Grandes sonetos da nossa língua/Organização e seleção de José Lino Grünewald – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
Grandes sonetos da nossa língua
(orelhas do livro)
Esta é a mais completa reunião de sonetos escritos em português já
editada no Brasil. É uma grande viagem pelo mundo da poesia, que começa com Sá
de Miranda e Luís de Camões e termina na revolucionária feita quase
inteiramente de palavras novas de Jorge de Sena. Nela o leitor passará por
todos os movimentos literários que já existiram no Brasil e em Portugal, além
dos casos à parte na literatura como Augusto dos Anjos e seus Versos Íntimos (“O beijo é a
véspera do escarro/A mão que afaga é a mesma que apedreja”). Há versos que
fazem parte da memória nacional, como os de Vinícius de Moraes no Soneto da Fidelidade (“De tudo ao meu amor serei atento
antes”) ou os de As pombas de Raimundo Correa
(“Vai-se a primeira pomba despertada”), convivendo lado a lado com pouco
conhecidas inovações experimentais como os sonetos de Mário Faustino.
Esta obra é, enfim, um magnífico retrato através dos tempos da luta do
poeta com “a última flor do Lácio, inculta e bela”, como chamava Olavo Bilac a
língua portuguesa, para, dentro da forma fixa há séculos, seja com métrica
perfeita e rimas ricas, em octassílabos, decassílabos ou alexandrinos, em
versos brancos ou reinvenções, dizer algo sempre novo e original.
A
seleção dos sonetos apresentados obedeceu a seus critérios básicos: o de serem
consagrados, independente do gosto da crítica ou do público atual, os grandes
sonetos, qualquer que seja o movimento literário a que pertençam, os
inovadores, o soneto metalingüístico, os que criaram alguma expressão que se
incorporou ao idioma e os por assim dizer obscenos.
Foram organizados e selecionados por José Lino Grünewald,
que escreveu também o texto introdutório deste livro (Soneto: Sal e Sol da Pura Forma). Poeta e crítico, foi um dos fundadores
do movimento Poesia Concreta ao lado de de Haroldo e Augusto
de Campos e Décio Pignatari. Recentemente traduziu Os
Cantos
de Ezra Pound, um outro grande lançamento da Nova Fronteira.
SONETO:
SOL E
SAL DA PURA FORMA
José Lino Grünewald
A
palavra soneto vem de som (son, desde o
provençal). Daí, o sonetto, lançado na
Itália, terra onde, pelo menos na fase iniciou, mais brilhou: do siciliano
Giacomo de Lentino (século XIII) e também Pier delle Vigne, passando por
Guittone d'Arezzo (segundo consta, o primeiro a estabelecer as regras de obrar
essa forma fixa), e Guido Guinizelli, chegamos ao trio sem igual: Cavalcanti,
Dante e Petrarca.
Depois
de Petrarca, o soneto inundou o mundo. Na França, com Marot e a turma da
Plèiade (Ronsard, Du Bellay etc); Na Espanha, com Garcilaso de La Vega; na
Inglaterra, de Surrey e Sir Thomas Wyatt, até desembocar no gênio de Shakespeare; em
Portugal, com outro trio inigualável na língua: Sá de Miranda, Luís de Camões e
Diogo Bernardes. Veio o barroco logo em seguida e, principalmente, o marinismo de Giambattista Marino, quando imagens e
sons dentro do verbo se entrelaçavam nos notáveis jogos de sutileza formal e
conceitual: basta lembrar Gôngora.
Na
época pré-moderna e moderna, o gênero continuou dando as cartas. Baudelaire, na
França, introduziu inovações na métrica e nos sistemas de rima. E lá o
acompanharam simbolistas ou paralelos, como Verlaine, Rimbaud, Corbière,
Laforgue e, principalmente, Malarmé. O soneto francês promovia a glória do
verso alexandrino (doze sílabas, divididas em dois hemistíquios de seis), além
do octossílabo. Esse modelo era mais fácil na estirpe de Racine porque, na língua
francesa, há uma grande freqüência de palavras oxítonas.
E no
idioma inglês permanecia a ascendência das quatorze linhas, com os grandes
nomes de Wordsworth, Keats, Elizabeth Barrett Browning ou Dante Gabriel
Rosseti. Vale ressaltar que o soneto inglês, em geral, desde Wyatt e
Shakespeare, ao contrário do módulo de dois quartetos e dois tercetos com rimas
alternadas, utiliza aquele de três quartetos e um dístico final, rimando os
dois versos.
Evidentemente que, em especial a partir do século passado — com as
grandes correntes ou escolas literárias — a forma fixa (quatorze linhas) sofreu
alterações de superestrutura e, com maior freqüência, nos esquemas rimários.
Faziam-se até com versos brancos (sem rima).
No
Brasil, o soneto foi praticamente introduzido pelos poetas barrocos: Gregório
de Matos, Manuel Botelho de Oliveira etc. Mas foi com os parnasianos que
encontrou a sua grande glória, e nisso já emerge novamente outra trindade:
Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Mas, se levam a glória da
popularidade, são obrigados a dividir o bastão com os simbolistas. Nem tanto os
mais divulgados, como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, porém nomes como
os de Da Costa e Silva, Pedro Kilkerry, Raul de Leoni.
O
século atual assistiu, em Portugal, ao esplendor de Fernando Pessoa, logo
seguido, quase em mesmo brilho, no soneto, por Mário de Sá Carneiro. Aqui, no
entanto, os nossos grandes poetas modernos também souberam esmerar-se no gênero
e tivemos contribuições originais e da maior voltagem de um Manuel Bandeira, um
Jorge de Lima, um Carlos Drummond de Andrade, um Vinicius de Moraes, um Mário
Faustino.
O
soneto, pode-se dizer, é quase um esporte em matéria de poesia. Mário Faustino
dizia que o fazia a fim de "exercitar a munheca" — com o objetivo de
se preparar para as grandes obras épicas, alentadas. De qualquer modo, muito
exige do saber do metrônomo, do saber contar funcionalmente as sílabas e forjar
rimas ricas. Em suma, o soneto, em si, instiga eventuais amadores e
profissionais do versejar.
A
elaboração desta antologia atendeu aos seguintes critérios: 1— o soneto
consagrado, independentemente do gosto do organizador ou do próprio público
atual; exemplos típicos disso são o Alma Minha Gentil
Que Te Partiste
(com este seu famoso cacófato), de Camões, ou o Mal
Secreto,
de Raimundo Correia; 2 — o grande soneto, seja clássico, barroco, parnasiano,
simbolista ou moderno, seja com Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Camões,
Gregório de Matos, a turma da Fênix Renascida, Bilac, Raimundo Correia, Alberto
de Oliveira, Cruz e Sousa, Pedro Militão Kilkerry, Da Costa e Silva, Manuel
Bandeira, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Carlos Drummond de Andrade,
Vinicius de Moraes, Jorge de Lima etc; 3 — o soneto inventivo, original, tendo,
como alguns exemplos, aquele de uma sílaba só, de Martins Fontes, aquele soneto
espacializado (sem título), de Mário Faustino, ou a seqüência da Afrodite Anadiómena (formada quase toda por palavras novas, mediante a permuta de sílabas), do
português Jorge de Sena; 4 — o soneto sobre o soneto, em suma, expressões ou
meditações estéticas e/ou vivenciais sobre o próprio ato de fazer, redigir,
escrever, como no caso de Oficina Irritada, de Carlos Drummond de Andrade; 5 — um soneto que, independentemente de oferecer
ou não outros aspectos estéticos ou inventivos, criou alguma expressão verbal
que ficou na memória do público ou mesmo tornou-se integrante da fala ou de citações — estão aí
exemplos como o "pálido de espanto", de Olavo Bilac, ou "um
urubu pousou na minha sorte", de
Augusto dos Anjos; 6 - o gênero de soneto tido, vamos dizer assim, como
"obsceno", do qual o maior representante é o lendário e anedótico
Bocage — aliás, um extraordinário poeta além disso — de quem a Editora Nova
Fronteira lança uma antologia.
Voltamos
a dizer: o soneto é a mais popular e, agora, tradicional, das formas fixas. Em
seu contexto, conciso e concentrado, em suas regras de jogo verbal e de versificação altamente
policiada e autopoliciada, fizeram os poetas seus exercícios ou seus talismãs.
Vamos à viagem — sem esquecer de lembrar que esta antologia está vulnerável a críticas
sobre omissões ou exageros. Mas, quem há de?
(Páginas 19 a 21)
SAINTE-BEUVE
(UM SONETO SOBRE O
SONETO)
Não ria do soneto,
ó crítico em humor;
Outrora por amor o
fez o grande Shakespeare;
Nessa lira feliz, Petrarca só suspira,
Nessa lira feliz, Petrarca só suspira,
E Tasso nos
grilhões mitiga um pouco o ardor.
Camões em seu
exílio abrevia uma via.
Porque canta em
sonetos o amor que mira.
Ama Dante essa flor
de mirto e a respira,
Mescla-a aos louros
que cingem a fronte de guia.
Spencer ao retornar
dessa ilha das magias,
Exara em mil
sonetos as tristezas pias
Milton, cantando os
seus, reilumina o olhar.
Renovarei o doce
soneto da França;
Du Bellay, o
primeiro, o trouxe de Florença,
E sabe-se mais um
desse velho Ronsard.
23
Ne ris point du
sonnet, ô critique moqueur;
par amour autrefois
en fit le grand Shakespeare;
c'est sur ce luth heureux que Pétrarque soupire,
c'est sur ce luth heureux que Pétrarque soupire,
et que le Tasse aux
fers soulage un peu son coeur.
Camoens de son exil
abrège la longueur,
car il chante en
sonnets l'amour et son empire.
Dante aime cette fleur de myrte, et la respire,
Dante aime cette fleur de myrte, et la respire,
et la mêle au
cyprès qui ceint son front vainqueur.
Spencer, s'en
revenant de l'île des féeries,
exhale en longs
sonnets ses tristesses chéries;
Milton, chantant les siens, ranimait son regard.
Milton, chantant les siens, ranimait son regard.
Moi, je veux rajeunir le doux sonnet de France;
du Bellay, le
premier, l’apporta de Florence,
et l’on en sait
plus d’un de notre vieux Ronsard.
24
*
Sá de Miranda
(1481, Coimbra-1558, Amares - Portugal)
SONETO 11
Em
tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tão
contínua dor, que nunca aliva,
chamar
a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria
dos teus rogos, no tormento!
E ver
no mal que todo entendimento
naturalmente
foge, e quanto aviva
a dor
mais o vagar da alma cativa,
a quem
não fará crer que é tudo um vento?
Bem sei
uns olhos, que têm toda a culpa,
e são
os meus, que a toda parte vêm
após o
que veem sempre e os desculpa.
Ó
minhas visões altas, meu só bem,
quem
vos a vós não vê, esse me culpa,
e eu
sou o só que as vejo, outrem ninguém!
SONETO 12
Sá de
Miranda
Desarrazoado
amor, dentro em meu peito,
tem
guerra com a razão. Amor, que jaz
e já de
muitos dias, manda e faz
tudo o
que quer, a torto e a direito.
Não
espera razões, tudo é despeito,
Tudo é
soberba e força; faz, desfaz,
sem
respeito nenhum; e quando em paz
cuidais
que sois, então tudo é desfeito.
Doutra
parte, a Razão tempos espia,
Espia
ocasiões de tarde em tarde,
que
ajunta o tempo; enfim vem o seu dia.
Então
não tem lugar certo onde aguarde
Amor;
trata traições, que não confia
nem dos
seus. Que farei quando tudo arde?
