Rima - Sangue Vivo da Poesia

Como estamos escrevendo para poetas e leitores que já conhecem algo da arte poética, achamos desnecessário abordar, em capítulos especiais, definições ou observações em torno de versificação, ritmo, metrificação, contagem de sílabas, regras sobre elisões, terminações e acentuação rítmica dos versos, estrofação, classificação dos poemas, gêneros literários, e outros assuntos desse tipo — que, obviamente, fugiriam ao escopo deste trabalho.
São temas bastante vulgarizados, que, apesar disso, não deixamos de, esporadicamente, comentar, na medida em que isto se torne aconselhável.
Preferimos, apenas, tecer considerações a respeito da rima, que nos parece da maior importância e mais atraente, mesmo para aqueles que se encontram, de certa maneira, familiarizados com a poesia e, principalmente, com o soneto.

A rima não é, apenas, a iteração de sons dentro de um poema.
Não é, somente, aquela palavra que, em relação a outra, ou a outras, ostenta semelhanças fonéticas e gráficas. Não é, simplesmente, repetição sonora que dá vida e beleza aos versos.
Mais do que isto, é música, é harmonia maravilhosa. É um recurso retórico que não deve ser dispensado na poesia em geral.
E costuma ser, também, um engenhoso auxiliar na construção das estrofes e, até mesmo, na revelação ou na criação das imagens e das idéias, como pensava o próprio Bilac.

A função sonora da rima é muito importante. É o sangue vivo da poesia.
Entretanto, deve ser empregada com discrição e cuidado. No soneto, por exemplo, não obstante ser, a rima, uma imposição estrutural, sua presença não convém seja notada senão como uma circunstância, ou como um resultado compensador e grato, obtido através de habilidoso trabalho artesanal. Jamais como o fruto de uma tirania imposta pelos cânones estéticos.

Tampucci definia a rima como o "encanto misterioso da poesia".
Catulle Mendés escreveu: "A rima não é apenas um encanto e uma satisfação do ouvido, pelo retorno de sons em harmonioso acorde: é uma necessidade".
Carlo Culcasi foi mais romântico: "Banir a rima da poesia... equivaleria a banir os beijos do amor..." Oscar Wilde, ao dizer que "a rima transforma em vozes divinas nossas pobres palavras", achava que era "a única corda que pudemos acrescentar à lira de Orfeu".
Krause afirmou que "a rima é o signo real do pensamento, como também do sentimento".
Verlaine escreveu, em 1888, que "a rima é um mal necessário".
Hugo via na rima a "suprema graça do verso".
Banville, extremado, dizia, com os exageros do parnasianismo, que as demais palavras de um verso se limitavam, passivamente, a não perturbar os efeitos da rima. Estava, porém, certo, ao falar que as rimas devem parecer "surpresas de se encontrarem, mas contentes do seu encontro".

Fazendo considerações sobre a rima, diz Murilo Araujo:
— “A rima é um elemento de primeira ordem na orquestração do verso. É tão da índole poética que já a encontramos, há milhares de anos, em velhos salmos hebraicos. Pode, pois, e deve ser empregada, hoje, como o foi ontem, embora com mais liberdade, pelos autores modernos.
O que é preciso é renovar-se o conceito da boa rima. Esse conceito era antigamente baseado na dificuldade: quanto mais difícil de obter-se, tanto melhor a rima. O conceito, de hoje, deveria ser o da musicalidade: quanto mais sonora, natural e expressiva, tanto melhor a rima.
A poesia simbolista empregou, com admirável efeito, as rimas em ão, que faziam horror aos velhos parnasianos pela sua facilidade. E quantas vezes essa rima desprezada não se impõe, necessariamente, como recurso imitativo ou sonoro, som de bordão na sinfonia verbal!
Abandone-se o velho conceito da boa rima, comum nos tratados de métrica, que tomam grandemente em consideração a categoria gramatical das palavras rimadas ou sua freqüência na língua! Para a estética dos nossos dias, ótimas serão as rimas que apresentem estas três características: invulgaridade, naturalidade, sonoridade”.

Vossius, também, declara que a rima já existia desde os mais antigos povos da Ásia, da África e da América.
Os poetas francos já a usavam. O monge Otfried, no século IX, aplicou-a nos "Evangelhos Rimados". Contêm rimas hinos religiosos, escritos em latim, como "Dies irae", "Stabat Mater" e "Pange, língua, gloriosi" (com as estrofes finais "Tantum ergo"), atribuídos, respectivamente, a Tomás de Celano, século XIII (franciscano, biógrafo eficaz de São Francisco); a Jacopo de Benedetti de Todi (1236-1306), irmão leigo da ordem franciscana; e a Santo Tomás de Aquino (1225-1274).

