Hilário Soneghet

Ibirassú, ES (1904-1969)



O poeta é um feiticeiro
que, sem usar amuleto,
faz caber o mundo inteiro
na pequenez de um sonêto.

(Hilário Soneghet em “Por Estradas Curvas”,
 Belo Horizonte, 1971)



ÁRVORE MORTA
Hilário Soneghet
(Segundo lugar no concurso nacional
de sonetos realizado pela revista 
Ilustração Brasileira do Rio, em 1951).

Árvore morta! Fôste, em outras eras,
graciosa, esbelta, portentosa e boa;
saudaste, alegre, infindas primaveras,
indiferente aos ventos e à garoa.

Para a vaidade cheia de quimeras
eram-te espelho as águas da lagoa;
feliz viveste ao lado das taperas
orgulhosa dos bens que deste à-toa.

Deste frutos e flôres, deste sombra,
deste agasalho ao ninho e à verde alfombra
deste perfume e deste proteção.

Faze de mim, agora, o teu herdeiro,
dando em troca de um verso derradeiro
algumas tábuas para o meu caixão.



MEU PÉ DE TANGERINA
Hilário Soneghet

Um pé de tangerina, exuberante,
foi meu porque infantil, quando menino;
eu era o denodado comandante
de um grupo que o assaltava, em desatino.

Depois do saque, lépido, triunfante,
debandava o magote, ao som de um hino,
deixando-o depredado e agonizante,
mas feliz de cumprir o seu destino.

Parti... sofri... voltei... e êle secou,
como em meu peito o coração mendigo,
que a tanta gente pelo mundo amou.

Revemo-nos na dor e êle me diz:
— Eu te compreendo bem, meu velho amigo,
mas já não posso te fazer feliz!



MORRE CANTANDO
Hilário Soneghet

Poeta! Quando o sol da mocidade
doirar-te a jovem fronte de esplendores,
canta inspirado o amor, canta a bondade
e canta o aroma virginal das flôres.

Quando, porém, cruel adversidade
a tua testa coroar de dores,
canta a desilusão, canta a saudade,
com a mesma voz dos pássaros cantores.

Canta sempre, poeta! A voz canora
embala as almas quando o sol vai indo
e torna alegre o despontar da aurora!

Maior que o fado de nascer chorando
maior que a farsa de viver sorrindo,
é a glória imensa de morrer cantando!



CARNAVAL
Hilário Soneghet

Assisto ao perpassar em mil rumôres
de gente em desalinho, quase nua,
que vai cantando ao rufo dos tambores
no coletivo frenesi da rua.

Por entre gritos, saltos e clamores,
a alma da plebe assim se desvirtua,
na multiplicação dêsses horrores
onde a promiscuidade se acentua.

E enquanto a turba, à margem dos abrolhos,
mais se requinta nos estardalhaços,
eu sinto que, do fundo dos meus olhos,

vai brotar uma lágrima sentida,
por ver que sou, também entre os palhaços,
um Arlequim no carnaval da vida.



PROPIAÇÃO
Hilário Soneghet

Toma do arado, meu irmão, e parte
em busca da campina verdejante;
rasga o peito do chão, sulca-o bastante
e empresta o teu labor requinte de arte.

Que o sol, ao despontar, venha encontrar-te
na faina honesta que teu pão garante;
e, quando se puser, no azul distante,
do seu repouso sideral comparte.

Seja o teu braço uma charrua imensa
a revolver a terra dadivosa
que as gôtas de suor compensa.

E exulta, nas intérminas porfias,
feliz por ver brotar do chão, gloriosa,
a hóstia do teu pão, todos os dias.



REPIQUES
Hilário Soneghet

Num encontro feliz, entressonhamos
percorrer as veredas da ilusão.
É difícil dizer se nos amamos;
só quem sabe dizê-lo é o coração.

O que só sei é que, quais gaturamos,
não provamos jamais do mesmo grão;
não pudemos pousar nos mesmos ramos
nem ciscamos, sequer, no mesmo chão.

As rajadas do vento do destono
dispersaram as nossas fantasias.
— Aves — passamos a esvoaçar sem tino.

E é por isso, talvez, que, desolados,
os nossos peitos — catedrais vazias —
hoje só sabem repicar finados.



CONSELHOS
Hilário Soneghet

Só dez anos, meu filho, tens agora,
quando eu vou a caminho dos quarenta;
vês da existência despontar a aurora,
quando eu lhe vejo a tarde pardacenta.

Apresto-me a partir.Vem, sem demora,
Aí tens o meu lugar. Ocupa-o e atenta
neste conselho que ao meu lábio aflora
e que tua alma há-de sorver, sedenta:

A fé é a fôrça principal da vida.
Crer na vitória até o limite extremo
é ter meia batalha já vencida.

E bravo, e forte, fere a luta insana,
fazendo da honra o teu dever supremo
e do trabalho a prece cotidiana.



MEDITAÇÃO
Hilário Soneghet 

Muitas vêzes mergulho o pensamento
para além dos domínios siderais
e, a divagar no páramo cinzento,
busco entender mistérios divinais.

Perquiro em vão! E, cheio de tormento
e das fraquezas dos comuns mortais,
sentindo o vácuo do aniquilamento,
nada mais vejo e não entendo mais.

Mas, nessa ânsia incontida de saber,
retorno a investigar os céus profundos,
alheio à nulidade do meu ser.

E o cérebro se me enche de cansaço,
ao meditar na pequenez dos mundos
ante a espantosa vastidão do espaço.



MEIA-NOITE
Hilário Soneghet

Ouço o velho relógio lá na sala
bater as horas compassadamente;
meus sentidos se aguçam de repente,
e um suspiro profundo se me exala.