SONETO 17
Sá de Miranda
Não sei qu’em vós mais vejo; não sei que
mais ouço e sinto ao rir vosso e falar;
não sei qu’entendo maios, te no calar,
nem quando vos não vejo a alma que vê;
Que lhe aparece em qual parte qu’estê,
olhe o céu, olhe a terra, ou olhe o mar;
e, triste aquele vosso suspirar,
em que tanto mais vai, que direi qu’ê?
Em verdade não sei; nem isto qu’anda
entre nós; ou se é ar, como parece,
se fogo doutra sorte e doutra lei,
Em que ando, e de que vivo; nunca abranda;
por ventura que à vista resplandece.
Ora o que eu sei tão mal, como o direi?
SONETO 22
Sá de Miranda
O sol é
grande; caem co'a calma as aves
do
tempo em tal sazão, que soe ser fria;
esta
água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono
não, mas de cuidados graves.
Ó
cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é
tal coração qu’em vós confia?
Passam
os tempos vai dia trás dia,
incertos
muito mais que ao vento as naves.
Eu vira
já aqui sombras, vira flores,
vi tantas
águas, vi tanta verdura,
as aves
todas cantavam d‘amores.
Tudo é
seco e mudo; e, de mistura,
também
mudando-m’eu fiz doutras cores;
e tudo
o mais renova, isto é sem cura!
SONETO 23
Sá de Miranda
Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.
Isto passado, quando me deponho,
E me quero afirmar se foi assi,
Pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.
Que, tornando ante vós, senhora, tal
quando m’era mister tant’ outr’ ajuda,
de que me valerei, se alma não val?
Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.
SONETO 27
Sá de Miranda
Este retrato vosso é o sinal
ao longe do que sois, por desamparo,
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.
Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.
Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.
Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo?
Luís de
Camões
(1524, Reino de Portugal-1580, Lisboa - Portugal)
SONETO 9
Alma
minha gentil, que te partiste
Tão
cedo desta vida descontente,
Repousa
lá no Céu eternamente
E viva
eu, cá na terra, sempre triste.
Se lá
no assento etéreo, onde subiste,
Memória
desta vida se consente,
Não te
esqueças daquele amor ardente,
Que já
nos olhos meus tão puro viste.
E se
vires que pode merecer-te
Alguma
coisa a dor que me ficou
Da
mágoa, sem remédio, de perder-te;
Roga a
Deus, que teus anos encurtou,
Que tão
cedo de cá me leve a ver-te,
Quão
cedo de meus olhos te levou.
SONETO 11
Luís de
Camões
Amor é
um fogo que arde sem se ver;
É
ferida que dói e não se sente;
É um
contentamento descontente;
É dor
que desatina sem doer;
É um
não querer mais que bem querer!
É
solitário andar por entre a gente;
É um
não contentar-se de contente;
É cuidar
que se ganha em se perder.
É um
estar-se preso por vontade;
É
servir a quem vence o vencedor;
É um
ter, com quem nos mata, lealdade.
Mas
como causar pode o seu favor
nos
mortais corações conformidade,
sendo a
si tão contrário o mesmo Amor?
SONETO 17
Luís de
Camões
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando à terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.
SONETO 50
Luís de
Camões
Doces e
claras águas do Mondego,
Doce
repouso de minha lembrança,
Onde a
comprida e pérfida esperança
Longo
tempo após si me trouxe cego;
De vós
me aparto, sim; porém não nego
Que
inda a longa memória, que me alcança,
Me não
deixa de vós fazer mudança,
Mas
quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem
poderá Fortuna este instrumento
De alma
levar por terra nova e estranha,
Oferecido
ao mar remoto, ao vento;
Mas a
alma, que de cá vos acompanha,
Nas
asas do ligeiro pensamento
Para
vós, águas, voa, e em vós se banha.
SONETO 107
Luís de
Camões
O dia
em que nasci moura e pereça,
Não o
queira jamais o tempo dar;
Não
torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse
nesse passo o Sol padeça.
A luz
lhe falte, o Sol se escureça.
Mostre
o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhes
monstros, sangue chova o ar,
A mãe
ao próprio filho não conheça.
As
pessoas pasmadas, de ignorantes,
As
lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem
que o mundo já se destruiu.
Ó gente
temerosa, não te espantes,
Que
este dia deitou ao mundo a vida
Mais
desgraçada que jamais se viu.
SONETO 109
Luís de
Camões
O fogo
que na branda cera ardia,
Vendo o
rosto gentil que eu na alma vejo,
Se
acendeu de outro fogo do desejo,
Por
alcançar a luz que vem do dia.
Como de
dois ardores se incendia,
Da
grande impaciência fez despejo,
E,
remetendo com furor sobejo,
Vos foi
beijar na parte onde se via.
Ditosa
aquela flama, que se atreve
A
apagar seus ardores e tormentos
Na
vista a quem o Sol temores deve!
Namoram-se,
Senhora, os Elementos
De vós,
e queima o fogo aquela neve
Que
queima corações e pensamentos.
SONETO 178
Luís de
Camões
Sete
anos de pastor Jacó servia
Labão,
pai de Raquel, serrana bela;
mas não
servia ao pai, servia a ela,
que a
ela só, por prêmio, pretendia.
Os
dias, na esperança de um só dia,
passava,
contentando-se com vê-la:
porém o
pai, usando de cautela,
em
lugar de Raquel, lhe deu a Lia.
Vendo o
triste pastor que, com enganos,
assim
lhe era negada a sua pastora,
como se
a não tivera merecida,
começou
a servir outros sete anos,
dizendo:
"Mais servira, se não fora
para
tão longo amor tão curta a vida".
SONETO 187
Luís de
Camões
Transforma-se
o amador na cousa amada,
Por
virtude de muito imaginar;
Não
tenho logo mais que desejar,
Pois em
mim tenho a parte desejada.
Se nela
está minha alma transformada,
Que
mais deseja o corpo de alcançar?
Em si
somente pode descansar,
Pois
com ele tal alma está liada.
Mas
esta pura e linda semidéia,
Que,
como o acidente em seu sujeito,
Assim
com a alma minha se conforma,
Está no
vivo pensamento como idéia;
E o
vivo e puro amor de que sou feito,
Como a
matéria simples, busca a forma.
Diogo
Bernardes
(1530,
Ponte da Barca-1605, Lisboa - Portugal)
SONETO 20
Um
firme coração posto em ventura,
Um
desejar honesto, que se enjeite
De
vossa condição, sem que respeite
A meu
tão puro amor, a fé tão pura:
Um
ver-vos de piedade, e de brandura
Imagem
sempre, faz-me que suspeite
Que
alguma brava fera vos deu leite,
Ou que
nascestes de uma pedra dura.
Ando
buscando causa que desculpe
Crueza
tão estranha; porém quanto
Nisso
trabalho mais, mais mal me trata,
Donde
vem que não há quem nos não culpe;
A vós,
porque matais quem vos quer tanto;
A mim,
que tanto quero a quem me mata.
SONETO 24
Diogo
Bernardes
Põem-me
onde queima o Sol toda a verdura,
Ou onde
seu ardor a neve esfria:
Põem-me
onde pelo meio o carro guia,
Ou onde
cobre, ou mostra a luz mais pura:
Põem-me
em baixa, ou próspera ventura,
No
sereno da Lua, ou na sombria
Escura
noite, em longo, ou breve dia,
Em
sazão inda verde, ou já madura:
Em
vale, em monte, em água, em fogo, em ar,
Nas
estrelas me põem, ou no profundo,
Sprito
livre, ou inda à carne atado,
Com
nome escuro, ou claro em todo o mundo,
Serei
qual fui, não deixarei de amar
A quem
amei té gora desamado.
SONETO 26
Diogo
Bernardes
Eu me
parto de vós, campos do Tejo
Quando
menos temi esta partida,
E se
minh’alma vai à dor rendida,
Nos
olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas
esperanças, mal sobejo,
Vontade
que a razão leva vencida,
Asinha
darão fim à triste vida,
Se vos
não torno a ver, como desejo.
Em
tanto nunca verá noite, nem dia
Apartar-se
de vós minha lembrança;
Amor,
que vai comigo, o certifica:
Andarão
sempre em minha companhia,
Enquanto
na tornada houver tardança,
Saudades
do bem que em vós me fica.
SONETO 37
Diogo
Bernardes
Marília,
que do céu à terra dada
Foste,
por glória sua, e nosso espanto,
Que
verso louvará, que novo canto,
Formosura
tão nova, e desusada?
Qial
serena manhã alva e rosada
Foi
nunca tão formosa, ou qual Sol tanto
O mundo
alumiou, Marília, quanto
Teis
olhos, onde Amor tem sua morada?
Se
estrelas, Lua, Sol tua beleza
Perdem
diante de ti, que desenganos
De
perlas, de rubis, de neve e rosas!
Enfim
em ti juntou a natureza
Quanto
reparte em mil, e em mil anos
Com
mil, e mil, e todas mui formosas.
SONETO 74
Diogo
Bernardes
Quão
caro venda Amor um gosto seu,
Quão
pouco tarde a pena certa e justa
Bem o
sabe minh’alma e bem lhe custa,
Que por
um (que não viu) o melhor deu.
Milagre
foi por certo escapar eu
De mar
tão furioso, em fraca fusta:
Erro seria
agora e cousa injusta,
Crer
nas cousas d’Amor inimigo meu.
Porque
nos laços seus outra vez caia,
Hora
finge, hora roga, hora ameaça,
Usa de
força, e manhã tudo tenta:
Mas não
me enganará, por mais que faça:
Quem do
naufrágio sai a nado à praia,
Té na
terra se teme da tormenta.
SONETO 75
Diogo
Bernardes
Horas
breves de meu contentamento,
Nunca
me pareceu quando vos tinha,
Que vos
visse tornadas tão asinha
Em tão
compridos dias de tormento.
Aquelas
torres, que fundei no vento,
O vento
as levou já que as sostinha;
Do mal,
que me ficou, a culpa é minha
Que
sobre cousas vãs fiz fundamento.
Amor
com rosto ledo e vista branda,
Promete
quando dele se deseja,
Tudo
possível faz, tido segura:
Mas dês
que dentro n’alma reina, e manda,
Como na
minha fez, quer que se veja,
Quão
fugitivo é, quão pouco dura.
SONETO 82
Diogo
Bernardes
Quem
por ouro, que não descansa, cansa,
Passando
o mar, e rompendo a terra, erra,
Porque
de terra desenterra terra,
Sem ver
cobiça, que foi mansa, mansa.
E tanto
sem fazer mudança, dança,
Que de
nada, que não s’aferra , ferra,
E assim
nada, que desencerra, cerra,
Porque
enfim nada em balança lança.
Quem
anda neste pressuposto posto
Atente
bem em que demanda anda,
Primeiro
que dele seja a vida ida,
E se
pretende sem desgosto gosto,
Cumpra
com quem, nunca demanda, manda,
Porque
a tal vida é devida vida.
*
ESSES MARES QUE VEJO, ESSAS AREIAS
Francisco
Manuel de Melo
(1608,
Lisboa-1666, Lisboa, Alcântara - Portugal)
Esses
mares que vejo, essas areias
Rompi,
pisei, beijei hoje, há sete anos;
Sete
servi, sete perdi; tiranos
Sempre
os fados nas vozes das sereias.
Tantos
há que arrastando cruéis cadeias
Não
guardo ovelhas, mas aguardo danos,
Das
fermosas Raquéis vendo os enganos,
Sem a
promessa ouvir das Lias feias.
Sofra
Jacó fiel Labão mentindo;
Que se
dobra o servir, da alta consorte
Já não
pode negar-lhe a mão devida.
Ai do
que espera; quanto mais servindo!
Para um
tão triste fim, tão leda morte,
Pra um
tão largo amor, tão curta vida.