Os trovadores da França receberam-na depois, mais desenvolvida, dos árabes da Espanha.
Lucien-Paul Thomas, sagaz estudioso do verso francês, ofereceu restrições à rima, sem, entretanto, condenar, de maneira absoluta, os recursos consonânticos — recorda Mello Nóbrega, o ourives incansável de "Rima e Poesia".
O que Thomas pregava era, apenas, a necessidade de atenuar e, se possível, renovar esses recursos. Não deixou de reconhecer, reverentemente, o valor de grandes obras rimadas, como as baladas de Villon, as tragédias de Corneille e de Racine, os cantos tristonhos de Baudelaire, o hermetismo atraente de Mallarmé, os sonetos de Leconte de Lisle e de Herédia. Não queria renunciar, precipitadamente, ao passado. Pensava, apenas, num reajustamento artístico, movido pela sucessão incontida dos fenômenos sociais e científicos.
Almejava um ponto de equilíbrio entre o abandono definitivo da rima e o seu emprego comedido. O que lhe repugnava era o uso retórico da rima, era a sua redundância, era a sua obrigação sistemática. Ele aceitava a rima acidental, não a imperativa.
Das opiniões de Thomas, conclui-se que condenar, intransigentemente, a rima, mesmo aquela que caiba sem esforço na construção de um verso, é ameaçar a beleza da arte.

A rima, de fato, é válida, mais que isso, necessária, desde que não perturbe o encanto, a espontaneidade, a magia da mensagem poética.
É importante, a função sonora da rima. Todavia, não tem ela um valor absoluto. Terá pouco valor se, com sua maviosa sonoridade, não servir de adorno útil para o sentido do poema. Agradar, apenas, pelo som, não é suficiente. Precisa participar, também, da mensagem poemática.
A boa rima não é, especificamente, a "rica". É aquela que se confunde com o desenvolvimento do tema, aquela que se identifica com as imagens e o significado das palavras.
Deve-se, aliás, atentar para os absurdos a que, de maneira quase fatal, nos conduz a rima rica, ou seja, o culto exagerado da rima, decorrente do chamado "culto da forma".

O soneto parnasiano, em seu apogeu, sofria, se tratado com exagero, as conseqüências desse defeito, pois, muitas vezes, era uma luz perdida nos emaranhados do preciosismo, ou do virtuosismo. Era, em geral, brunido, mas gélido; trabalhado, mas impassível. Era a pompa das expressões convencionais e das rimas polidas. Enquanto isso, a própria harmonia ficava algo sacrificada, e a poesia, não raro, esquecida.

Para se calcular como os clássicos dispensavam pouca atenção à exigência desse tipo de rima, basta ler o que diz Mello Nóbrega, sobre o assunto:
"Os Lusíadas, lembremo-lo, em seus 8.816 decassílabos, apresentam apenas cerca de 450 consonâncias, predominando as constituídas por terminações muito comuns: 210 em ado, 135 em ia, 130 em ada, 121 em ava, 97 em ados, 95 em mente, 89 em ido.
Somente nessas sete rimas, portanto, 877 versos, equivalentes a dez por cento, mais ou menos, do total do poema".

Daí a conclusão de Agostinho de Campos: "A rima em Camões é pobre, isto é, fácil, prevista, trivial".
Vamos preservar, respeitar e cultivar a simplicidade da nossa poesia.
As regras rígidas, implacáveis, a respeito de rimas, devem ser olvidadas pelos poetas que o sejam por vocação, ou inatos.

Mello Nóbrega nos diz que Gomes de Melo, ao levantar o rimalho de alguns poetas de renome, chegou a conclusões interessantes:
"Guerra Junqueiro rimou flores com amores 34 vezes em um só de seus livros; Gonçalves Crespo, em 54 sonetos, consonou 22 em oso, ada, osa e ado; João Penha, em 46, usou todas essas rimas e mais ante e ente; Manuel Duarte de Almeida, em 50, empregou-as 33 vezes; Antônio Nobre, em 80 poemas, valeu-se delas para compor 56; Antero de Quental, 68, em 109 poesias; e até Eugênio de Castro, tão intolerante com a escassez e o cansaço do rimário alheio, em 35 poemas de "Belkiss", recorreu àquelas terminações banalíssimas para escrever 24...”
Este último, que, como vimos, abusou das rimas pobres, escreveu, entretanto, sem qualquer cerimônia, no antefácio de seu livro "Oaristos", criticando outros poetas:
"No tocante à rima, uma pobreza franciscana: lábios rimando com sábios; pérolas com cérulas; sol com rouxinol; caminhos com ninhos; noite com açoite; um imperdoável abuso de rimas em ada, ado, oso, osa, ente, ante, ão, ar...”

