MODELOS
DE SONETO EM VINICIUS (E OUTROS) [*]
Na obra de Vinicius se patenteia
definitivamente a verdadeira face do soneto brasileiro contemporâneo.
Valendo-se da privilegiada perspectiva histórica, por sobre a qual tinha a
panorâmica visão dum Corcovado, o Poeta incorporou traços de diversos períodos
e movimentos literários, quer na temática quer no formato — razão pela qual
seus sonetos consubstanciam um autêntico compêndio do gênero. Desde o lirismo
mais sentimental (tipicamente romântico) até a carnalização carnavalizada (tipicamente
modernista), passando pelo épico politizado e pelo satírico filosofal, sua
temática é universalmente abrangente; na forma, praticou desde o modelo
clássico (camoniano) até as experimentações modernas, decorando o templo
parnasiano com interiores barrocos — nunca abrindo mão, todavia, do rigor
métrico, rímico e (sendo o músico que foi) rítmico.
Abaixo seleciono exemplos dos moldes mais
freqüentes no repertório viniciano, os quais devem servir de paradigma a todos
os poetas que, na atualidade, pretendam cultivar o soneto no limite de suas possibilidades.
Adiciono ilustrativamente algumas alternativas experimentadas por outros
autores, cobrindo praticamente todo o espectro de variações comportadas (ou
malcomportadas) pelos catorze versos, a saber:
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MODELO 1: CAMONIANO PAR
Com quatro rimas, é de todos o mais belo e
difícil. Quanto menos rimas, mais versos na mesma rima. Portanto, um
complicador a mais desafiando a habilidade do poeta. O exemplo mais clássico
(em decassílabo heróico) é o 19 de Camões, rimando em ABBA ABBA CDC DCD, que
Vinicius também praticou magnificamente:
SONETO
19 [Camões]
Alma
minha gentil, que te partiste
Tão
cedo desta vida descontente,
Repousa
lá no céu eternamente,
E
viva eu cá na terra sempre triste.
Se
lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória
desta vida se consente,
Não
te esqueças daquele amor ardente,
Que
já nos olhos meus tão puro viste.
E
se vires que pode merecer-te
Alguma
cousa a dor, que me ficou
Da
mágoa, sem remédio, de perder-te;
Roga
a Deus, que teus anos encurtou,
Que
tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão
cedo de meus olhos te levou.
SONETO
À LUA [Vinicius de Moraes]
Por
que tens, por que tens olhos escuros
E
mãos lânguidas, loucas e sem fim
Quem
és, que és tu, não eu, e estás em mim
Impuro,
como o bem que está nos puros?
Que
paixão fez-te os lábios tão maduros
Num
rosto como o teu criança assim
Quem
te criou tão boa para o ruim
E
tão fatal para os meus versos duros? (*)
Fugaz,
com que direito tens-me presa
A
alma que por ti soluça nua
E
não és Tatiana e nem Teresa:
E
és tampouco a mulher que anda na rua
Vagabunda,
patética, indefesa
Ó
minha branca e pequenina lua! (*)
(*) Observe-se que o icto HERÓICO (sexta e
décima sílabas) não é necessariamente mantido em todos os versos: tal como
fizera Camões em outros momentos, Vinicius abre aqui duas exceções para o verso
SÁFICO, acentuado na quarta, oitava e décima sílabas.
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MODELO 2: CAMONIANO ÍMPAR
Com cinco rimas, é ligeiramente mais
flexível mas não menos difícil. Nos quartetos a rima continua abraçada (ABBA
ABBA), mas nos tercetos o esquema muda para CDE CDE (admitindo embaralhamentos
destas posições), que Vinicius pratica, por exemplo, em CDE DEC:
SONETO
29 [Camões]
Sete
anos de pastor Jacó servia
Labão,
pai de Raquel, serrana bela:
Mas
não servia ao pai, servia a ela,
Que
a ela só por prêmio pretendia.
Os
dias na esperança de um só dia
Passava,
contentando-se com vê-la:
Porém
o pai, usando de cautela,
Em
lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo
o triste pastor que com enganos
Assi
lhe era negada a sua pastora,
Como
se a não tivera merecida;
Começou
a servir outros sete anos,
Dizendo:
Mais servira, se não fora
Para
tão longo amor tão curta a vida.
SONETO
DE FIDELIDADE [Vinicius de Moraes]
De
tudo, ao meu amor serei atento
Antes,
e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que
mesmo em face do maior encanto
Dele
se encante mais meu pensamento.
Quero
vivê-lo em cada vão momento
E
em seu louvor hei de espalhar meu canto
E
rir meu riso e derramar meu pranto
Ao
seu pesar ou seu contentamento.