*
D.
Tomás de Noronha
(1770,
Lisboa, Portugal-1847, Olinda, Pernambuco)
A MUITOS TEMORES NO PORT COM MEDO
DE UMA NAU DE HOLANDESES
DE UMA NAU DE HOLANDESES
Portugal,
Portugal, és um sandeu
Estás
caduco já por esta cruz,
Tudo
talam-balam, tanto truz, truz,
Para
quarenta cus cheio de breu!
Para
quarenta cus, pois bem eu sei,
Quem,
sem lança nenhuma ou arcabuz,
Para
dar guerra a quatrocentos cus
Armado
está com quando Deus lhe deu.
Holanda
será caça se cá vem,
Se
tendes medo a Holanda, o meu Ruão
Sabe
correr e caça muito bem.
Esforçai-vos,
pois tendes capitão,
Que
toda Holanda escassamente tem
Para
forrar a perna de um calção.
DE CONSOANTES FORÇADOS
D.
Tomás de Noronha
Não
sossegue eu mais que um bonifrate,
De
urina sobre mim se vaze um pote,
As
galas que eu vestir sejam picote,
Com
sede me deem água em açafate.
Se
jogar o xadrez, me deem um mate,
E jagando
às trezentas, um capote,
Faltem-me
consoantes para um mote,
E sem o
ser me tenham por orate.
Os
licores que beba sejam mornos,
Os
manjares que coma sejam frios,
Não
passeie mais rua que a dos fornos,
E para
minhas chagas faltem fios,
Na
cabeça por plumas tragam cornos,
Se meus
olhos por ti mais forem rios.
*
SONETO CLXVIII
Antonio
Lobo de Carvalho
(1730,
Guimarães-1787, Lisboa - Portugal)
Este
que vês aqui, formosa dama,
Entre
moles testículos pendente,
Já foi
em outro tempo raio ardente,
Hoje é pavio,
que não solta chama:
Este
que vês aqui, já foi o Gama
Dos
mares onde navega tanta gente;
Hoje é
carcaça velha, que somente
Dos
estragos que fez conserva a fama:
Este
que vês aqui, foi do trabalho
O maior
sofredor (quem tal dissera?)
Hoje do
amor é lânguido espantalho:
Este
que vês aqui, na ardente esfera,
Já foi
flor, já foi luz, já foi caralho;
Mas
hoje não é já quem dantes era.
*
AO RIGOR DE LISI
Jerônimo
Baía
(1620,
Coimbra, Portugal-1688)
Mais
dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois,
Lisi, que o cometa, rocha ou muro
Mais
rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o
Céu vê, cerca o mar, a terra goza.
Sois
mais rica, mais bela, mais lustrosa,
Que a
perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Pois
por vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em
Céu, perla em mar, em jardim rosa.
Não viu
tão doce, plácida e amena,
(Brame
o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Luz o
Céu, ave a terra, o mar sirena.
Vós
triunfais de sirena, luz e ave,
Claro
Sol, perla fina, rosa amena,
Mor
cometa, árduo muro, rocha grave.
*
Antonio
Barbosa Bacelar
(1610-1663,
Lisboa, Portugal)
A UMA AUSÊNCIA
Sinto-me
sem sentir todo abrasado
No
rigoroso fogo, que me alenta,
O mal,
que me consome, me sustenta,
O bem,
que me entretém, me dá cuidado:
Ando
sem me mover, falo calado,
O que
mais perto vejo, se me ausenta,
E o que
estou sem ver, mais me atormenta,
Alegro-me
de ver-me atormentado:
Choro
no mesmo ponto, em que me rio,
No mor
risco me anima a confiança,
Do que
menos se espera estou mais certo;
Mas se
de confiado desconfio,
É
porque entre os receios da mudança
Ando
perdido em mim, como em deserto.
A UM DESMAIO
Antonio
Barbosa Bacelar
Contra
Flora aos suspiros fugitiva
O Amor
em um delíquio se conjura,
Muda-se
o vivo fogo em neve pura,
Mas
mais aquela neve o fogo aviva;
Até no
paroxismo almas cativa
Desmaiada
a mais bela formosura,
No
embargos da vida ainda lhe dura
O
rigor, em sinal de que era viva.
Sylvio,
que aflisse a ele, e a Flora adora
Trazendo-a
no peito retratada,
Com um
desmaio outro desmaio chora;
Mas não
foi maravilha desusada,
Se a
bela cópia se desmaia em Flora,
Que se
desmaie em Sylvio a copiada.
*
Soror
Violante do Céu
(1601-1693 - Lisboa, Portugal)
A DONA MARIANA DE LUNA
Musas,
que no jardim do rei do dia
Soltando
a doce voz, prendeis o vento:
Deidades,
que admirando o pensamento
As
flores aumentais, que Apolo cria.
Deixai,
deixai do Sol a companhia,
Que
fazendo invejoso o Firmamento
Uma
Lua, que é Sol, e que é portento,
Um
jardim vos fabrica de harmonia.
E
porque não cuideis que tal ventura
Pode
pagar tributo à variedade
Pelo
que tem de Lua a luz mais pura:
Sabei
que por mercê da divindade
Este
jardim canoro se assegura
Com o
muro imortal da eternidade.
AO AMADO AUSENTE
Soror
Violante do Céu
Se
aparta do corpo a doce vida,
Domina
em seu ligar a dura morte,
De que
nasce tardar-me tanto a morte,
Se
ausente d’alma estou, que me dá vida?
Não
quero sem Sylvano já ter vida,
Pois
tudo sem Sylvano é viva morte;
Já que
se foi Sylvano venha a morte,
Perca-se
por Sylvano a minha vida.
Ah,
suspirando ausente, se esta morte
Não te
obriga a querer vir dar-me vida,
Como
não me vem dar-me a mesma morte?
Mas se
n’alma consiste a própria vida,
Bem sei
que se me tarda tanto a morte,
Que é
porque sinta a morte de tal vida.
SONETO
Soror
Violante do Céu
Que
suspensão, que enleio, que cuidado
É este,
meu tirano deus Cupido?
Pois
tirando-me enfim todo o sentido,
Me
deixa o sentido duplicado.
Absorta
no rigor de um duro fado
Tanto
de meus sentidos me divido,
Que
tenho só de vida o bem sentido,
E tenho
já de morte o mal logrado.
Enlevo-me
no dano, que me ofende;
Suspendo-me
na causa de meu pranto,
Mas meu
mal, ai de mim, não se suspende
Oh
cesse, cesse amor, tão raro encanto,
Que
para quem de ti não se defende,
Basta
menos rigor, não rigor tanto.
*
Bocage
(1765,
Setúbal-1805, Lisboa - Portugal)
MEU SER EVAPOREI
NA LIDA INSANA
Meu ser evaporei na
lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.
Do tropel de paixões que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros
sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua orgia dana.
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios
meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, ó Deus! Quando
a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.
JÁ BOCAGE NÃO SOU!...
À COVA ESCURA
Bocage
Já Bocage não sou!…
À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão
vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!… Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!… Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo; a
língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui…
A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
Manchei!… Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
SONETO IX
Bocage
Arreitada donzela
em fofo leito
Deixando erguer a
virginal camisa,
Sobre as roliças
coxas se divisa
Entre sombras sutis
pachocho estreito:
De louro pêlo um
círculo imperfeito
Os papudos
beicinhos lhe matiza;
E a branda crica
nacarada e lisa,
Em pingos verte
alvo licor desfeito.
A voraz porra, as
guelras encrespando
Arruma a
focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os
olhos requebrando:
Como é ainda boçal
perde os sentidos;
Porém vai com tal
ânsia trabalhando,
Que os homens é que
vêm a ser fodidos.
DOS TÓRRIDOS SERTÕES,
PEJADOS D’OURO
Bocage
Dos
tórridos sertões, pejados d’ouro,
Saiu um
sabichão d’escassa fama,
Que os
livros preza, os cartapácios ama,
Que das
línguas repartem o tesouro:
Arranha
o persiano, arranha o mouro,
Sabe
que Deus em turco Alá se chama;
Que no
grego alfabeto o G é gama,
Que taurus em latim quer dizer touro:
Para
papaguear saiu do mato:
Abocanha
talentos, que não goza;
É mono,
e prega unhadas como gato:
É nada
em verso, quase nada em prosa:
Não
conheces, leitor, neste retrato
O guapo
charlatão Tomé Barbosa?
CAMÕES, GRANDE CAMÕES,
QUÃO SEMELHANTE
Bocage
Camões, grande
Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao
meu, quando os cotejo!
Igual causa nos
fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o
sacrílego gigante.
Como tu, junto ao
Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no
horror me vejo;
Como tu, gostos
vãos, que em vão desejo,
Também carpindo
estou, saudoso amante:
Ludibrio, como tu,
da sorte dura
Meu fim demando ao
Céu, pela certeza
De que só terei paz
na sepultura:
Modelo meu tu és...
Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos
trances da ventura,
Não te imito nos
dons da Natureza.
*
SONETO
Filinto
Elísio
(1734,
Lisboa, Portugal-1819, Paris, França)
Cristo morreu
há mil e tantos anos;
foi
descido da cruz, logo enterrado:
mas até
aqui de pedir não tem cessado
para o
sepulcro dele os franciscanos.
Tornou
Cristo a surgir entre os humanos,
subiu
da terra aos céus, lá está sentado,
e ainda
à saúde dele sepultado,
bebem
(o saco o paga) estes maganos.
E cuida
quem lhes dá a sua esmola,
que
eles a gastam em função tão pia?
Quanto
vos enganais; oh gente tola!
O
altar-mor com dois cotos se alumia;
e o
frade com a puta que o consola,
gasta
de noite o que lhe dais de dia.
*
Gregório
de Matos
(1636,
Salvador, Bahia-1696, Recife, Pernambuco)
SONETO
Largo em sentir, em
respirar sucinto,
Peno e calo, tão
fino, e tão atento,
Que fazendo
disfarce do tormento,
Mostro que o não
padeço e sei que o sinto.
O mal, que fora
encubro, ou que desminto,
Dentro do coração é
que o sustento
Com que, para penar
é sentimento;
Para não se
entender, é labirinto.
Ninguém sufoca a
voz nos seus retiros;
Da tempestade é o
estrondo efeito:
Lá tem ecos a Terra,
o Mar suspiros.
Mas oh, do meu
segredo alto conceito!
Pois não chegam a
vir à boca os tiros
Dos combates que
vão dentro no peito.
ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO
DO MENINO DEUS DE N. S. DAS
MARAVILHAS,
QUE DESACATARAM INFIÉIS NA SÉ DA
BAHIA
Gregório
de Matos
O todo sem a parte,
não é todo;
a parte sem o todo
não é parte;
mas se a parte o
faz todo, sendo parte,
não se diga, que é
parte, sendo o todo.
Em todo o
Sacramento está Deus todo,
e todo assiste
inteiro em qualquer parte,
e feito em partes
todo em toda a parte,
em qualquer parte
sempre fica o todo.
O braço de Jesus
não seja parte,
pois que feito
Jesus em partes todo,
assiste cada parte
em sua parte.
Não se sabendo
parte deste todo,
um braço, que lhe
acharam sendo parte,
nos diz as partes
todas deste todo.
AOS AFETOS, E LÁGRIMAS DERRAMADAS
NA AUSÊNCIA DA DAMA
A QUEM QUERIA BEM
Gregório
de Matos
Ardor em firme Coração
nascido;
pranto por belos
olhos derramado;
incêndio em mares
de água disfarçado;
rio de neve em fogo
convertido:
tu, que em um peito
abrasas escondido;
tu, que em um rosto
corres desatado;
quando fogo, em
cristais aprisionado;
quando cristal, em
chamas derretido.