Tudo a mistério em tôrno a mim trescala;
olho a veia do pulso e o sangue ardente
passa em golfadas, cadenciadamente,
ao ritmo do relógio que badala.

"Eis a vida que "passa — considero —
"Ao ritmo dêsse fluido fatigado,
na eterna marcha para o marco zero."

E, no silêncio atroz da solidão,
escuto o som sinistro e entrecortado
da meia-noite do meu coração.



MANDACARU
Hilário Soneghet

Arde o sol na caatinga e a planta nordestina
sente a seiva fugir-lhe à miserável veia.
Já escassa de vigor, mirrada e pequenina,
busca, em vão, sob a crosta, o húmus que escasseia.

Nessa extrema aridez o destino pranteia
e inveja a liberdade da ave peregrina
que, à chegada da sêca, indômita, se alteia,
e busca outro local que o instinto determina.

Tudo foge ao rigor da estiagem maldita!
Ao tanger o seu gado, a humana criatura
a estrada enche de pó, fugindo da desdita.

Mas a planta não parte! E fime, estóica e forte,
o seu destino aceita altiva, com bravura,
e sedenta, a sofrer, fica à espera da morte.



O PÃO NOSSO
Hilário Soneghet

Olho, às vêzes, meus filhos com frieza,
quando, no almôço, expandem alegria;
é que me invade uma onda de tristeza
e sou tomado de melancolia.

Fico a pensar nos filhos da pobreza,
no momento feliz que se anuncia;
terão êles, acaso, sôbre a mesa,
o pedaço de pão de cada dia?

Nesse transporte de divino enlêvo,
sinto um desejo ardente e não me atrevo
a tomar finalmente a decisão.

De não matar a fome dos meus filhos
sem primeiro, feliz, por ínvios trilhos,
a algum mendigo ter levado um pão.



PERFEIÇÃO
Hilário Soneghet

Tenho sofrido pela vida tanto,
tenho penado tantas amarguras,
que já não sei se meu sorriso é um pranto
ou se o meu pranto é um riso de venturas.

Mas não me importa o sofrimento! enquanto
padece o corpo, a alma, nas alturas,
delira e canta; e, no esplendor de um canto,
liberta-se de humanas conjunturas.

E, assim, ascendo ao páramo profundo,
com a auréola ideal de um protomártir
que busca a perfeição de mundo em mundo.

E nesse enlêvo de feliz asceta,
bendigo a sorte que me fêz um mártir
e êsse martírio que me fêz poeta!



DESPEDIDA
Hilário Soneghet

Busca a senda tortuosa, entre as estradas;
caminha, filho, em frente, sem desvios:
há nela muitos boques, muitos rios,
que constituem perigos e ciladas.

Afasta-te das almas simuladas,
foge dos lôbos e dos cães vadios,
dos vícios mil que tentam nas caladas
e que são desastrosos e sombrios.

Surpreso, o filho, ao dar-lhe adeus, indaga:
— Por que choras, meu pai, que estrada é esta
que, ao que percebo, tanto te intimida?

E o pobre ancião, que grande dor esmaga,
comovido e com voz sumida e mesta,
a soluçar, responde-lhe: "Da vida".



VELHO TRONCO
Hilário Soneghet

Quando eu fôr velho, filhos, quero estar
sempre sòzinho com o meu cajado;
podeis todos de mim vos afastar
que um velho é um traste que se põe de lado.

Nem vos moleste a dor do meu penar
porque só deve a mim pesar meu fardo...
Mas, se um dia me virdes a chorar,
ante o pungir do coração magoado,

eu, velho tronco que não mais enflora,
não dá mais frutos, agasalho ao ninho,
nem dá mais sombra como dera outrora,

para acalmar-vos, filhos, eu direi
que são águas passadas, um restinho
de lágrimas que outrora não chorei.



AD GLORIAM
Hélio Soneghet

Feliz de ti, poeta, que, na vida,
sabes tirar proveito da ilusão
e transmudas percalços da descida
em uma festa de ressurreição.

Feliz de ti, meu bardo de alma ungida,
que, no transbordar de amor teu coração,
os vestígios apagas da ferida
com palavras fraternas de perdão.

Feliz de ti, romântico poeta,
que, com teus cantos divinais e tersos,
vais atingindo a perfeição do asceta;

e, nos transportes dessa diretriz,
basta-te um sonho para ter mil versos,
basta-te um verso para ser feliz!



POR ESTRADAS CURVAS
Hélio Soneghet

Convido-te a seguir a mesma estrada
que tanto sacrifício me custou:
a da honradez, meu filho, alcandorada,
que meu saudoso pai sempre trilhou.

Nos combates da vida acidentada,
minha alma muita vez periclitiu
e, se a conservo ainda imaculada,
devo-o aos conselhos do teu velho avô.

Se quiseres fugir dos males todos,
que a alma trazem sempre compungida,
carpindo iras, maldições e apodos,

imita o exemplo dêsse ancião dileto,
traça uma linha a te orientar a vida
e por estradas curvas segue reto.



IMORTALIDADE
Hilário Meneghet

Por mais que me procure não me vejo,
nem me encontro a mim mesmo em parte alguma.
"Se penso, logo existo." Mas desejo
saber o que no mundo sou, em suma.

Serei, acaso, um astro sem lampejo,
um rochedo no mar, serei espuma,
ou lúbrico esboçar de doce beijo
num tristonho jardim perdido em bruma?

Sou um pouco de tudo o que foi dito!
A encarnação suprema da miséria,
um pedaço de mundo no infinito!

Tudo o que me reveste terá fim.
— Mas não sou que vivo na matéria.
A matéria é que está vivendo em mim.



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