E
assim, quando mais tarde me procure
Quem
sabe a morte, angústia de quem vive
Quem
sabe a solidão, fim de quem ama
Eu
possa me dizer do amor (que tive):
Que
não seja imortal, posto que é chama
Mas
que seja infinito enquanto dure.
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MODELO 3: PARNASIANO ESTREITO
Com cinco ou sete rimas, mantém o deca camoniano
mas inverte as abraçadas no segundo quarteto (ABBA BAAB), ou não repete no
segundo quarteto as rimas do primeiro (ABBA CDDC),
ou cruza rimas nos quartetos (ABAB ABAB ou ABAB BABA ou ABAB CDCD), liberando
ao máximo o posicionamento nos tercetos. Exemplos de esquemas em ABAB ABAB CCD
EED (cinco rimas) e ABBA CDDC EEF FGG (sete rimas):
SONETO
DO MAIOR AMOR [Vinicius de Moraes]
Maior
amor nem mais estranho existe
Que
o meu, que não sossega a coisa amada
E
quando a sente alegre, fica triste
E
se a vê descontente, dá risada.
E
que só fica em paz se lhe resiste
O
amado coração, e que se agrada
Mais
da eterna aventura em que persiste
Que
de uma vida mal-aventurada.
Louco
amor meu, que quando toca, fere
E
quando fere vibra, mas prefere
Ferir
a fenecer — e vive a esmo
Fiel
à sua lei de cada instante
Desassombrado,
doido, delirante
Numa
paixão de tudo e de si mesmo.
[PRIMEIRO]
SONETO DE MEDITAÇÃO [Vinicius de Moraes]
Mas
o instante passou. A carne nova
Sente
a primeira fibra enrijecer
E
o seu sonho infinito de morrer
Passa
a caber no berço de uma cova.
Outra
carne virá. A primavera
É
carne, o amor é seiva eterna e forte
Quando
o ser que viveu unir-se à morte
No
mundo uma criança nascerá.
Importará
jamais por quê? Adiante
O
poema é translúcido, e distante
A
palavra que vem do pensamento
Sem
saudade. Não ter contentamento.
Ser
simples como o grão de poesia.
E
íntimo como a melancolia. (**)
(**) Observe-se que na chave de ouro do
soneto acima o poeta subverte novamente as tônicas do deca, que neste caso não
é heróico nem sáfico — recurso permissível apenas acidentalmente,
quando o sonetista interfere com a absoluta segurança dum Vinicius.
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MODELO 4: PARNASIANO LARGO
Com cinco ou sete rimas, esquematiza-se
optativamente nas mesmas condições do modelo precedente, trocando apenas o
decassílabo pelo dodecassílabo (alexandrino). Exemplos em
ABAB ABAB CDC EDE (cinco rimas) e ABAB CDDC EFE FGG (sete rimas):
PAIXÃO
E ARTE [Jorge de Lima]
Ter
Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O
Verso é a Arte do Verbo — o ritmo do som...
Existe
em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E
a Música o modula em gradações de tom...
Blasfemador,
ardente, amoroso ou perverso
Quando
a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas
é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se
o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...
Diz
a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum
amor inocente, (o mais alto destino):
A
Paixão de Jesus, o perdão a Madala.
Homem,
faze do Verso o teu culto pagão
E
canta a tua Dor e talha o alexandrino
A
quem te acostumou a ter Arte e Paixão.
SONETO
DA MULHER AO SOL [Vinicius de Moraes]
Uma
mulher ao sol — eis todo o meu desejo
Vinda
do sal do mar, nua, os braços em cruz
A
flor dos lábios entreaberta para o beijo
A
pele a fulgurar todo o pólen da luz.
Uma
linda mulher com os seios em repouso
Nua
e quente de sol — eis tudo o que eu preciso
O
ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso
À
flor dos lábios entreabertos para o gozo.
Uma
mulher ao sol sobre quem me debruce
Em
quem beba e a quem morda e com quem me lamente
E
que ao se submeter se enfureça e soluce
E
tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me
busque novamente — e se deixa a dormir
Quando,
pacificado, eu tiver de partir...
-
MODELO 5: MODERNO BRANCO
A
ausência de rima é contrabalançada pela rigidez métrica. Exemplo em deca
heróico:
ARMORIAL
(XIV) [Paulo Bomfim]
Nordestes
holandeses que procuro
Nas
casas-grandes que hoje trago na alma,
Socorros
mamelucos desfilando,
Em
calçadas de seda e porcelana.