Se és fogo, como
passas brandamente,
se és neve, como
queimas com porfia?
Mas ai, que andou
Amor em ti prudente!
Pois para temperar
a tirania,
como quis que fosse
a neve ardente,
permitiu parecesse
a chama fria.
AOS CARAMURUS DA BAHIA
Gregório
de Matos
Um calção de
pindoba, a meia zorra,
camisa de urucu,
mantéu de arara,
em lugar de cotó,
arco e taquara,
penacho de guarás,
em vez de gorra.
Furado o beiço, sem
temer que morra
o pai, que lho
envazou cuma titara,
porém a mãe a pedra
lhe aplicara
por reprimir-lhe o
sangue que não corra.
Alarve sem razão,
bruto sem fé,
sem mais eis que a
do gôsto, quando erra,
de Paiaiá tornou-se
em abaité.
Não sei onde
acabou, ou em que guerra:
só sei que dêste
Adão de Massapé
procedem os
fidalgos desta terra.
AOS SRS. GOVERNADORES DO MUNDO
EM SECO DA CIDADE DA BAHIA,
E SEUS COSTUMES
Gregório
de Matos
A cada canto um
grande Conselheiro,
que nos quer
governar cabana e vinha,
não sabem governar
sua cozinha,
e querem governar o
mundo inteiro.
Em cada porta um
freqüente Olheiro
da vida do Vizinho
e da Vizinha,
pesquisa, escuta,
espreita e esquadrinha
para o levar à
Praça e ao Terreiro.
Muitos Mulatos
desavergonhados,
trazidos pelos pés
aos Homens nobres;
posta nas palmas
toda a picardia.
Estupendas usuras
nos mercados:
todos os que não
furtam, muito pobres:
eis aqui a Cidade
da Bahia.
*
PONDERAÇÃO DO ROSTO
E OLHOS DE ANARDA
SONETO X
Manuel
Botelho de Oliveira
(1636-1711 - Salvador, Bahia)
Quando
vejo de Anarda o rosto amado,
vejo ao
céu e ao jardim ser parecido
porque
no assombro do primor luzido
tem o
sol em seus olhos duplicado.
Nas
faces considero equivocado
de
açucenas e rosas o vestido;
porque
se vê nas faces reduzido
todo o
império de Flora venerado.
Nos
olhos e nas faces mais galharda
ao céu
prefere quando inflama os raios,
e
prefere ao jardim, se as flores guarda:
enfim
dando ao jardim e ao céu desmaios,
o céu
ostenta um sol, dous sóis Anarda,
um maio
o jardim logra; ela dous maios.
*
SONETO
Sebastião
da Rocha Pita
(1660,
Salvador, Bahia-1738, Cachoeira, Bahia)
O
desvelo maior tem aplicado
Fílis
para esquecer um bem perdido,
Mas
como pode o bem ser esquecido,
Quando
o próprio desvelo o faz lembrado?
Como pode
o discurso desvelado
Ver-se
do que imagina dissuadido?
Lembrar-se
de esquecer traz no sentido,
E vem o
esquecimento a ser cuidado.
Se da
perda o descuido não tomasse
Por
empresa, essa mágoa que padece
Fora
possível, que lhe não lembrasse.
Mas a
memória em Fílis permanece,
Pois se
do descuido de cuidado nasce,
Do que
quer esquecer se não esquece.
*
SONETO JOCO-SÉRIO
Luís
Canelo de Noronha
Para
que colhe flores meu meni-
Neste
campo, ou jardim, ou messe pra-
Se lhe
há de suceder u’a desgra-
De
morder-lhe na mão um cruel bi-?
Pero se
é um Menino pequeni-
Não lhe
estava melhor o papar pa-?
Se quer
flores. Não basta a sua gra-?
Para
graça não sobra o ser boni-?
Mais se
pois é pensão a desventu-
De quem
nasce gentil, que quer ago-?
Pague à
morte, meu belo, o seu tribu-;
Nesse
canto porém enquanto Cho-
Namorada
assim minha triste Mu-
As
exéquias lhe faz por este mo-.
*
ELOGIO
EUTRAPÉLICO
Crítico-Encomiástico, Seri-Faceto,
Joco-Sério, Irônico-Enfático, Metódico-Empírico, Médico-Jurídico, Cripto-Lógico,
Antagonístico-Erótico: Ao Eruditíssimo Acadêmico-Físico, o Doutor Mateus
Saraiva, usando, nas suas Obras, de gudos, e outras licenças, contra a Crusca
Moderna, e Nova Reforma do Parnaso.
SONETO SEMIAGUDO
Manuel
Tavares de Sequeira e Sá
(Portugal)
Meu
Doutor: Dos assuntos a maté.............ria
exauristes
Agido de tal for.......................ma
que
esgotastes sutil por culta nor.............ma
da
Hipocrene os Cristais, de Numa a Egé...ria
Hoje
alcança por Vós burlesco-sé.............ria
A
Acadêmia feliz sábia refor....................ma
e
Minerva, aprendida a Platafor...............ma
já, de
Palas merece o soldo, ou fé.............ria
E
enfim, quando prudente as Musas fri......as
de
Saraiva julgava nas empre.................sas
nunca
as vi mais alegres em meus di.........as
Protestando
ainda obrar por Vós fine.........zas
quando
acharem nas Vossas Poesi..............as
em
lugar dos Agudos, Agude....................zas
*
Cláudio
Manuel da Costa
(1729,
Mariana, Minas Gerais-1789, Ouro Preto, Minas Gerais)
SONETO LXIV
Que tarde nasce o
Sol, que vagaroso!
Parece, que se
cansa, de que a um triste
Haja de aparecer:
quanto resiste
A seu raio este
sítio tenebroso!
Não pode ser, que o
giro luminoso
Tanto tempo
detenha: se persiste
Acaso o meu
delírio! se me assiste
Ainda aquele humor
tão venenoso!
Aquela porta ali se
está cerrando;
Dela sai um pastor:
outro assobia,
E o gado para o
monte vai chamando.
Ora não há mais
louca fantasia!
Mas quem anda, como
eu, assim penando,
Não sabe, quando é
noite, ou quando é dia.
SONETO XCVIII
Cláudio
Manuel da Costa
Destes penhascos
fez a natureza
O berço, em que
nasci! oh quem cuidara,
Que entre penhas
tão duras se criara
Uma alma terna, um
peito sem dureza!
Amor, que vence os
tigres por empresa
Tomou logo
render-me; ele declara
Contra o meu
coração guerra tão rara,
Que não me foi
bastante a fortaleza.
Por mais que eu
mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião
minha brandura,
Nunca pude fugir ao
cego engano:
Vós, que ostentais
a condição mais dura,
Temei, penhas,
temei; que Amor tirano,
Onde há mais
resistência, mais se apura.
*
ESTELA E NIZE
Alvarenga
Peixoto
(1744,
Rio de Janeiro-1792, Ambaca, Angola)
Eu vi a linda
Estela, e namorado
Fiz logo eterno
voto de querê-la;
Mas vi depois a
Nise, e a achei tão bela,
Que merece
igualmente o meu cuidado.
A qual escolherei,
se neste estado
Não posso
distinguir Nise de Estela?
Se Nise vir aqui,
morro por ela;
Se Estela agora
vir, fico abrasado.
Mas, ah! que aquela
me despreza amante,
Pois sabe que estou
preso em outros braços,
E esta não me quer
por inconstante.
Vem, Cupido,
soltar-me destes laços,
Ou faz de dois
semblantes um semblante,
Ou divide o meu
peito em dois pedaços.
*
Olavo
Bilac
(1865-1918,
Rio de Janeiro/RJ)
A SESTA DE NERO
Fulge de luz
banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E marmor de Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.
Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.
O palácio imperial de pórfiro luzente
E marmor de Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.
Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.
VIA LÁCTEA — XI
Olavo
Bilac
De outras sei que
se mostram menos frias,
Amando menos do que
amar pareces.
Usam todas de
lágrimas e preces:
Tu de acerbas
risadas e ironias.
De modo tal minha
atenção desvias,
Com tal perícia meu
engano teces,
Que, se gelado o
coração tivesses,
Certo, querida,
mais ardor terias.
Olho-te: cega ao
meu olhar te fazes...
Falo-te – e com que
fogo a voz levanto! –
Em vão... Finges-te
surda às minhas frases...
Surda: e nem ouves
meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a
nova dor que trazes
À dor antiga que
doía tanto!
VIA LÁCTEA — XIII
Olavo
Bilac
“Ora (direis) ouvir
estrelas! Certo
Perdeste o senso! ”E
eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las,
muita vez desperto
E abro as janelas,
pálido de espanto...
E conversamos toda
a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto, X
Cintila. E, ao vir
do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro
pelo céu deserto.
Direis agora:
“Tresloucado amigo!
Que conversas com
elas? Que sentido
Tem o que dizem,
quando estão contigo?”
E eu vos
direi:”Amai para entendê-las!
Pois só quem ama
pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de
entender estrelas”.
RIO ABAIXO
Olavo
Bilac
Treme o rio, a
rolar, de vaga em vaga...
Quase noite. Ao sabor do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos. Curva os bambuais o vento.
Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
Desmaia agora o ocaso. A noite apaga
A derradeira luz do firmamento.
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
Um silêncio tristíssimo por tudo
Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fímbria do horizonte mudo:
E o seu reflexo pálido, embebido
Como um gládio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.
Quase noite. Ao sabor do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos. Curva os bambuais o vento.
Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
Desmaia agora o ocaso. A noite apaga
A derradeira luz do firmamento.
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
Um silêncio tristíssimo por tudo
Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fímbria do horizonte mudo:
E o seu reflexo pálido, embebido
Como um gládio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.
O VOADOR
Olavo
Bilac
Em Toledo. Lá fora,
a vida tumultua
E canta. A multidão em festa se atropela...
E o pobre, que o suor da agonia enregela,
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.
Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua
Vem velar-lhe a agonia, através da janela.
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,
E entre as névoas da morte uma visão flutua:
"Voar! Varrer o céu com as asas poderosas,
Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!..."
E o pranto do luar cai sobre o catre imundo...
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão...
E canta. A multidão em festa se atropela...
E o pobre, que o suor da agonia enregela,
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.
Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua
Vem velar-lhe a agonia, através da janela.
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,
E entre as névoas da morte uma visão flutua:
"Voar! Varrer o céu com as asas poderosas,
Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!..."
E o pranto do luar cai sobre o catre imundo...
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão...
LÍNGUA PORTUGUESA
Olavo
Bilac
Última flor do
Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
Amo-te assim,
desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu
viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz
materna ouvi: “Meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
*
CÍRCULO VICIOSO
Machado
de Assis
(1839-1908 - Rio de Janeiro)
Bailando no ar,
gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
– “Mísera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
– “Mísera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”
*
Alberto
de Oliveira
(1857,
Saquarema, RJ-1937, Niterói, RJ)
HORAS MORTAS
Breve momento após
comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço,
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia!
Desta janela aberta à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.
Chegas. O ósculo teu me vivifica.
Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
Tornando logo à etérea imensidade;
E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.
De incômodos, de penas, de cansaço,
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia!
Desta janela aberta à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.
Chegas. O ósculo teu me vivifica.
Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
Tornando logo à etérea imensidade;
E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.
CONTAI, ARCOS DA PONTE,
ONDAS DO RIO!
Alberto
de Oliveira
Contai, arcos da
ponte, ondas do rio,
Balças em flor,
lírios das ribanceiras,
O enlevo meu... Das
curvas ingazeiras
Cerrado arqueia-se
o dossel sombrio.
