens dos átrios do
sonho, como outrora
cavalgavas nas
névoas da fazenda.
Chegas como a
memória te desvenda:
teu cavalo
sangrando sob a espora.
Igual te vi na
infância, eterno agora,
Rondas-me assim,
cristalizado em lenda.
Tua sombra enche a
noite, galopando
nos domínios do
vento, pelas grutas
da imóvel solidão;
e ouço-te quando
inflamas o meu ser,
à fronte um halo,
como se me
arrastasse para as lutas
o arranco marcial
do teu cavalo.
Sol de abismo (1956)
NOITE MAIOR
Nilo Aparecida
Pinto
E vejo, oculto o
sol, confusamente
negra montanha
soterrando o mundo;
mas alheio ao teu
véu, sombra crescente,
e ao teu legado
azul, dia fecundo,
do que sou me abstraio
e de repente
perplexo ante a
paisagem me confundo:
o sonho é o cenário
à minha frente
e eu, o poço que o
reflete no seu fundo.
O poço onde em meus
túneis de degredo
quanto mais
reclusos mais invento
a alma que vai de
mim para o segredo
de uma noite maior
e mais escura;
que vai sozinha em
meu sentimento
porque há muito não
sabe o que procura.
Reino interdito (1963)
SONETO DE ABRIL
Lêdo Ivo
Maceió, AL/Sevilha,
Espanha (1924-2012)
Agora que é abril,
e o mar se ausenta,
secando-se em si
mesmo com um pranto,
vejo que o amor que
te dedico aumenta
seguindo a trilha
do meu próprio espanto.
Em mim, o teu
espírito apresenta
todas as sugestões
de um doce encanto
que em minha fonte
não se dessedenta
por não ser fonte
d’água, mas de canto.
Agora que é abril,
e vão morrer
as formosas canções
dos outros meses,
assim te quero,
mesmo que te escondas:
amar-te uma só vez
todas as vezes
em que sou carne e
gesto, e fenecer
como uma voz
chamada pelas ondas.
Acontecimento do soneto (1948)
COMO SE ARRASTA NO SOL MORNO
UM VERME
Marcos Konder Reis
Itajaí, SC/Rio de
Janeiro, RJ (1922-2001)
Como se arrasta no
sol morno um verme
Por sobre a polpa
de uma fruta, eu durmo
A tua carne e sinto
o teu contorno
Entre os meus
braços como um fruto morno.
E a minha boca
sobre a pele, um verme,
Vai percorrendo o
teu sorriso, e torno
Ao longo do nariz,
depois contorno
Os teus olhos
fechados por querer-me.
E desço o teu
pescoço, feito um mono,
Para os teus seios
mornos, como um verme
Por sobre os frutos
prontos para o tombo.
Vertendo a unção da
morte nos teus membros,
E estremecendo numa
cruz de febre,
Eu planto no teu
corpo a flor de um pombo.
Armadura do amor (1965)
CORPO
Dantas Motta
Carvalhos/Aiuruoca,
MG (1913-1974)
Nem velhice, nem
mocidade.
Perdi a fé, o ouro,
o gosto da alegria.
E uma tristeza
talvez somente minha
Tem trânsito na
solidão do meu corpo.
Corpo por onde a
amargura caminha,
Frágil, sem
mistério e sem mulheres.
A ele tanto se lhe
dá este como aquele fato.
Uma gravata contudo
não lhe fica mal.
Põe-lhe um sorriso.
Beija-lhe a boca.
A boca afinal tem
suas utilidades.
Depois, olhe-o
trotando solene pelas avenidas.
I corpo então
dança: se tem farda é general,
Trapo é mendigo,
oração é fechado.
E é num corpo desses que eu caminho
emprestado.
Anjo de capote (1953)
NÃO SOU TREZENTOS
Dantas Motta
Não cuido de achar
na vida um bem apenas meu.
Se a vida se
reparte como o pão, como a chuva.
Os fracassos
curto-os no silêncio cúmplice,
Com o que me forro
do redículo da humana gente.
Eu desejaria ser
sóbrio, econômico e honesto.