Ruivos
combates, retiradas brancas, (***)
Sangue
perdido sobre canaviais,
Calções
de couro entre chapéus de pluma, (***)
Saudades
altiplanas em recifes.
Nordestes
do meu sul irremediável,
Senhor
de dois mil arcos fui outrora,
Socorrendo
as olindas senhoriais...
Hoje
sou só. Trezentos desenganos
Cobriram
de ferrugem meus guerreiros.
E
empurraram sobrados sobre mim.
(***)
Note-se que também no deca branco o acento heróico pode abrir exceções, num ou
noutro verso, para o ritmo sáfico.
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MODELO 6: MODERNO LIVRE
A
ausência de metro e rima parece facilitar, mas deve ser compensada pela extrema
destreza do poeta ao trabalhar cada palavra. Exemplo:
O
FILHO PRÓDIGO [Murilo Mendes]
À
beira do antiuniverso debruçado
Observo,
ó Pai, a tua arquitetura.
Este
corpo não admite o peso da cabeça...
Tudo
se expande num sentido amargo.
Lembro-me
ainda que me evocaste
Do
teu caos para o dia da promessa.
O
fogo irrompia das mulheres
E
se floria o sol de girassóis.
Uma
única vez eu te entrevi,
Entre
humano e divino inda indeciso,
Atraindo-me
ao teu íngreme coração.
Para
outros armaste o teu festim:
E
da tua música só vem agora
O
soluço da terra, dissonante.
-
MODELO 7: ALTERNATIVO PARNASIANO
Ao parnasiano convencional (modelos 3 e 4),
de cinco a sete rimas, poder-se-ia aplicar, no posicionamento estrófico, a
mesma liberdade experimentada no posicionamento das rimas. Assim, em lugar de
dois quartetos seguidos de dois tercetos (4/4/3/3), teríamos outras disposições:
3/3/4/4, 3/4/3/4, 4/3/4/3, 3/4/4/3, 4/3/3/4. Se a tal redivisão somarmos as
licenças modernas (verso branco ou livre) amplia-se o campo experimental (e com
isso o risco de desfigurar demais o soneto). Exemplos de experiência parnasiana
em 3/3/4/4 e respectiva reciclagem pós-moderna, ambas preservando a integridade
do soneto e o alto padrão poético:
O
DESTINO [Luís Delfino]
O
rio vem do mar, para o mar corre:
Quem
sabe por que nasce e por que morre?
Sabe
o sol que ele faz a madrugada?
Quem
fez de um grão de areia este universo?
Não
podia fazê-lo outro e diverso?
Pode
cousa qualquer sair do nada?
Por
que nos fez assim com fome e sede,
Selvagem,
como a fera da floresta,
E
não pôs tudo numa eterna festa?
Quem
deu a vida, não daria a rede
Em
que se embala o Índio do arvoredo,
Mas
que ele arranca ao tronco com trabalho?
Ruge
em torno de nós a dor e o medo.
Nada
vales, Helena, e eu nada valho?!...
SETE
ESTUDOS PARA A MÃO ESQUERDA (III) [Paulo Henriques Britto]
Sou
uma história, a voz que a conta, e o imenso
desejo
de contar outra diversa,
que
porém não deixasse de ser essa.
Palavra
que não digo e que não penso
e
no entanto escrevo — eu sou você?
(Mas
não era isso o que eu ia dizer,
e
sim uma outra coisa, obscura e bela,
que
sei, com uma certeza visceral,
ser
a verdade última e total —
e
só por isso já não creio nela,
pois
a certeza, tal como a memória,
é
por si só demonstração sobeja
da
falsidade do que quer que seja —)
Mas
isso já seria uma outra história.
-
MODELO 8: ALTERNATIVO INGLÊS
Se, ao invés de dividir (ou redividir) o
soneto em dois quartetos e dois tercetos, redistribuirmos os catorze versos em
4/4/4/2, temos o chamado "modelo inglês" (consagrado por
Shakespeare), pouco praticado no Brasil.
Exemplo em deca rimando em ABAB CDCD EFEF
GG:
TRANSFIGURAÇÃO
(I) [Paulo Bomfim]
Venho
de longe, trago o pensamento
Banhado
em velhos sais e maresias;
Arrasto
velas rotas pelo vento
E
mastros carregados de agonias.
Provenho
desses mares esquecidos
Nos
roteiros de há muito abandonados
E
trago na retina diluídos
Os
misteriosos portos não tocados.
Retenho
dentro da alma, preso à quilha
Todo
um mar de sargaços e de vozes,
E
ainda procuro no horizonte a ilha
Onde
sonham morrer os albatrozes...