Arde o sol pelo
campo, onde o bravio
Gado se dessendenta
nas ribeiras;
À beira d’água,
como em desafio,
Cantam, batendo
roupa, as lavadeiras.
Eu... ponte, rio,
flores, balças, tudo,
Eu, junto a vós,
embevecido e mudo...
— Aquelas horas de êxtase, contai-as! —
Eu, como que num
fluido estranho imerso,
Faço, talvez o meu
primeiro verso,
Vendo corar ao sol
as suas saias.
PALEMO
Alberto
de Oliveira
Viu
nestas águas mortas, o corpo frio
Boiando
errante à fúria da procela,
Palemo,
o pescador, a Ulânia bela,
Filha
de Alceu, mimosa flor do rio.
Deu-lhe
a desesperança de perdê-la
Ao seu
perdido amor tal desvario,
Que em
mais não cuida do que em ter o esguio
Caniço
na água e o pensamento nela.
Acompanha,
com os olhos na corrente,
O anzol
e a ideia –
árdua, incessante, lida!
Nem o estar só, nem
o mau tempo o assombra!
Nem horas conta –
que o seu mal latente
Alheio a tudo o
traz e à própria vida,
Curvo a pescar a
sua própria sombra.
CAJÁS
Alberto
de Oliveira
Cajás! Não é que
lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!
— “Vamos sós?” perguntei-lhe. E a feiticeira:
— “Então! tens medo de ir comigo?” — E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.
— “Uma carreira!” — “Uma carreira!” — “Aposto!”
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.
Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias voar, como vou vendo.
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!
— “Vamos sós?” perguntei-lhe. E a feiticeira:
— “Então! tens medo de ir comigo?” — E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.
— “Uma carreira!” — “Uma carreira!” — “Aposto!”
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.
Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias voar, como vou vendo.
IRONIA
Alberto
de Oliveira
De cima abaixo a
lâmina brilhante
Da vidraça estalou.
E o vidro agora
Fendido ao meio,
espia o céu cá fora
Com o olhar partido
em dois, pisco, hesitante...
Não sei o que
secreto e lancinante
Ali se esconde, —
alma talvez que chora
E num esgar se
estorce, aflita, embora
A serena aparência
do semblante.
Brinca-lhe o sol à
face, a aura lhe adeja,
E o vidro, sem que
alguém lhe ouça um gemido
Ou o sofrer recôndito
lhe veja,
Mudo, irônico, frio
e incompreendido,
Cortando anavalhado
a luz que o beija,
Parece estar-se a
rir de estar ferido.
*
Vicente
de Carvalho
(1866-1924, Santos, São Paulo)
VELHO TEMA
Só a leve
esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da
alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada,
e que não chega nunca em toda a vida.
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada,
e que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que
supomos,
árvore milagrosa que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,
árvore milagrosa que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,
existe, sim; mas
nós não a alcançamos,
porque está sempre apenas onde a pomos,
e nunca a pomos onde nós estamos.
porque está sempre apenas onde a pomos,
e nunca a pomos onde nós estamos.
VELHO TEMA — IV
Vicente
de Carvalho
Eu não espero o bem
que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.
O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.
Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.
Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.
O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.
Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.
Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.
*
Raimundo
Correia
(1859,
São Luís, Maranhão-1911, Paris, França)
MAL SECRETO
Se a cólera que
espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
AS POMBAS
Raimundo
Correia
Vai-se a primeira
pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüinea e fresca a madrugada.
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüinea e fresca a madrugada.
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.
GREEN SPOT
Raimundo
Correia
Da
atroz Verdade o incêndio não devasta
Teus
sólios de âmbar e esmeralda, e a imensa
Paisagem
de ouro e carmesim, suspensa
No
horizonte, que, além, foge e se afasta...
Do
supremo repouso a hora nefasta
Soou. A
treva impenetrável, densa,
Cresce
em torno; e enche a noite de descrença
A
amplidão do deserto adusta e vasta...
Seja
esta embora a noite derradeira;
A
caravana trôpega e cansada
Inda
sorris, ao longe, áurea e fagueira!
E ela
linda, ao longe, vê, feita a jornada,
Sorrir-lhe
o verde oásis, a palmeira,
O fio
de água e a sombra suspirada...
O MISANTROPO
Raimundo
Correia
À boca, às vezes, o
louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem; tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem; tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.
Do louvor, com que
espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!
Porque, desde que
esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?
Acaso as almas
poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!
A CAVALGADA
Raimundo
Correia
A lua banha a
solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
São fidalgos que
voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
E o bosque estala,
move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
E o silêncio outra
vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...
*
SONETO
Maciel
Monteiro
(1804,
Recife, Pernambuco-1868, Lisboa, Portugal)
Formosa,
qual pincel em tela fina
Debuxar
jamais pôde ou nunca ousara;
Formosa,
qual jamais desabrochara
Na
primavera a rosa purpurina;
Formosa,
qual se a própria mão divina
Lhe
aninhara o contorno e a forma rara;
Formosa,
qual jamais no céu brilhara
Astro
gentil, estrela peregrina;
Formosa,
qual se a natureza e a arte,
Dando
as mãos em seus dons, em seus lavores,
Jamais
soube imitar no todo ou parte;
Mulher
celeste, oh! anjo de primores!
Quem
pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem
pode amar-te, sem morrer de amores?!
*
MOESTUS SED PLACIDUS
José
Maria do Amaral
(1812,
Rio de Janeiro-1885, Niterói, RJ)
Tristezas
de minha alma tão sentidas,
Que sois
doces memórias do passado,
Do
tempo já vivido, e tão lembrado,
Inda me
dais as horas já perdidas!
Horas
de tanto bem, tão bem vividas,
Quando
vivi feliz e descuidado,
Sejam
ao coração desenganado
Sonhos
que enganem dores tão gemidas.
Tem
hoje o meu viver tal agonia,
Que é
doçura a tristeza da saudade,
E a
saudade do tempo é poesia.
Flores
da quadra sois da mocidade,
Minha
velhice em vós se refugia,
Tristezas
de minh’alma em soledade.
*
VISITA À CASA PATERNA
Luís
Guimarães Jr.
(1845,
Rio de Janeiro-1898, Lisboa, Portugal)
Como a ave que
volta ao ninho antigo
Depois de um longo
e tenebroso inverno,
Eu quis também
rever o lar paterno,
O meu primeiro e
virginal abrigo.
Entrei. Um gênio
carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez,
do amor materno,
Tomou-me as mãos, —
olhou-me grave e terno,
E, passo a passo,
caminhou comigo.
Era esta a sala...
(Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que da luz
noturna à claridade
Minhas irmãs e
minha mãe... O pranto
Jorrou-me em
ondas... Resistir quem há-de?
Uma ilusão gemia em
cada canto,
Chorava em cada
canto uma saudade.
*
Alphonsus
de Guimaraens
(1870,
Ouro Preto, Minas Gerais-1921, Mariana, Minas Gerais)
VAGA EM REDOR DE TI...
Vaga em redor de ti
uma fulgência,
Que tanto é sombra quanto mais fulgura:
O teu sorriso, que é divino, vence-a,
E ela, que é luz de estrela, pouco dura.
Que tanto é sombra quanto mais fulgura:
O teu sorriso, que é divino, vence-a,
E ela, que é luz de estrela, pouco dura.
De outra não sei
que tenha a etérea essência
Que nos teus olhos brilha: nem a pura
Linha de arte de tal magnificência,
Como a que o rosto de anjo te emoldura.
Que nos teus olhos brilha: nem a pura
Linha de arte de tal magnificência,
Como a que o rosto de anjo te emoldura.
Na candidez
ebúrnea do semblante
Tens um lis de ternura, que desliza
À flor da pele em mágoa suavizante.
Tens um lis de ternura, que desliza
À flor da pele em mágoa suavizante.
Não sei que manto
celestial arrastas...
És como a folha do álamo que a brisa
Beija e balança ao luar das noites castas.
És como a folha do álamo que a brisa
Beija e balança ao luar das noites castas.
HÃO DE CHORAR POR ELA
OS CINAMOMOS...
Alphonsus
de Guimaraens
Hão de chorar por
ela os cinamomos,
Murchando as flores
ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de
cair os pomos,
Lembrando-se
daquela que os colhia.
As estrelas
dirão: — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu
silente e fria...”
E, pondo os olhos
nela como pomos,
Hão de chorar a
irmã que lhes sorria.
A lua, que lhe foi
mãe carinhosa,
Que a viu nascer e
amar, há de envolvê-la
Entre lírios e
pétalas de rosa.
Os meus sonhos de
amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão
no azul, ao vê-la,
Pensando em
mim: — "Por que não vieram juntos?"
*
Raul de
Leoni
(1895,
Petrópolis-1926, Itaipava - Rio de Janeiro)
INSTINTO
Glória ao Instinto,
a lógica fatal
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão!
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão!
Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!
És a minha verdade e a ti entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego,
A minha linda e trágica inocência!
Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Edipo, eterno e mudo,
De todas as esfinges da Existência!...
MEFISTO
Raul de
Leoni
Espírito flexível e
elegante,
Ágil, lascivo,
plástico, difuso,
Entre as cousas
humanas me conduzo
Como um destro
ginasta diletante.
Comigo mesmo,
cínico e confuso,
Minha vida é um
sofisma espiralante;
Teço lógicas
trêfegas e abuso
Do equilíbrio na
Dúvida flutuante.
Bailarino dos
círculos viciosos,
Faço jogos sutis de
idéias no ar
Entre saltos
brilhantes e mortais,
Com a mesma
petulância singular
Dos grandes
acrobatas audaciosos
E dos malabaristas
de punhais...
NASCEMOS UM PARA O OUTRO,
DESSA ARGILA...
Raul de
Leoni
Nascemos um para o
outro, dessa argila
De que são feitas
as criaturas raras;
Tens legendas pagãs
nas carnes claras,
E eu tenho a alma
dos faunos na pupila...
Às belezas heróicas
te comparas
E em mim a luz
olímpica cintila.
Gritam em nós todas
as nobres taras
Daquela Grécia
esplêndida e tranqüila.
É tanta a glória
que nos encaminha
Em nosso amor de
seleção, profundo,
Que (ouço de longe
o oráculo de Eleusis),
Se um dia eu fosse
teu e fosses minha,
O nosso amor
conceberia um mundo
E do teu ventre
nasceriam deuses.
*
DUAS ALMAS
Alceu
Wamosy
(1895,
Uruguaiana-1923, Sant’Ana do Livramento - Rio Grande do Sul)
Ó tu, que vens de
longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este
teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado,
e vivo tão sozinho.
Vives sozinha
sempre e nunca foste amada...
A neve anda a
branquear lividamente a estrada,
E a minha alcova
tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até
que as curvas do caminho
Se banhem no
esplendor nascente da alvorada.
E amanhã quando a
luz do sol dourar radiosa,
Essa estrada sem
fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de
novo, ó nômade formosa!
Já não serei tão
só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo
uma saudade tua...
Hás de levar
contigo uma saudade minha...
*
Antônio
Nobre
(1867,
Porto-1900, Foz do Douro - Portugal)
SONETO
Não
repararam nunca? Pela aldeia,
Nos
fios telegráficos da estrada,
Cantam
as aves, desde que o Sol nada,
E, à
noite, se faz sol a lua cheia.
No
entanto, pelo arame que as tenteia,
Quanta
tortura vai, numa ânsia alada!
O
Ministro que joga uma cartada,
Alma
que, às vezes, d’Além-Mar anseia:
—
Revolução! — Inútil. — Cem feridos,
Setenta
mortos. — Beijo-te! — Perdidos!
—
Enfim, feliz!-?-! — Desesperado. — Vem.
E as
boas aves, bem se importam elas!