Prossegue Gomes de Melo assinalando que "o Padre Agostinho de Macedo, em "Oriente", usou 54 vezes a aproximação guerra-terra; e que, numa de suas coletâneas de poemas, Guerra Junqueiro tem 60 versos em que ninhos está a rimar com caminhos".
Em "Eu e outros poemas", de Augusto dos Anjos, as palavras "alma" e "calma" encontram-se 11 vezes acrescentamos nós.

Outra observação interessante lembrada por Mello Nóbrega:
— "Em poetas brasileiros e portugueses são encontradiços esses acasalamentos de palavras, que Cavalcanti Proença alcunhou de "rimas de corda e caçamba": alma, calma; chuva, viúva; noite, açoite; sombra, alfombra; olhos, abrolhos; seda, alameda; noivo, goivo; água, mágoa; monge, longe... algumas decorrentes da escassez de vocábulos e outras por se haverem tornado inseparáveis pelo uso". Defeito muito mais grave é, porém, apegar-se à rima pedante, que repugna à boa formação do soneto, como de qualquer outro tipo de poema.

A palavra abalizada e insuspeita do parnasiano Alberto de Oliveira, combatendo os males da rima difícil, é bem eloqüente:
"Impera triunfal a rima. Tudo são rimas, e como algumas, pelo uso demasiado, soam já desgraciosas e exaustas, recorre-se a desinências inauditas, apostam-se muitos em ver qual assoalha maior riqueza de consoantes; desprezam-se as triviais, as que por todos podem ser encontradas, para que o leitor se maravilhe a cada passo com as extraordinárias, as imprevistas, os "achados felizes". O que resulta é fácil de ver e temo-lo de contínuo diante dos olhos: resultam versos admiravelmente bem rimados; mas como rimar admiravelmente bem, rimar surpreendentemente, rimar como ninguém rima, servindo-se de rimas jamais usadas, foi o móvel quase exclusivo deste ou daquele poeta, os versos feitos a esse intento vêm frios, sem alma, sem vida e apenas... bem rimados. Idéias e sentimentos ninguém exprime apenas com boas rimas e estas, evadindo a vulgaridade, podem, algumas vezes, pela rebusca ou extravagância, resvalar no ridículo".

Alberto de Oliveira assinalou no início do trecho que acabamos de transcrever: "Impera triunfal a rima. Tudo são rimas...”

Mas, afinal, em português, por exemplo, todas as palavras têm rimas?
Mário de Alencar, em seu dicionário de consonâncias, revela que, em nossa língua, não encontrou rima para 146 palavras e locuções, inclusive nomes próprios. Ao que parece, a relação está incompleta, além do que não foi feita com o necessário cuidado.
Isto, porém, não é problema para o poeta, embora seja lamentável que, na linguagem brasileira, não tenhamos rima, por exemplo, para a querida palavra "mãe", no singular.

O Padre Manuel Albuquerque, excelente poeta, autor de maravilhosos sonetos dedicados a Nossa Senhora — a "Mãe Sempre Virgem" — lembra que essas três palavras não têm rima; e conclui um de seus sonetos com este terceto:

"Língua não há que tanta glória exprima!
Nem mesmo a Portuguesa, a mais completa!
E "MÃE"... e "SEMPRE"... e "VIRGEM"... não têm rima!".


Quanto à sua acentuação, as rimas, na língua portuguesa, podem ser:
— "agudas" (oxítonas ou masculinas)
—"graves" (paroxítonas, ou dissilábicas, ou barítonas  ou femininas)
— "esdrúxulas" (proparoxítonas, ou trissilábicas, ou dactílicas).

Em português, existem também, meramente teóricas, as rimas "hiperesdrúxulas", de acentuação anterior à antepenúltima sílaba.
Delas, porém, não vamos tratar, por ser uma extravagância que não se usa senão por capricho ou disparate ("ilumína-se-lhe"; "párte-se-lhe"; "estênde-se-lhe"; "dávarno-vo-lo"...).

As rimas de terminação "aguda" são relativamente raras. Nos clássicos portugueses tinham, por função principal, ajustar a cadência do verso. Em toda a "Commedia", de Dante, existem, apenas, 32 versos desse tipo. "Os Lusíadas", de Camões (8.816 decassílabos), tem, apenas, 443 agudas, contra 8.186 graves e 187 esdrúxulas.

No seu "Dicionário de Rimas", Costa Lima (Lisboa, 1952) fez o seguinte levantamento, sobre 49.000 verbetes: 51 rimas agudas, 1.213 graves e 714 esdrúxulas (total: 1.980).
Na língua portuguesa, a rima predominante, quase que exclusiva, é a "grave" (paroxítona), constituindo o padrão prosódico.
E isto se justifica, uma vez que nosso vocabulário é formado, em grande maioria, de palavras de acento grave. Além de tudo, são as mais harmoniosas.