Venho
de longe, a contornar a esmo,
O
cabo das tormentas de mim mesmo.
-
MODELO 9: ALTERNATIVO REDIVIDIDO
Se, ao invés de quatro estrofes,
fragmentarmos o soneto em mais tercetos ou dísticos, a experimentação ganha
novos horizontes. O importante é preservar algum critério, métrico ou rímico,
para evitar a desintegração conceitual do poema, cuja proposta temática deve se
articular à
estrutura formal. Entre outras possíveis
redistribuições estróficas, a solução abaixo foi difundida por Paulo Henriques
Britto em sete rimas e pesquisada por mim, que a compactei em cinco rimas. Um
dos quartetos é substituído por dois dísticos (abrindo e fechando o soneto),
enquanto os
tercetos se separam para intercalar o
quarteto restante no centro do poema: 2/3/4/3/2. Em Britto o esquema rímico
fica AA BCB CDED FEF GG; em
mim, AA BCB DEED BCB AA:
[de
Paulo Henriques Britto]
Tão
limitado, estar aqui e agora,
dentro
de si, sem poder ir embora,
dentro
de um espaço mínimo que mal
se
consegue explorar, esse minúsculo
império
sem território, Macau
sempre
à mercê do latejar de um músculo.
Ame-o
ou deixe-o? Sim: porém amar
por
falta de opção (a outra é o asco).
Que
além das suas bordas há um mar
infenso
a toda nau exploratória,
imune
mesmo ao mais ousado Vasco.
Porque
nenhum descobridor na história
(e
algum tentou?) jamais se desprendeu
do
cais úmido e ínfimo do eu.
SONETO
418 SENSORIAL [Glauco Mattoso]
Sensíveis
todos somos, mais ou menos,
mas
seres sensitivos, só os pequenos.
Sentir
é propriedade material.
A
gente sente a forma, o peso, a cor,
aromas
e calores, doce ou sal.
Filósofos
entendem que a verdade
não
passa de ilusão. Pensamos nela
apenas
como quem aspira, anela:
delírios
dum recluso atrás de grade.
Sentir
é perceber o que é real,
mas
é também querer, seja o que for,
alguém
ou algo, intenso, especial.
Se
somos sensuais, quem sabe é Vênus.
Serão
sentimentais somente os plenos.
-
MODELO 10: SONETILHO
Normalmente o soneto tem verso de dez ou
doze sílabas, sendo os metros curtos (geralmente redondilhas) próprios da
trova, da glosa ou de outros gêneros mais populares (mais fáceis de transmitir
oralmente) como a poesia de cordel. Entretanto, nada impede que o sonetista
adote o verso de pequeno fôlego, desde que sua criatividade supere a limitação.
Para evitar o lugar-comum da redondilha maior (sete sílabas) ou menor (cinco sílabas),
escolhi exemplos em versos de seis (heróico quebrado) e nove sílabas:
SONETILHO
DO FALSO FERNANDO PESSOA [Carlos Drummond de Andrade]
Onde
nasci, morri.
Onde
morri, existo.
E
das peles que visto
muitas
há que não vi.
Sem
mim como sem ti
posso
durar. Desisto
de
tudo quanto é misto
e
que odiei ou senti.
Nem
Fausto nem Mefisto,
à
deusa que se ri
deste
nosso oaristo,
eis-me
a dizer: assisto
além,
nenhum, aqui,
mas
não sou eu, nem isto.
A
PINTA DELA [Raul Pederneiras]
Se
tua fronte meiga descansas,
Pondo
em realce negro botão,
Da
cor trevosa de tuas tranças,
—
Nasce-me um ponto... de exclamação! —
Ponto
de treva! Doces lembranças
Trazes-me
à alma, num turbilhão;
Dulçoso
ponto das esperanças
Que
me despontam no coração.
Liliputiano,
grácil enfeite,
Lembra
uma pulga num mar de leite,
A
tua pinta que o rosto aninha.
Se
o Almirante Colombo, um dia,
Visse
teu rosto, certo diria:
—
"Santa Maria!... Que pinta, niña!"
[*]
Esta página foi preparada para o sítio oficial de Vinicius de Moraes, em
construção.
Estou encantado com este estudo. Venho estudando o soneto há alguns anos, com o fim de escrever modelos/formas/tipos de sonetos que tirem da leitura desse tipo de poema a monotonia típica de quando se lê um livro de sonetos. Mas a crítica dos donos das verdades absolutas tem sido cruel e batido forte. Este estudo caiu como luva a enriquecer ainda mais minhas pesquisas. Muito obrigado!
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