Continuam
cantando, tagarelas:
Assim,
Antônio! Deves ser também.
SONETO
Antônio
Nobre
Ó
virgens que passais ao sol poente
pelas
estradas ermas a cantar!
Eu
quero ouvir uma canção ardente
que me
transporte ao meu perdido lar.
Cantai-me,
nessa voz onipotente,
o sol
que tomba, aureolando o mar,
a
fartura da seara reluzente,
o
vinho, a graça, a formosura, o luar.
Cantai!
Cantai as límpidas cantigas!
Das
ruínas do meu lar desaterrai
todas
aquelas ilusões antigas
que eu
vi morrer num sonho, como um ai...
Ó
suaves e frescas raparigas
adormecei-me
nessa voz... Cantai!
*
Antero
de Quental
Portugal
(1842-1891)
NA MÃO DE DEUS
Na mão de Deus, na
sua mão direita,
Descansou afinal
meu coração.
Do palácio
encantado da Ilusão
Desci a passo e
passo a escada estreita.
Como as flores
mortais, com que se enfeita
A ignorância
infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da
Paixão
A forma transitória
e imperfeita.
Como criança, em
lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao
colo agasalhada
E atravessa,
sorrindo vagamente,
Selvas, mares,
areias do deserto...
Dorme o teu sono,
coração liberto,
Dorme na mão de
Deus eternamente!
O QUE DIZ A
MORTE
Antero
de Quental
(1842-1891, Ponta
Delgada - Portugal)
Deixai-os
vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os
vir a mim, os que padecem;
E os
que cheios de mágoa e tédio encaram
As
próprias obras vãs, de que escarnecem...
Em mim,
os Sofrimentos que não saram,
Paixão,
Dúvida e Mal, se desvanecem.
As
torrentes da Dor, que nunca param,
Como
num mar, em mim desaparecem. —
Assim a
Morte diz. Verbo velado,
Silencioso
intérprete sagrado
Das
cousas invisíveis, muda e fria,
É, na
sua mudez, mais retumbante
Que o
clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua
noite, do que a luz do dia.
METEMPSICOSE
Antero
de Quental
Ardentes filhas do
prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais
são, depois da orgia?
Acaso nunca a
imagem fugidia
Do que fostes, em
vós se agita e freme?
Noutra vida e outra
esfera, onde geme
Outro vento, e se
acende um outro dia,
Que corpo tínheis?
que matéria fria
Vossa alma
incendiou, com fogo estreme?
Vós fostes nas
florestas bravas feras,
Arrastando, leoas
ou panteras,
De dentadas de amor
um corpo exangue...
Mordei, pois, esta
carne palpitante,
Feras feitas de
gaze flutuante...
Lobas! leoas! sim,
bebei meu sangue!
*
Emílio
de Menezes
(1866,
Curitiba, Paraná-1918, Rio de Janeiro, RJ)
MARCHA FÚNEBRE
Baixaste sobre mim
teu olhar funerário
Numa resignação
piedosa de hora extrema,
E as pálpebras
caindo em alvas de sudário
Velaram-me de todo
a luz clara e suprema,
E tateante no mundo
hostil, no mundo vário,
Sem outro guia, sem
outra alma que o meu poema
Ilumine e
engrinalde e o faça extraordinário,
— Um poema em que
minh’alma artista ria ou gema —
Vou para além
ouvindo uma música nova
Feita de pás de
terra a te cair no peito
Como que para pôr o
meu amor à prova
E essa música
ouvindo, estranha em seu efeito,
Sinto a luz a
morrer e cantarem-lhe à cova
Um funéreo e feral
réquiem de luares feito.
OLHOS FUNÉREOS — IV
Emílio
de Menezes
Dentro do funeral
dos seus olhos pressagos,
Enlutados talvez
por algum sonho extinto,
Como na estagnação
sinistra de dois lagos
Mira-se duplamente
a mesma flor do Instinto.
Olhos! vós sois,
por certo, o fúnebre recinto.
Onde vêm responsar,
aos íntimos estragos,
Os restos de ilusão
que dentro d'alma sinto
E que são para mim
meus únicos afagos.
Perturba a placidez
do meu sonhar de asceta,
O augúrico fulgor
dos seus dois negros cílios
Imponderáveis como
asas de borboleta.
Os meus mortos
ideais em teu olhar, asile-os
Essa, que ele me abriu,
cova humilde e discreta,
Onde irei sepultar
meus últimos Idílios!...
OLHOS FUNÉREOS — V
Emílio de Menezes
Olha! de par em
par, as duas portas abro
Que deitam para o
céu por teus olhos de sombra;
Este mundo febril,
este mundo macabro,
Já me não horroriza
e já me não assombra.
É o céu! da Via-láctea
o estranho candelabro
Fulge. Em tudo há
fulgor e há carícias de alfombra;
Luz-me no teu olhar
da lua o rosto glabro,
Nada o olhar me
perturba ou a mente me ensombra.
Só tristeza,
entretanto, em teus olhos me mostras
— Tal se fossem a
tumba em que os sonhos empedro
Como as pérolas
dentro à válvula das ostras; —
E os cílios, — doce alpendre à cuja sombra medro,
Como, neles meu ser
todo fechas e prostras
Num círculo feral
de casuarina e cedro!...
*
Cruz e
Sousa
(1861-Florianópolis,
Santa Catarina-1898, Antônio Carlos, Minas Gerais)
LÉSBIA
Cróton selvagem,
tinhorão lascivo,
Planta mortal,
carnívora, sangrenta,
Da tua carne
báquica rebenta
A vermelha explosão
de um sangue vivo.
Nesse lábio
mordente e convulsivo,
Ri, ri risadas de
expressão violenta
O Amor, trágico e
triste, e passa, lenta,
A morte, o espasmo
gélido, aflitivo...
Lésbia nervosa,
fascinante e doente,
Cruel e demoníaca
serpente
Das flamejantes
atrações do gozo.
Dos teus seios
acídulos, amargos,
Fluem capros aromas
e os letargos,
Os ópios de um luar
tuberculoso...
TRIUNFO SUPREMO
Cruz e
Sousa
Quem anda pelas
lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos
trágicos flagelos,
É quem deixou para
sempre esquecido
O mundo e os fúteis
ouropéis mais belos!
É quem ficou no
mundo redimido,
Expurgado dos
vícios mais singelos
E disse a tudo o
adeus indefinido
E desprendeu-se dos
carnais anelos!
É quem entrou por
todas as batalhas
As mãos e os pés e
o flanco ensangüentando,
Amortalhado em
todas as mortalhas.
Quem florestas e
mares foi rasgando
E entre raios,
pedradas e metralhas,
Ficou gemendo, mas
ficou sonhando!
INVULNERÁVEL
Cruz e
Sousa
Quando dos
carnavais da raça humana
Forem caindo as
máscaras grotescas
E as atitudes mais
funambulescas
Se desfizerem no
feroz Nirvana;
Quando tudo ruir na
febre insana,
Nas vertigens
bizarras, pitorescas
De um mundo de
emoções carnavalescas
Que ri da Fé
profunda e soberana;
Vendo passar a
lúgubre, funérea
Galeria sinistra da
Miséria,
Com as máscaras dos
rostos descoladas;
Tu que és o deus, o
deus invulnerável,
Resiste a tudo e
fica formidável,
No Silêncio das
noites estreladas!
UM SER
Cruz e
Sousa
Um ser na placidez
da Luz habita,
Entre os mistérios
inefáveis mora.
Sente florir nas
lágrimas que chora
A alma serena,
celestial, bendita.
Um ser pertence à
música infinita
Das Esferas,
pertence à luz sonora
Das estrelas do
Azul e hora por hora
Na Natureza
virginal palpita.
Um ser desdenha das
fatais poeiras,
Dos miseráveis
ouropéis mundanos
E de todas as
frívolas cegueiras...
Ele passa, atravessa
entre os humanos,
Como a vida das
vidas forasteiras,
Fecundada nos
próprios desenganos.
*
SEMPRE!
Domingos
do Nascimento
(1862,
Guaraqueçaba-1905, Curitiba - Paraná)
Quando outrora
parti, era em plena alvorada,
A estrela–d’alva
ardia ao cimo da montanha.
E do planalto
olhando, oh surpresa tamanha!
Morria a
estrela-d’alva à beira-mar tombada...
E me vendo passar
nessa corrida estranha
Da mocidade em
flor, me disse a sorte airada:
— Como hás de ser
feliz em tua glória, ganha
Nesta da vida
esconsa e misteriosa estrada?!
Desci: e anos sem
fim, sempre visões ignotas
Que almas fazem
gemer, como naus entre fráguas
Numa desolação
atroz de velas rotas...
Ó taças de cicuta!
Ó flores de ópio! Trago-as
De parcéis em parcéis,
de ilhotas sobre ilhotas,
Olhos para o
alto-mar das infinitas mágoas!
*
MINHA SENHORA,
Azevedo
Cruz
(1870,
Campos-1905, Nova Friburgo - Rio de Janeiro)
MINHA SENHORA,
o amor
degenerou, por fim,
numa palavra falsa,
e hoje já não é mais
uma alucinação;
tudo o que o doura
e o veste e o transfigura e o realça
da fantasia vem,
nunca do coração!
É uma frase feliz
no delírio da valsa,
uma chama no olhar,
um aperto de mão...
um capricho, uma
flor, uma luva descalça
que alguém deixou
cair e que se ergue do chão!
Disse-lhe isto e
esperei. Um silêncio aflitivo,
longo e soturno
como os torvos pesadelos,
pairou no espaço
como um ponto sobre um i!
Dormi; quando
acordei vi-me, enterrado, vivo,
dentro da noite má
dos seus negros cabelos,
em cuja cerração
corre que me perdi!...
Do Sonho.
*
Pethion
de Vilar*
(1870-1924,
Salvador, BA)
SONETO PARA O SÉCULO XX
Dizem
que a arte de Goethe é uma arte anacrônica
Coeva
do mamute e das larvas primárias;
Que
Homero não passou de uma abantesma trágica
Vislumbrada
através de névoas milenárias.
Dizem
que todos nós lembramos uns ridículos
Idólatras
senis de coisas funerárias,
E
andamos a colher – incuráveis maníacos –
Em
cinzas hibernais, flores imaginárias;
Dizem
que a Poesia há muito está cadáver;
Que a
rima faz cismar num guiso de funâmbulo,
Monótono,
a tinir no trampolim do Verso...
Que
importa? Se bendita, essa loucura mística
Entorna
em nossa Mágoa o leite do papáver
E abre
à nossa volúpia o azul de outro Universo?
MARINHA
Pethion
de Vilar
Desce a Noite
enrolada em brumas hibernais...
Trágica solidão,
vago instante sombrio,
Em que, tonto de
medo, o olhar não sabe mais
Onde começa o mar e
onde acaba o navio.
Nem o arfar de uma
vaga: o mar parece um rio
De óleo; oxidado o
céu de nuvens colossais,
Num zimbório de
chumbo acaçapado e frio,
Escondendo no bojo
a alma dos temporais.
Nem das águas no
espelho o reflexo de um astro...
Apenas o farol, no
vértice do mastro,
Rubra a pupila, a
arder, dentro de uma garoa.
E lá vai o navio,
espectral, lento e lento,
Como um negro
vampiro, enorme e sonolento,
Pairando sobre um
caos de tênebras, à toa.
(*) – Pethion de
Villar é o pseudônimo literário do médico e poeta brasileiro Egas Moniz Barreto
de Aragão.
*
O HIPOGRIFO
Severiano
de Resende
(1871, Mariana, Minas Gerais-1931,
Paris/França)
A José de
Freitas Vale
Resfolega o
hipogrifo, indômito, batendo
No asfalto as patas
de ouro; e os olhos de águia adusta
Sobre as nuvens e
além dos sóis ovante erguendo,
Já no azul a cabeça
em fogo barafusta.