Olavo Bilac e Guimarães Passos escreveram, no seu Tratado de Versificação:
— "No soneto clássico, todos os versos são graves. Mas os poetas brasileiros costumam, às vezes, ora entremear nos quartetos e nos tercetos rimas graves com agudas, ora conservar nos quartetos todas as rimas graves, e terminar os dois tercetos com uma rima aguda. A segunda forma é a mais freqüente".

A rima “esdrúxula" sempre sofreu restrições na poesia de nossa língua. Antigamente e, muitas vezes, ainda hoje, seu emprego ficava e fica restrito às composições de fundo humorístico.
É oportuno registrar-se que, na língua portuguesa, certas rimas proparoxítonas se tornam paroxítonas ("graves"). Isto acontece quando as duas últimas sílabas de um verso se contraem em uma, por sinérese. Assim, o acento predominante passa para a penúltima sílaba, e a rima, portanto, fica sendo grave. Exemplos de palavras desse tipo: silêncio, ânsia, história, lábio, sério. pálio, dúbio, etc.
Aliás, não só no final do verso, mas em qualquer parte do mesmo, a sinérese acontece.
No século passado, João Nunes de Andrade distinguia dois tipos de vocábulos proparoxítono: "velozes" ou "rigorosos", em cujas finais aparece uma consoante entre duas vogais ("hórrido", "inválido", "acadêmico"); e "tardos" ou "impróprios", os terminados em duas vogais ("Trácia", "Castália", "eficácia")".

E isto é válido, ainda hoje, principalmente no Brasil.
Concluindo a primeira parte deste capítulo, desejamos mencionar uma curiosidade.
Quando escrevemos sobre rimas, referimo-nos, apenas, às chamadas "externas" ou "finais", de uso secular e constante, ou seja, aquelas que ficam no final do verso.
Há, todavia, as rimas "internas", não mais usadas atualmente e que podem ser "iniciais" ou "mediais".

Valemo-nos, ainda, de Mello Nóbrega, para citar, nessa ordem de idéias, dois interessantes sonetos de José Jambo da Costa, "estudioso das velhas formas rítmicas".
O primeiro, com rimas "iniciais" e o segundo com rimas "mediais", ambos sem prejuízo das rimas "externas".

Eis o soneto de rimas "iniciais", intitulado "Sonho":

Chama da vida a iluminar a sina.
Norte do audaz, que, sem temer o incerto,
ama e se arroja à glória peregrina
morte num mundo, sempre, atro e deserto.

Suporte imaterial da ânsia divina,
auriflama que mostra o céu mais perto,
forte pampeiro em vôos por campina,
rama florida, sol, sobre a alma, aberto!

Alvorada do dia ainda remoto
ave anidada (1) no desvão ignoto!
dourada rosa a esconder a cruz (2)

Nave dos Sete Mares da Esperança,
perdida nos sem-fins da alma-criança,
vida dos mortos, pão dos cegos... Luz!



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(1)     Anidada = aninhada
(2)     O poeta separou as vogais (a esconder) tornando defeituoso o verso.
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E o soneto de rimas "mediais":

Não vos peço, Senhor, sonho e alegria,
piedade para a dor que me apunhala,
nem mais calor, em noite negra e fria,
para o amargor, o fel, que o lábio cala!

Quero apenas o amor, a poesia,
o infinito dulçor de vossa fala,
como uma flor de lírica magia
a abrir-se, luz e cor, em mim, a amá-la.

Dai-me a pureza, a minha fé perdida
bálsamo da tristeza que me mata!
Devolvei-me a beleza e o amor à vida!

Vinde, Sol da Bondade, estou de bruços,
vestido de humildade. (O templo é a mata!)
Cobri de piedade os meus soluços!

  
Entremos na segunda parte do capítulo.

A rima, esse fenômeno de natureza auditiva, apareceu nos versos latinos chamados "leoninos", com Virgílio (anos 70-19 a.C.), que rimava, às vezes por acaso, os dois hemistíquios entre si.

"A rima do final do verso — registra a Delta Larousse — também aparece no fragmento que encerra as "Instructiones", de Comódio (séc. III d.C.)".
No século IX, como vimos, os poetas a usavam nos hinos religiosos.
Inexistente nas literaturas clássicas, grega e latina, foi lembrada e adotada pela poesia medieval.
A rima veio a firmar-se como elemento fundamental da poética lusitana, a partir do século XII, para sofrer uma curta ausência no século XVIII (arcadismo). No Brasil, os poetas a praticaram sempre, mesmo na fase arcádica. E como!...