Sem pretensões,
estúpido ou louco de todo o gênero.
Minha fadiga afinal
se daria bem comigo.
E em verdade eu
seria santo, talvez mendigo.
Porque se Mário em
tempos idos fora trezentos,
Um só tenho sido eu
no martírio das horas,
E nem sequer me
encontro perdido que estou
Por entre mim
insubmisso e tão pouco vário,
Triste a não mais
poder, velho senão moço,
Rico e no entanto
pobre, SÓ como um desprezo.
Anjo de capote (1953)
SONETO OCASIONAL
Domingos Carvalho
da Silva
Portugal/São Paulo (1915-2003)
Nas fronteiras do
sonho eu te esperava,
aurora de olhos
rubros e mãos frias.
Para o meu canto
volatilizado,
eras um tema azul
de águas marítimas.
Tinha estrelas nas
mãos. E surpreendia
pelo ruivo cabelo
algas de encanto.
Em viagens sempre
breves percorria
o cais das nuvens
junto a um mar de palmas.
E quando as poucos
se despetalou
no ocaso o sonho, e
a noite se tornou
realidade solitária
e nua,
surgiu sobre as
estrelas hesitantes,
como um lírio
ofuscando diamantes,
a rosa do teu sexo
em meia-lua.
Praia oculta (1949)
ESPELHO
Geraldo Vidigal
São Paulo/Campinas
(1921-2010)
Entre nuvens de
sombra e sóis de acaso,
Trago no lábio o
espinho desta sede:
— Fátuo fui eu,
quando supus durável
o fogo-fátuo dos
teus olhos verdes!
Às vezes surges num
clarão da tarde!
E murchas num
contorno de parede,
Antes que eu possa,
ansioso, debruçar-me
E em teus lábios
matar a minha sede.
Mas — água esquiva,
fogo-fátuo! — quando,
Na orfandade das
noites silenciosas,
Teu hálito povoa o
meu deserto,
Ergo-me, em transe,
e bebo, delirando,
Orvalho em tuas
mãos, ó irmã das rosas,
Espelho do fugaz,
eco do incerto.
Cantares de amor e solidão (1971)
AS ÁGUAS
Jorge Medauar
Água Preta/Uruçuca,
BA-São Paulo (1918-2003)
As
águas que viste são os povos,
e as
nações e as línguas
Apocalipse
Vejo-as: são águas
verdes e profundas
de um mar imenso e
indevassável. Vejo-as
depois escurecendo
sob a noite
e ouço-lhes o
gemido dos rochedos.
Sobre o impassível
líquido, soturno
dorso do mar que ao
longe se retorce
outras águas em
vão, de chuva doce,
como inútil consolo
se despejam.
Dentro da noite
inteiramente escura
as águas se
misturam, confabulam
para a revolta em
líquida linguagem.
Ai de vós, ai de
vós margens e diques,
arrecifes, limites
e rochedos
se as águas da
manhã vos atacarem.
Prelúdios, noturnos e tema de amor (1954)
UM DOMINAR OCULTO, SOB AS CAPAS
Jorge Medauar
Um dominar oculto
sob as capas
deste que vem a ser
o que vos fala,
impede que me solte
desse poço
onde o melhor que
existe em mim se afoga.
Nesse dormir,
sonâmbulo, percorro
o que não posso ser
à flor da luz,
deixando-me prender
ao surdo chumbo
que apaga o
percutir do meu andar.
Nãos vos conto das
noites indormidas,
buscando pelas
ânforas de sombra
palavras coaguladas
no silêncio.
Enrolo-me em novelos
cor de angústia.
Embora no alto
sótão veja o dia
Tramo e destramo
noites neste fundo.
Jogo chinês (1962)
A BELA ADORMECIDA
Américo Facó
Beberibe, CE/Rio de
Janeiro (1885-1953)
A alma levada
longe, e todavia
Presente, e presa
do segredo, anima,
Espira a rosa de
opulento clima,
Flor viva, aroma
novo, aura macia.