O éter transpõe,
afIando as asas, belo e horrendo,
E haurindo a Vida e
a Graça e a Idéia eterna e augusta,
Ó como eu nesse
arroubo insofrido compreendo
Que ao estranho
hipogrifo o gesto astral não custa.
No solo os áureos
pés, no empíreo em glória a fronte,
Terras, mares e
céus, de horizonte a horizonte,
Mede, calcando o
pó, e os páramos transcende.
Brotam fráguas de
luz na poeira dos seus rastros
E nas landas
glaciais e tristes, ermas de astros,
Novas constelações
o seu hálito acende.
*
ABRINDO O LIVRO
Alves
de Faria
(1942,
São Paulo/SP- )
A —
sombra geme aqui. Ruínas este soneto.
A —
arcaria da frase é um esgarado momo
e sobre
este papel erguem-se os versos como
velhos
muros de pedra ou restos de esqueletos.
A
imagem lembra um curvo e triste cinamomo,
onde a
hera da dor se enrosca ao tronco preto
e
passeia através da quadra e do terceto
a
saudade que reza, em religioso assomo.
Senta-se
a mágoa sobre os escombros dispersos
do
hemistíquio onde bate o coração dos versos,
e em
derredor rasteja o verme dos gemidos.
E como
um braço, amor, que no outro braço arrima,
cai em
música estranha a rima sobre a rima,
num
sonoro rumor de mármores partidos.
*
PORQUE O MEU BRAÇO
É ENCORDOADO EM MÚSCULOS
Adalberto
Guerra Duval*
(1872,
Porto Alegre, Rio Grande do Sul-1947, Petrópolis/Rio de Janeiro)
Porque o meu braço
é encordoado em músculos
E pareço talhado
para a lida,
Ninguém crê nos
meus íntimos crepúsculos...
— Vocês não sabem
que eu nasci suicida?
E levantei-me cedo
e fui viajar...
Por mais que
andasse não saí do mundo,
Por mais que
andasse, ia comigo, a andar,
A sombra de um
desgosto vagamundo.
E para que viajar?
O esforço é inútil.
A desventura é a
túnica inconsútil.
A carne é dolorosa,
a carne é triste.
Uma viagem só, para
o Nirvana,
Que nesta longa
travessia humana
Vi o avesso de tudo
quanto existe!
(*) – introdutor do
verso livre no Brasil (1900).
*
AZUL
Orlando
Teixeira
(1875,
São João da Boa Vista/São Paulo-1902-Sítio/Minas Gerais)
Chapéu azul,
vestido azul, de azul bordado,
Azuis o pára-sol e
as luvas, Senhorita,
Como um lótus azul
por um deus animado,
Passa toda de azul,
por mil bocas bendita.
Há um bálsamo azul
nesse azul que palpita,
Misticismos de um
mundo, há muito em vão sonhado,
Azul que a alma da
gente a idolatrá-la incita,
Azul claro, azul
suave, azul de céu lavado.
Deixa na rua um
rastro azul que cega e prende,
Não sei que de anormal,
de fantasma e de duende,
Que prende os pés
ao solo e ao mundo os olhos cerra;
Vendo-a, não se vê
nada que o azul, tonteia...
Como num sonho
azul, logo nos vem à ideia
Como um pedaço de
céu azul passeando a terra.
*
REVIVESCÊNCIA
Maurício
Jubim
(1875-Rio
de Janeiro-1923)
Para
evocar a angelical pureza
Desse
Perfil que o meu pincel revela,
—
Saudade — fica nos meus olhos presa
E os
meus olhos de lágrimas constela.
Num
roxo reverbero em toda a tela,
Dos
vagos tons da tinta da Tristeza,
Lembra,
entre incensos, morta, numa cela,
De
lívido perfil — Santa Teresa!
Fulge
um fino fulgor na fina face,
Como se
através da nívea neve
A fria
luz da Lua a iluminasse.
Fugidia
visão dos meus delírios...
Demora
no meu sonho vago e leve
Sob um
clarão agônico de círios!...
*
ESTRANHAS LÁGRIMAS
Félix
Pacheco
(1879-Teresina, Piauí-1935-Rio
de Janeiro/RJ)
Lágrimas... Noutras
épocas verti-as.
Não tinha o olhar
enxuto, como agora.
— Alma, dizia então
comigo, chora,
Que o pranto
diminui as agonias.
Ah! Quantas vezes
pelas faces frias,
Umas, outras, após,
a toda hora,
Gota a gota
rolando, elas, outrora,
Marcaram Noutes e
marcaram Dias!
Vinham do Oceano d’Alma,
imenso e fundo,
De espuma às ondas
salpicando o flanco,
Numa fremência
amargurada e louca.
Nos olhos, hoje, as
Lágrimas estanco...
Rolam, porém, sem
que as descubra o Mundo,
Sob a forma de Risos,
pela boca!
*
INTERLUNAR
Maranhão
Sobrinho
(1879,
Barra do Corda, Maranhão-1915-Manaus, Amazonas)
Entre nuvens cruéis
de púrpura e gerânio,
rubro como, de
sangue, um hoplita messênio
o Sol, vencido,
desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez
de uni recolhido essênio...
Veloz como um
corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se
a luz no leve oxigênio
da tarde, que me
evoca os olhos de Estefânio
Mallarmé, sob a
unção da tristeza e do gênio!
O ônix das sombras
cresce ao trágico declínio
do dia em que, a
lembrar piratas do mar Jônio,
põe, no ocaso,
clarões vermelhos de assassínio...
Vem a noite e,
lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho
solar da Morte e do Demônio
com as torres
medievais as sombras do Interlúnio...
*
Pedro Kilkerry
(1885,
Santo Antônio de Jesus-1917, Salvador - Bahia)
CETÁCEO
Fuma. É cobre o
zênite. E chagosos do flanco,
Fuga e pó, são
corcéis de anca na atropelada.
E tesos no
horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o
azul um largo vôo branco.
Quando e quando
esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume
indo as proas de arranco.
Perto uma janga
embala um marujo no banco
Brunindo ao sol
brunida a pele atijolada.
Tine em cobre o
zênite e o vento arqueja o oceano
Longo enforca-se a
vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o
roce ao côncavo de um pano.
E na verde ironia,
ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando
a pedraria. Bufa
O cetáceo a
escorrer d’água ou do sol vermelho.
CÉRBERO
Pedro
Kilkerry
É, não vens mais
aqui... Pois eu te espero,
Gele-me o frio
inverno, o sol adusto
Dê-me a feição de
um tronco, a rir, vetusto
— Meu amor a
ulular... E é o teu Cérbero!
É, não vens mais
aqui... E eu mais te quero,
Vago o vergel, todo
o pomar venusto
E a cada fruto de
ouro estendo o busto,
Estendo os braços,
e o teu seio espero.
Mas como pesa esta
lembrança... a volta
Da aléia em flor
que em vão, toda, transponho,
E onde te foste, e
a cabeleira solta!
Vais corações
rompendo em toda a parte!
Virás, um dia... E
à porta do meu Sonho
Já Cerbero morreu,
para agarrar-te.
AMOR VOLAT
Pedro
Kilkerry
Não, não é que
comigo ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo
ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o
coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como
o seu bico em brasa...
Entrou-mo todo,
enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a
cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro
mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho
já. Treme-me o passo, e atrasa...
Olha-me bem, no
peito, o rubro ninho aberto!
Hoje, fúnebre, a
piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio!
e o meu leito deserto!
E vivo só por ver,
como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar,
largamente, um bocado
De músculos
pingando a levar-me no bico!
AD
VENERIS LACRIMAS
Pedro Kilkerry
Em meus nervos, a
arder, a alma é volúpia... Sinto
Que Amor embriaga a
Íon e a pele de ouro. Estua,
Deita-se Íon:
enrodilha a cauda o meu Instinto
Aos seus rosados
pés... Nyx se arrasta, na rua...
Canta a alâmpada
brônzea? O ouvido aos sons extinto
Acorda e ouço a voz
ou da alâmpada ou sua.
O silêncio anda à
escuta. Abre um luar de Corinto
Aqui dentro a
lamber Hélada nua, nua.
Íon treme,
estremece. Adora o ritmo louro
Da áurea chama, a
estorcer os gestos com que crava
Finas frechas de
luz na cúpula aquecida...
Querem cantar de
Íon os dois seios, em coro...
Mas sua alma — por
Zeus! — na água azul doutra Vida
Lava os meus
sonhos, treme em seus olhos, escrava.
*
Da
Costa e Silva
(1885,
Amarante, Piauí-1950, Rio de Janeiro/RJ)
CRUZADA NEGRA
MORS – em letras de
luz gravo no meu escudo.
A divisa imortal de
cavaleiro traço
Em campo negro. E,
após, visto a armadura de aço.
Preme a cota, a
luzir, o meu peito desnudo.
O elmo à cabeça, a
espada à cinta, a lança ao braço,
Desço ao pátio e
cavalgo o meu corcel sanhudo,
E ele, a
resfolegar, indiferente a tudo,
Rasga, como um
fuzil, a escuridão do espaço.
Levo a lira no
arção. Impassível e forte,
No solar do Não
Ser, ante o perfil da Morte,
Cantarei a balada
augusta e soberana
De cavaleiro
errante menestrel transeunte…
E aonde vou? Aonde
vou? Ainda há alguém que o pergunte?
– Busco a Jerusalém
remota do Nirvana…
TARÂNTULA
Da
Costa e Silva
Doudo, sonho que o
Sol é a maior das aranhas,
–Tarântula do Azul – a ígnea teia da Vida
Tecendo caprichosa, a arrancar das entranhas
Rubros fios de sangue e de luz difundida.
–Tarântula do Azul – a ígnea teia da Vida
Tecendo caprichosa, a arrancar das entranhas
Rubros fios de sangue e de luz difundida.
Urde os fios e os
prende, elo por elo, à urdida
Rede transluminosa, a alongar as estranhas
Antenas de ouro e fogo, e com a trama tecida
Estende véus iriais para além das montanhas…
Rede transluminosa, a alongar as estranhas
Antenas de ouro e fogo, e com a trama tecida
Estende véus iriais para além das montanhas…
Nessa teia de luz
um mistério se encerra:
Sabe-o a Aranha, cravando o enorme olhar que infunde
A energia vital que há no ventre da Terra.
Sabe-o a Aranha, cravando o enorme olhar que infunde
A energia vital que há no ventre da Terra.
Aracnídeo exemplo,
almo e augusto, desvendo
No Sol, como a ensinar que tudo se fecunde
Sempre, Aranha do Azul, véus de noiva tecendo…
No Sol, como a ensinar que tudo se fecunde
Sempre, Aranha do Azul, véus de noiva tecendo…
SAUDADE
Da
Costa e Silva
Saudade! Olhar de
minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio…
Saudade! Amor de minha terra… O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
E o pranto lento deslizando em fio…
Saudade! Amor de minha terra… O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho… O
caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando…
E, ao o vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando…
E, ao o vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor
do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…
Saudade! O Parnaíba
– velho monge
As barbas brancas alongando… E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra…
As barbas brancas alongando… E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra…
SUPREMO ENIGMA
Da
Costa e Silva
Quando os meus
olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.
Um mistério de Amor
que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.
Quem me decifrará
todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…
Quem há que o teu
segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?
*
À TARDE O POENTE DESFIA...