Mas, o que existe sobre a classificação das rimas?
Grandes figuras da literatura poética mundial, inclusive brasileira, estudaram esta matéria, com razoável profundidade. Nós, porém — e já o frisamos — não nos estendemos até o âmago do problema, porque foge, ele, ao objetivo principal da obra, que não é rigorosamente didática. É expositiva, tendo como endereço certo pessoas (poetas ou não) que possuam conhecimentos ponderáveis de poesia, especialmente do soneto.

Então, vamos simplificar o assunto, mostrando, apenas, aquilo que possa ir ao encontro dos possíveis interessados.
Vejamos o que falam os mais difundidos tratadistas de versificação, livros obrigatoriamente consultados pelos iniciantes e mesmo praticantes da arte poética.

—"Os tratados de versificação — diz Amorim de Carvalho, tratadista português — não fazem poetas, mas podem ensinar os poetas a fazer versos".
Consultemos o "Tratado de Metrificação Portuguesa" (1851), do Visconde de Castilho. (Antônio Feliciano de Castilho); o "Tratado de Versificação Portuguesa" (1928), de Alfredo Pimenta; e o "Tratado de Versificação" (1905), de Olavo Bilac e Guimarães Passos.
Todos esses autores abordam o problema de maneira muito simples e aqui vale a pena reproduzir suas opiniões que, aliás, coincidem perfeitamente nesse particular.
Pode-se, mesmo, dizer que um repete o outro, e isto significa que, pelo menos, em língua portuguesa, a orientação está unificada.

Segundo esses autores, há, apenas, duas espécies de rimas:
— "toantes" (impuras, ou imperfeitas) — a homofonia só atinge as vogais; e

— "consoantes" (puras, ou perfeitas) — a homofonia é formada pelas vogais e consoantes.


Esses dois tipos de rima são defendidos nos três livros, embora variem em alguns detalhes.
A verdade é que os autores se completam e, assim, resolvemos reunir as suas diversas informações em uma só, fazendo um resumo.
Rimas "toantes" são aquelas que têm a mesma vogal na sílaba predominante e, ainda, igualdade de vogal na sílaba breve que se lhe siga. Havendo duas silabas breves depois do acento, deve haver, também, coincidência na última vogal.

Toantes agudas: pá, faz, banal, geral, etc. (Aqui, é óbvio, só vale a vogal da sílaba predominante, pois, sendo rimas agudas, não se segue nenhuma sílaba breve.)

Toantes graves: casto, santo, rebanho; festa, cratera; antigo, ninho; lua, planura, etc.

Toantes esdrúxulas: boníssimo, martírio, discípulo, honorífico, etc.


Rimas "consoantes" são as que se harmonizam inteiramente no som, desde a vogal ou ditongo do acento predominante até a última sílaba.

Consoantes agudas: mão, paixão, amarão, etc.
Consoantes graves: profeta, poeta, meta, etc.
Consoantes esdrúxulas: pálido, cálido, inválido, etc.

À exceção dos poetas espanhóis, já ninguém emprega as toantes. Assim, o que nos interessa são apenas as consoantes.
A rima "consoante" pode ser: "completa" ou "incompleta".

"Completa"   quando a homofonia abrange a consoante ou consoantes de apoio da sílaba predominante.
Exemplos: amado, rimado; granito, infinito; beleza, realeza; porta, importa; candelabro, descalabro; etc.

"Incompleta" — quando a homofonia só começa depois da consoante ou consoantes de apoio da sílaba predominante.
Exemplos: celeste, quiseste; triste, subiste; desejo, vejo; sonho, tristonho; etc.

Rima consoante completa é a que alguns outros autores denominam rima "rica". Inclusive Osório Duque Estrada, como demonstramos adiante.
Há poetas exigentes, embora poucos, que acham, mais, o seguinte: as palavras de igual categoria gramatical são rimas consideradas mais pobres que aquelas de categoria gramatical diferente.
No caso, rimas melhores são as de um verbo com um substantivo, de um adjetivo com um advérbio, etc., ao invés de dois substantivos, dois adjetivos, dois verbos, dois advérbios, etc. Dois verbos do mesmo modo, tempo, número e pessoa, não devem ser rimados.

Dentre as palavras de idêntica índole gramatical, as de rimas menos pobres, entre si, são os substantivos; depois os adjetivos; depois os verbos. São rimas plausíveis aquelas que se compõem de verbos diferentes em modo, tempo, número e pessoa.
Rimam bem: edificaram e param; está e fará; estivesse e tece; diz e ouvis; disse e subisse; etc.