Desejo franze o
beijo, e se inebria;
Abraço iluso preme
e tem por cima
Um corpo alheio —
na delícia prima
Da oculta flama que
se nega ao Dia.
Entrevencido e
surpreso, adivinha
O ser profundo a
vertigem da vida
Fruto suspenso da
secreta vinha...
Forma acesa de amor
adormecida!
Para a primícia de
um mistério antigo,
Um deus solerte
quis dormir contigo!
Poesia perdida (1951)
NÃO MAIS À MARGEM DE ALGUM
RIO ESCUTO
Darcy Damasceno
Niterói, RJ/Rio de
Janeiro (1922-1988)
Não mais à margem
de algum rio escuto
Em fuga as águas, a
que, um tempo, afeito,
Ouvidos dei,
querendo-as cá no peito
Imagem minha,
espelho do meu luto:
Antes, austero e
coração enxuto,
Aos céus olhei,
olhando-os bem ao jeito
De quem despiu
metáfora e conceito
E viu no barro o
triste do atributo.
Barro desnudo,
barro desamado,
Sem rumor de onda e
voz de primaveras,
Barro sujeito, mais
que predicado,
E barro os olhos
com que olhei, à beira
De um rio incerto,
mas onde houve esperas,
Ó alma revel,
prenúncio de poeira.
Trigésimas (1967)
VENHO DE LONGE, TRAGO O PENSAMENTO
Paulo Bomfim
São Paulo, SP, 1926
Venho de longe,
trago o pensamento
Banhado em velhos
sais e maresias;
Arrasto velas rotas
pelo vento
E mastros
carregados de agonias.
Provenho desses
mares esquecidos
Nos roteiros de há
muito abandonados
E trago na retina
diluídos
Os misteriosos
portos não tocados.
Retenho dentro da
alma, preso à quilha,
Todo um mar de
sargaços e de vozes,
E ainda procuro no
horizonte a ilha
Onde sonham morrer
os albatrozes...
Venho de longe a contornar a
esmo
O cabo das tormentas de mim
mesmo.
Transfiguração (1951)
SENHORA DAS MARÉS E DOS ESPELHOS
Paulo Bomfim
Senhora das marés e
dos espelhos,
Que passeais tanta
pompa entre mucamas,
E desfilais com
tules e véus vermelhos
Na capital de vosso
reino em chamas.
Quanta lascívia
solta em alamedas,
Na luz esquiva dos
vitrais partidos,
E a volúpia de
mármores e sedas
Cobrindo de nudez
deuses perdidos.
Senhora da tormenta
e dos castelos,
Donatária de
abismos e fidalgos,
Que caminhais ao
tom dos violoncelos
Entre as adagas e
um luar de galgos.
Fazei brotar sobre broqueis e
rendas
A certeza imperial de vossas
lendas.
Súdito da noite (1992)
DA PUREZA
Glauco Flores de Sá
Brito
Montenegro,
RS/Curitiba, PR (1919-1970)
Não é o teu olhar
de lua e verde
ou teu aire de sal e de presságio;
nem o sorriso,
fonte de clareiras,
a dissipar as
insuspeitas mágoas;
nem o silêncio, cão
alerta à mágica
das palavras, do
gesto e do segredo,
e não trazes
gravado sobre a face
o que me atrai
(talvez nem o percebas)
e prende como um
ímã: é essa pureza
intrínseca e
perfeita que te resta
e me devolve os
sóis do que careço.
É tua pureza
idêntica a uma réstia
a trespassar meu
ser, e em ti me vejo
no que sou de
memória e descoberta.
Rio, novembro — 1959
Azulsol (1985)
O ALUNO
José Paulo Paes
Taquaritinga, SP
(1926-1998)
São meus todos os
versos já cantados:
A flor, a rua, as
músicas da infância,
O líquido momento e
os azulados
Horizontes perdidos
na distância.
Intacto me revejo
nos mil lados
De um só poema. Nas
lâminas da estância,
Circulam as
memórias e a substância
De palavras, de
gestos isolados.
São meus também os
líricos sapatos
De Rimbauld, e no
fundo dos meus atos
Canta a doçura
triste de Bandeira.