Vale, aqui, ressaltar algumas considerações a respeito de formas rítmicas usadas em Portugal e ligadas à pronúncia no Brasil.
Manuel Bandeira comentou, a propósito das correspondências "ejo, eijo"; "us, úis"; "oz, óis"; "ãs, ães"; "az, ais"; e "echa, eixa":
 —"Na pronúncia rigorosa, essas rimas são incompletas. Correspondem, porém, à prosódia brasileira corrente".

Em outra oportunidade, ainda, Manuel Bandeira observou, com referência aos grupos "ejo, eijo"; "ôca, ouca"; "oso, ouso"; "oxo-ouxo"; "ôro, ouro"; "echa, eixa"; e "oda, ouda":
— "Todas essas rimas obedecem à pronúncia usual brasileira, algumas mesmo (aquelas em que entre o ditongo "ou"), à pronúncia normal portuguesa. Todavia, os nossos parnasianos mais rigorosos procuraram evitá-las. Creio que lhes soavam como uma licença ou desleixo fonético, coisas que não admitiam. A única, talvez, largamente empregada foi a de beijo com desejo, vejo, etc., encontradiça até em Bilac. O que os mestres mais apurados nunca fizeram foi rimar "ais", "éis", "óis", "úis", com "ás", "és", "ós", "uz", como era comum entre os românticos. As exceções que conheço são as de Alberto de Oliveira, em relação à última rima "úis", "uz" ("azuis", "luz") e à primeira "ais", "az", no soneto "Saudade da estátua", onde "traz" rima com "mais". No entanto, todos os parnasianos rimaram abundantemente vogais abertas com vogais fechadas: aposto, rosto; melhores, flores; bela, estrela. Rimas quase que só para os olhos".

Costa Lima arrolou "ejo, eijo"; e "ô, ou", como rimas perfeitas. Osório Duque Estrada incluiu nessa classificação as rimas em "ôga, ouga"; "ôsa, ousa"; "ôto, outo"; "ô, ou".

Observe-se que Hermes Fontes, inimigo declarado das rimas imperfeitas, nunca rimou "beijo" com "desejo". Escreveu que isto não é rima, é arranjo. "O mesmo que rimar "meigo" com "morcego".
Ora, não se pode levar em conta esse exagero do magnífico poeta de "Apoteoses".

A rima completa, ou rica, não deixa de ser um grilhão prendendo poetas sem talento, e, por isso mesmo, serve para afastar possíveis intrusos da poesia. Mesmo assim, é fora de dúvida que um poema vazado, apenas, em rimas ricas, corre o perigo de ficar prejudicado em seu pensamento poético e, inclusive, sujeito a incidir em monotonia.
Os poetas brasileiros e portugueses não fazem questão de que as rimas sejam "completas" ou "incompletas". Adotam-nas indiferentemente. Basta que sejam rimas "consoantes". A rima, em geral assim se julga, será incomum para não ser corriqueira. Não, porém, rebuscada que possa parecer ridícula.

Menos exigentes, os poetas de nossa língua acham, portanto, o seguinte: para que as rimas sejam boas, é bastante que as vogais de acento predominante tenham valor igual.
Rimam bem:
cego e alego; floresta e festa; céus e véus; fé e sé; cálido e pálido; etc.

Rimam mal:
prego e sossego; festa e cesta; fé e dê; céus e Deus; etc.

Admitindo-se, porém, que fossem, ou sejam, quase todas, aceitas pelos maiores poetas, figura-se necessário haver uma seleção, permitindo-se o uso, somente, daquelas que oferecem diferenças mínimas de pronúncia, ou seja, daquelas que tenham a quase perfeita igualdade fonética nas vogais tônicas. É preciso muita cautela.

A rima consoante, suposta completa, satisfaz plenamente às exigências de todos os estudiosos do assunto e dos poetas de conhecido rigor; enquanto isso, campeia, livre, a consoante incompleta.
É suficiente que folheemos as "POESIAS" de Olavo Bilac, para chegarmos a esta conclusão: em que pese o seu devotado culto à forma e sua luta "em prol do Estilo", escreveu ele poemas dos mais belos da língua, empregando, quase sempre, de preferência mesmo, as rimas consoantes incompletas. São as rimas tradicionais.

Verificaremos isto, abrindo, ao léu, algumas páginas de sua obra:

"Inda hoje, o livro do passado abrindo,
lembro-as e punge-me a lembrança delas;
lembro-as e vejo-as, como as vi partindo,
estas cantando, soluçando aquelas".

"Se por vinte anos, nesta furna escura,
deixei dormir a minha maldição,
hoje, velha e cansada de amargura,
minha alma se abrirá como um vulcão".

"Dormindo no calor do mesmo leito,
votando os corações à mesma sorte,
consigo levam à velhice e à morte
um recato de orgulho e de respeito..." 

"Não sei. Duvido e espero. Na ansiedade,
vago, entre vagas sombras. Se não rezo,
sonho; e invejo dos crentes a humildade
e o orgulho dos filósofos desprezo".

"Mas sempre sofrerás neste vale medonho. . .
Que importa? Redentor e mártir voluntário,
para a tua miséria um reino imaginário
invento, glória e paz num futuro risonho".

"Há no amor um momento de grandeza,
que é de inconsciência e de êxtase bendito:
os dois corpos são toda a Natureza,
as duas almas são todo o Infinito".

"Campeão e trovador da Idade Média,
herói no galanteio e na cruzada,
viver entre um idílio e uma tragédia;

e morrer em sorrisos e lampejos,
por um gesto, um olhar, um sonho, um nada,
traspassado de golpes e de beijos!".


É a rima que corresponde aos desejos, ao bom gosto dos nossos poetas. É a rima universalmente adotada. A ela se prende a poesia dócil, a mais bonita. Rigores maiores contribuiriam para complicar a poesia, roubar-lhe a simplicidade, alienar a graça espontânea de suas imagens, cercear essa enorme gama de recursos verbais que pode proporcionar a nossa formosa língua.



A opinião de Osório Duque Estrada

Osório Duque Estrada (Joaquim) — 1870-1927, autor de um pequeno dicionário chamado "Rimas Ricas" (1915), escreveu, no prólogo de seu livro, o seguinte:
— "Nem todas as rimas são iguais. Há rimas "vulgares", "boas" e "ricas" — o que não quer dizer que as últimas não possam ser, algumas vezes, "más", e até mesmo "péssimas". Em geral, devem ser preferidas as de categorias gramaticais diferentes, isto é, as que não resultam da combinação de substantivos com substantivos, verbos com verbos, adjetivos com adjetivos, etc. Outro, no entanto, é o critério adotado para a classificação das rimas em "vulgares" e "ricas". "Rimas vulgares" (embora boas) são as que oferecem apenas uma identidade de som da vogal predominante, representando assim um "mínimo de rima" já bastante apreciável e suficiente para satisfazer às exigências do ouvido; ex.: "amar" e "luar"; "mata" e "desata". "Rimas ricas” são as que, além da identidade do som da vogal, oferecem também a de toda a articulação da sílaba sonora, aparecendo a vogal precedida de uma consoante também idêntica, chamada "consoante de apoio"; ex.: "estilhaço" e "palhaço"; "retalha" e "batalha"; "dizimar" e "patamar"; (de "A arte de fazer versos").

E termina Osório Duque Estrada com esta nota:
—"Conservaram-se neste dicionário algumas rimas que, embora não sendo ricas, são, contudo, muito raras".
Ë óbvio que as rimas, por si sós, não salvam os maus versos, como afirmou Guyau: "Une rime riche n'a jamais sauvé un mauvais vers".

Mas, Banville escreveu: "Sans consonne d'appui, pas de rime, et par consequent, pas de poesie".
Foi por influência dos parnasianos franceses que os poetas portugueses e brasileiros se fixaram, teoricamente, na denominada consoante de apoio. Entretanto, na prática, não raras vezes dispensaram e dispensam a exigência sistemática da rima rica.

Costuma-se citar, como caso incomum, o poeta Goulart de Andrade, que a empregou com insistência, na primeira série de suas POESIAS (1907).
La Fontaine, excelente rimador, não adotava os rigores da rima rica. Lamartine e Musset eram da mesma opinião.
Olavo Bilac, "imitador do ourives", escreveu, na "Profissão de Fé":
"Invejo o ourives quando escrevo:
    imito o amor
com que ele, em ouro, o alto relevo
          faz de uma flor".

Apesar disso, não empregava, de maneira absoluta ou com a freqüência pensada por muitos, a rima rica. Nem na própria "Profissão de Fé".
Sem dúvida, um dos mais inspirados poetas da língua portuguesa, não tinha, como vimos páginas atrás, a obsessão dessa modalidade de rima, no que fazia muito bem, porque, embora sem tal preocupação, ou talvez por esse motivo, conseguiu compor poemas imortais, principalmente sonetos imortais.

Resumindo tudo: um poema, inclusive soneto, pode ser feito com rimas apenas suficientes, melhor dizendo, com rimas consoantes, mesmo incompletas. Deixemos a rima rica para os teoristas do verso, que ficam quase sozinhos quando pregam o reforço da rima completa com a denominada consoante de apoio. Ou para aqueles que a adotaram com o intuito de demonstrar virtuosismo.