Drummond me
empresta sempre o seu bigode.
Com Neruda, meu
pobre verso explode
E as borboletas
dançam na algibeira.
O aluno (1947)
AQUI ESTOU, UM PÁSSARO EXILADO
Afonso Felix de
Sousa
Jaraguá, GO/Rio de
Janeiro (1925-2002)
Aqui estou, um
pássaro exilado
do mundo que criei
à minha imagem.
Estou como meus
pais, entre horizontes
de pobres paredões
e frutos podres.
Em meio à cerração
ouço esses passos
que, ao comando do
medo ou do desejo,
meu destino constroem
singrando as horas
que de um silêncio
vão a outro silêncio.
Por detrás brinca a
infância — na planície
a se estender até a
encosta em brumas
onde o corpo rolou,
deixando as mãos,
As mãos que soltam no
ar as aves bêbadas,
que com as asas
colhidas na planície
sobrevoam cidades
em ruínas.
O túnel (1948)
AUTORRETRATO
Bandeira Tribuzzi
São Luís, MA
(1927-1977)
Lucília trata bem
das minhas roupas
Rufino cuida bem
dos meus sapatos
As gravatas mais
caras são resíduos
de aniversários:
para não usar
Dos óculos se
vingam as paisagens
e as formas
femininas insistentes:
sempre a maçã fecunda
e cor-de-rosa
gritando quanto
valem as pupilas
O resto é tudo
fruto do descuido
a competência o
curso com diplomas
os cabelos
conformando a propaganda
têm tal alergia a
mim fenômeno
que deles sei tão
só pelo desprezo
Que grande ser
gratuito à flor da vida
Alguma existência (1948)
SAUDADE MARINHA
Bandeira Tribuzzi
E entre nós era o
mar. O mar perdido,
longínquo,
soluçante, ilimitado
e azul, como a
canção de ser amado
e longo como o
olhar em ti vertido.
Das nuvens o navio
desmedido
aumentava a
distância e o som magoado
do mar adivinhado
era o gemido
que em teu longo
silêncio havia dado.
Ó mar sem termo,
cessa tuas ondas
e o distante
horizonte e esta amargura
e este verde soluço
de ansiedade,
até que sua música
responda
e eu reconheça a
voz amiga e pura
vencendo a maré
alta da saudade.
Viola de amor (1979)
A INEVITÁVEL
Bandeira Tribuzzi
Insaciavelmente ela
te espera
carnívora em seu
furor uterino.
Movida pela fome de
pantera
Vigia teus
descuidos de menino.
De numerosas tramas
tece a espera
e os becos sem
saída do destino
e em seu macio pelo
esconde a fera,
a fúria, o enredo e
o negro desatino.
Sempre atenta te
espreita desarmado,
pronta a te
desferir garra ferina
para sorver-te a
vida àquela hora
insuspeita, fatal e
inevitada.
Pois, se lhe foges,
ela te fascina
e, se te entregas,
ela te devora.
Íntimo comício (1979)
SONATA
Antonio Olinto
Ubá, MG (1919-2009)
Mulher, tirei o som
dos acontecimentos,
água de bica em
pedra, onda chegando à areia,
riso de gente em
mar e pássaro nos ventos,
tábua rangendo à
noite e grito em lua cheia.
Separei cada som de
deus leves aumentos,
de uma porção de
azul tirei apenas meia,
para trazer-te em
mim, corpo de nascimentos,
a justeza dos sons
pousando em cada veia.
Sou todo uma sonata
e em tua pele escorro
Fixando cada coisa
em seu exato jarro
No ritmo natural de
trem subindo o morro.
A prenda que eu
trazia em cadência de carro
é fonte em mim,
mulher, e se abre num só jorro
de acalanto, de
amor, de leite, luz e barro.