Eis alguns exemplos de rima rica, na concepção de Osório Duque Estrada:

"Misérrimo! Correu o mundo "inteiro",
e no mundo tão grande . . . o "forasteiro"
não teve onde. . . pousar".
(Castro Alves)

"Tudo é luz e esplendor; tudo se "esfuma":
as carícias da aurora, o céu risonho,
ao flóreo bafo que o sertão "perfuma"!"
(Fagundes Varela)

"Era uma mosca azul, asas de ouro e "granada",
filha da China ou do Indostão,
que entre as folhas brotou de uma rosa “encarnada”...”
(Machado de Assis)

"Outrem é que devia ser o "eleito",
não eu, eu que a adorava antes de vê-la,
eu que a chamei chorando de meu "leito"...
(Alberto de Oliveira)

"Ribomba, estoura, estruge, espoca, estronda, "esbarra",
abandonado avulta o vigia da "barra".
(Goulart de Andrade)

"... e pisaram em "falso"!
Mas na tua hora escura,
subindo, humílimo, os degraus do "cadafalso"..."
(Murilo Araujo)

Não queremos encerrar este capítulo sem citar, por dever de justiça, alguns versos de rima rica de Bilac:

"Tu cantarás na voz dos sinos, nas "charruas",
no esto da multidão, no tumultuar das "ruas"..."

"O medonho estridor da sanha da "batalha"...
Quando a noite descia, a treva era a "mortalha"..."

“... E enquanto houver num canto do "universo"
quem ame e sofra, e amor e sofrimento
saiba, chorando, traduzir no "verso"."

"Elêusis profanou! É falsa e "dissoluta",
leva ao lar a cizânia e as famílias "enluta"!"

"Pois o berço, onde a boca pequenina
 abre o infante a sorrir, é a "miniatura",
a vaga imagem de uma "sepultura"...”

"E eu, solitário, volto a face e "tremo",
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho "extremo"."

"De longe, ao duro vento opondo as largas "velas",
bailando ao furacão, vinham as "caravelas"..."

*

O assunto é rima. E aqui, na terceira e última parte do capítulo, aproveitamos o ensejo para prestar um esclarecimento àqueles poetas que, em dúvida, nos perguntam por que não é obrigatório, atualmente, o uso da forma petrarquiana (ABBA ABBA CDC DCD).
Na verdade, o soneto — nunca é demais repetir — permitiu sempre, desde o início, certas liberdades na distribuição das rimas; porém, de uma coisa jamais abriu mão: os quartetos devem ter apenas duas rimas e os tercetos duas ou três, não importando a ordem em que são apresentadas, desde que se evite o abuso.

O próprio Petrarca, de certa maneira, libertou-se da regra, nesse particular. 

Evidentemente, nosso intuito não é criticar, nem, sequer, avaliar as colocações poéticas do grande, do inimitável sonetista.
Mas, quem faz pesquisa não tem o direito de se omitir em nada, sob pena de pecar por negligência, desconhecimento, ou acomodação. Acreditamos seja, realmente, cabível a sondagem curtíssima que ora fazemos.
Para isso, baseamo-nos em "O Cancioneiro de Petrarca", de famil Almansur Haddad, que apresenta, em originais do poeta italiano e traduções suas, 55 sonetos e 9 poemas de outros tipos, todos com numeração seguida, em algarismos romanos, dada pelo tradutor. Esta é uma boa amostragem, em termos de apreciação, apenas técnica, da obra completa do autor.

Vejamos os 55 sonetos, em seus originais:
Quartetos — 52 sonetos têm as rimas ABBA ABBA, exatamente iguais às da forma adotada por Petrarca; há dois (XXIII e LIV) com as rimas ABAB ABAB; e outro com as rimas ABBA BBAA, muito estranhas, na verdade.

Tercetos — Aí, as anomalias são bem maiores. Nos 55 sonetos, as rimas aparecem assim: 23 com as rimas "oficiais" CDC DCD; também 23 com as rimas em ÇDE CDE; 7 com as rimas CDE DCE:
1 com CDD DCC; e 1 com CDE DEC.

Conclui-se que o soneto petrarquiano não era seguido, com o devido rigor, nem mesmo pelo próprio Petrarca. Os tercetos, principalmente.
Então, o grande sonetista não se imortalizou pela sua obediência à estrutura petrarquiana, e sim, aliás muito justamente, pelas mensagens petrarquianas, pela milagrosa inspiração petrarquiana, pelo gênio petrarquiano.
Não podemos, pois, reprovar aqueles poetas que usam certa liberdade de escolha na disposição das rimas de um soneto, desde que seja respeitado, insistimos, o emprego de duas para os quartetos, e duas ou três para os tercetos.






(Das páginas 139 a 154 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)

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