O homem do madrigal (1957)
OUTRO TALVEZ TE AMASSE MAIS AMENO
Francisco Marcelo
Cabral
Cataguases, MG/Rio
de Janeiro (1930-2014)
Outro talvez te
amasse mais ameno,
ou mais terras de
além, praias e espantos;
outro talvez,
outrora, ora sereno,
ora crispada
crista, espuma e planctos,
te afagasse com o
falso desempeno
de longilíneos
enfunados mantos;
eu te quero sem
planos, mas tão pleno,
que nem tento um
intento e eles são tantos;
eu te quero tão
manso e tão intenso,
que o senso
verdadeiro não alcanço:
olha o mar, olha o
mar como é imenso,
olha bem como é
belo o seu balanço!
Quero te amar
amargurado e denso
Com inventos de
vento e sem descanso.
Baile de câmara (1992)
SONETO COM CHAVE DE OURO DE LÊDO IVO
Francisco Marcelo
Cabral
Seja o meu dia de
vigília e gozo
(não sono/sonho —
essa festa inconcreta);
que o céu — aqui,
agora — eu não perca
na espera vã do céu
do dia morto.
Atento à vida eu
vá, a cada instante —
derradeiro talvez —
a cada alento
que nos dá — homem,
flor, grilo, serpente —
o coração universal
e eterno.
Respirar...
respirar... a vida é graça
e graça desfrutar e
fazer parte
de luas, girassóis,
cristais e selvas.
Simples beleza,
como as noites claras
como as tardes
vadias e descalças
como os dias
perdidos sobre a relva.
Ibidem
O MÁGICO
Lago Burnett
São Luís, MA
(1929-1995)
O fraque negro não.
Nem a gravata
na expectativa de
voar. Também
não a cartola
vertical e exata
e o lenço cúmplice
infalível. Nem
o impecável sapato
sola chata
propício à precisão
que lhe convém
e a rosa funcional
vermelha e intacta
despontando das
palas. Antes sem
utensílios iguais,
simples mecânica
anunciante do
truque: os bolsos ocos
onde há laços
azuis, verdes, vermelhos.
Só. Em sua força
intrínseca, titânica,
inventando por si
somente, aos poucos,
flores, garrafas,
serpentinas, coelhos.
O amor e seus derivados (1984)
CREPÚSCULO MATINAL
Lago Burnett
Os resíduos da
aurora impregnados
no retângulo azul
onde navego
penetram em meus
olhos embaçados
pela noite que há
pouco me fez cego.
Meus dedos como dez
embriagados
rolam do corpo a
que meu corpo entrego,
e a poeira dos
minutos consumados
sacode contra a
angústia do meu ego.
Estou único e unânime
no espaço
e é em vão que me
desperto e me torturo
e busco
despertar-te, e clamo e choro.
Já nem sentes o
afago do meu braço,
que entre nós dois
se desenvolve o muro
feito de tédio, ou
de remorso. Ignoro.
Ibidem
SONETO PARA A POESIA
Lago Burnett
Se te acumulo,
irrompes imprevista,
áspera até, mas
sempre feminina,
deixando esta
impressão de quem domina
àquele que supõe
que te conquista.
Por merecer-te,
impus-me a disciplina
com que te atraio à
solidão de artista
e se acaso não pode
alçar-te a vista
me invades com teus
olhos de assassina.
Quando te esqueço,
vens a meu encalço
e teu beijo é tão
íntimo e insonoro
que nem posso
julgar um beijo falso.
Eu te colho no
tempo, por descuido,
mas, se não vens, a
lágrima que choro
bebo pensando que é
teu próprio fluido.
Ibidem
CANTIGAS DE MARINHEIRO (II)
Lago Burnett
Estendo as velas
rotas ao sol-posto
para a última
viagem do meu barco.
O crepúsculo brinca
no meu rosto,
enquanto os grossos
pés na lama encharco.
Em breve surgirá
lua de agosto
e — adeus, gentes
da praia, que eu me embarco! —
nunca mais hei de
ter nenhum desgosto,
que essa viagem
será o último marco
na minha vida
inquieta de marujo.
Amanhã estarei em
águas belas,
longe dos
habitantes do cais sujo.
Amanhã estarei no
último porto,
com meu barco, meu
leme, minhas velas,
morto no mar,
profundamente morto.
Ibidem
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