Ernâni
Rosas
(1886-Desterro,
Florianópolis/Santa Catarina-1955, Rio de Janeiro)
À Tarde o Poente
desfia
Topázios com
filigrana,
Vindo ouvir a
melodia
Dos vasos de
porcelana!
Castelos do ocaso,
esfinge,
Em cinza d'oiro,
penumbra!
A Tarde em lírios
nos cinge
Para o longe que a
deslumbra...
Fulgores de rubra
seda
Na dolência
carmesim
Que vai do poente à
alameda...
Cintilos d'Astros,
Poema!
Diluir d'Opalas,
Jardim...
De Salomé: o
Diadema!
*
REGINA MARTYRUM
Álvaro
Moreyra
(1888-Porto
Alegre, Rio Grande do Sul-1964, Rio de Janeiro)
Para Dona Belleta
Nossa Senhora da
Saudade! um dia,
juntei as mãos,
nostálgico, invocando
tua alada
presença... Nos céus, ia
o enterro do
Crepúsculo passando...
E entre os verdes
do Longe, aparecia,
Tisicamente, a Lua
Nova, quando,
toda de Roxo, a
andar, pela elegia
da Hora bruna,
surgiste, me acenando...
E desde então
ficaste em meio às trevas
dessa existência
obscura... Para o Extinto,
ao que gozei,
piedosa tu me levas...
E, hoje, sou como
um Bêbado que escombra
a Vida real, e
assiste, à luz do Absinto,
às transfigurações
da própria Sombra!...
*
Camilo
Pessanha
(1867-Coimbra,
Portugal-1926, Macau, República Popular da China)
FONÓGRAFO
Camilo
Pessanha
Vai declamando um
cômico defunto.
Uma platéia ri,
perdidamente,
Do bom jarreta... E
há um odor no ambiente
A cripta e a pó, –
do anacrônico assunto.
Muda o registo, eis
uma barcarola:
Lírios, lírios,
águas do rio, a lua...
Ante o Seu corpo o
sonho meu flutua
Sobre um paul, –
extática corola.
Muda outra vez:
gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro –
o cheiro de junquilhos,
Vivido e agro! –
tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa,
a alma das cornetas
Quebra-se agora
orvalhada e velada.
Primavera. Manhã.
Que eflúvio de violetas!
ESVELTA, SURGE!
VEM DAS ÁGUAS, NUA
Camilo
Pessanha
Esvelta surge! Vem
das águas, nua,
Timonando uma
concha alvinitente!
Os rins flexíveis e
o seio fremente...
Morre-me a boca por
beijar a tua.
Sem vil pudor! Do
que há que ter vergonha?
Eis-me formoso,
moço e casto, forte.
Tão branco o peito!
— para o expor à Morte...
Mas que ora — a
infame! — não se te anteponha.
A hidra torpe!...
Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha
onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos
escorrendo água,
Ir inclinar-se,
desmaiar de amor,
Sob o fervor da
minha virgindade
E o meu pulso de
jovem gladiador.
*
TÚMULO DE BAUDELAIRE
Eduardo
Guimaraens
(1892,
Porto Alegre, Rio Grande do Sul-1928, Rio de Janeiro)
Um anjo, que possui
uma espada de chama,
hirto e pálido, à
fronte um halo virginal,
guarda o Túmulo,
junto ao mármore imortal,
a que o Poeta
desceu, cego de luz e lama.
Outro, que às mãos
desfralda o ardor de uma auriflama,
olha, cismando, o
azul profundo como o mal;
e Lúcifer, enfim,
magnífico e fatal,
tem à boca a
revolta em que a blasfêmia clama.
Entre a aridez da
terra e a solidão noturna,
fundo abismo, do
espaço ao lúgubre esplendor,
fendem-se do Desejo
as largas fauces de urna.
E as Danaides, de
aspecto envelhecido e eterno,
tentam encher em
vão esse tonel de horror!
Ora, lá dentro, o
Céu! Uiva, lá dentro, o Inferno!
*
Duque
Costa
(1894, Rio
de Janeiro-1977)
VISÃO DE MAIO
Na viva
carnação de uma corola aberta
na
puberdade, a seiva untuosa e policroma,
da
perfumea narcose, em volutas, desperta
numa
conspiração, a alma errante do aroma!
Ei-la,
flagrante, a errar pelos tufos, incerta,
grato
incenso pagão, surto de estoma e estoma,
que transmigre
depois e depois se reverta
no
veludo de um seio! E no oiro de uma coma!...
— Hálito vegetal se exala e se destila
nas
verdes frondes, como expostas para a Altura,
cheias
de verde e saúde êxul da clorofila!...
E,
ei-la em névoas que vão, e se vai concebê-las
numa
reencarnação de luz que a transfigura
na
auricrinita umbela imensa das estrelas!
A TEMPESTADE
Duque
Costa
Curtindo
a enorme dor de um parto formidando,
trombas
estouram, como em ribombos de bumbo;
e as
nuvens, colossais dromedários de chumbo,
sinistramente
vão passando, vão passando...
Na
torva ogiva, a Lua é a sombra de um nelumbo;
revolto,
o Mar é um deus fustigado, berrando;
e a
noite — templo roto — é o imenso
caos, de quando,
a
blasfemar, convulso, em mim mesmo sucumbo!
Ruiva de
raiva, ao ruir, o raio risca, ronca,
rompe,
ricocheteia e, em relâmpagos erra,
e abre
brechas e brame e racha a grota bronca.
Lembra
campas de bronze, indo aos tombos em pompas;
Roma em
ruínas, a arder, e rolando por terra,
num
estrondo infernal de petardos e trompas!
*
Augusto
dos Anjos
(1884,
Cruz do Espírito Santo, Paraíba-1914, Leopoldina, Minas Gerais)
AGONIA DE UM FILÓSOFO
Consulto o
Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante
obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me
assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria
do harmatã inquieto!
Assisto agora à
morte de um inseto!...
Ah! todos os
fenômenos do solo
Parecem realizar de
pólo a pólo
O ideal do
Anaximandro de Mileto!
No hierático
areópago heterogêneo
Das idéias,
percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel
à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o
velário espesso;
E em tudo igual a
Goethe, reconheço
O império da substância universal!
BUDISMO MODERNO
Augusto
dos Anjos
Tome, Dr., esta
tesoura, e...corte
Minha
singularíssima pessoa.
Que importa a mim
que a bicharia roa
Todo o meu coração,
depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou
na minha sorte!
Também, das
diatomáceas da lagoa
A criptógama
cápsula se esbroa
Ao contato de
bronca destra forte!
Dissolva-se,
portanto, minha vida
Igualmente a uma
célula caída
Na aberração de um
óvulo infecundo;
Mas o agregado
abstrato das saudades
Fique batendo nas
perpétuas grades
Do último verso que
eu fizer no mundo!
MATER ORIGINALIS
Augusto
dos Anjos
Forma vermicular
desconhecida
Que estacionaste,
mísera e mofina,
Como quase
impalpável gelatina,
Nos estados
prodrômicos da vida;
O hierofante que
leu a minha sina
Ignorante é de que
és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade
indefinida
Que o insigne
Herbert Spencer nos ensina.
Nenhuma ignota
união ou nenhum sexo
À contingência
orgânica do sexo
A tua estacionária
alma prendeu...
Ah! De ti foi que,
autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original
das outras formas,
A minha forma
lúgubre nasceu!
ÚLTIMO CREDO
Augusto
dos Anjos
Como ama o homem
adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa
tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente
para o cemitério!
É o
transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse
danado número Um
Que matou Cristo e
que matou Tibério!
Creio, como o filósofo
mais crente,
na generalidade
descrente
Com que a
substância cósmica evolui...
Creio, perante a
evolução imensa,
Que o homem
universal de amanhã vença
O homem particular que
eu ontem fui!
ASA DE CORVO
Augusto
dos Anjos
Asa de corvos
carniceiros, asa
De mau agouro que,
nos doze meses,
Cobre às vezes o
espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa
própria casa...
Perseguido por
todos os reveses,
É meu destino viver
junto a essa asa,
Como a cinza que
vive junto à brasa,
Como os Goncourts,
como os irmãos siameses!
É com essa asa que
eu faço este soneto
E a indústria
humana faz o pano preto
Que as famílias de
luto martiriza...
É ainda com essa
asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a
última camisa!
VERSOS ÍNTIMOS
Augusto
dos Anjos
Vês! Ninguém
assistiu ao formidável
Enterro de tua
última quimera.
Somente a
Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira
inseparável!
Acostuma-te à lama
que te espera!
O Homem, que, nesta
terra miserável,
Mora, entre feras,
sente inevitável
Necessidade de
também ser fera.
Toma um fósforo.
Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a
véspera do escarro,
A mão que afaga é a
mesma que apedreja.
Se a alguém causa
inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão
vil que te afaga,
Escarra nessa boca
que te beija!
O MAR, A ESCADA E O HOMEM
Augusto
dos Anjos
“Olha agora,
mamífero inferior,
“À luz da
epicurista ataraxia,
“O fracasso da tua
geografia
“E do teu
escafandro esmiuçador!
“Ah! Jamais saberás
ser superior,
“Homem, a mim,
conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice
auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o
vastíssimo vapor,
“Rasgue a água
hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade
da Escada íngreme:
“Homem, já
transpuseste os meus degraus?!”
E Augusto, o
Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e
o Mar, caiu de bruços
No pandemônio
aterrador do Caos!”
SONETO
Augusto
dos Anjos
N'augusta solidão
dos cemitérios,
Resvalando nas
sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos
sepultados nestes
Brancos sepulcros,
pálidos, funéreos.
São minhas crenças
divinais, ardentes
— Alvos fantasmas
pelos merencórios
Túmulos tristes,
soturnais, silentes,
Hoje rolando nos
umbrais marmóreos,
Quando da vida, no
eternal soluço,
Eu choro e gemo e
triste me debruço
Na laje fria dos meus
sonhos pulcros,
Desliza então a
lúgubre coorte.
E rompe a orquestra
sepulcral da morte,
Quebrando a paz
suprema dos sepulcros.
*
Martins
Fontes
(1884-1927,
Santos, São Paulo)
NOSCE TE IPSUM
Quem serei? Quem
sou eu? Não me conheço
e tu, meu sósia, te
conheces já?
Estudaste a tua
alma pelo avesso,
tua mortalidade que
será?
Nota-me bem. Feito
do mesmo gesso,
que o mesmo em tudo
sejas. Oxalá!
E, sendo assim,
contigo me pareço,
e, o que és, comigo
se parecerá.
Verás, a olhar-me,
tua imagem cara,
que a face é minha,
mas o rosto é teu,
e a exatez a
aparência desmascara.
Relembrarás alguém
que ontem morreu,
e, reencarnando em
mim, hoje te encara,
sem saber quem tu
és, ou quem sou eu.
SONETO MONOSSILÁBICO
Martins
Fontes
Vo
gar
Ro
lar
O
ar
do
lar
na
flor
há
por
A-
mor
gar
Ro
lar
O
ar
do
lar
na
flor
há
por
A-
mor
CREPÚSCULO
Martins
Fontes
Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
e de doçura triste, inexprimivelmente.
À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
entre nuvens de opala, a concha do crescente.
Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...
E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
e de doçura triste, inexprimivelmente.
À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
entre nuvens de opala, a concha do crescente.
Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...
E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
O ESPÍRITO DA MATÉRIA
Martins
Fontes
Também as catedrais
são sinfonias:
Rege a massa coral
da arquitetura
a divinização da
partitura;
e ambas se irmanam
por analogias!
O alegro, o adágio,
o andante, a tessitura,
o arco, o fuste, o
florão...Alegorias
que, pela execução
das harmonias,
Timbram exatas, no
esplendor da altura!
E, pelos olhos, as
orquestras se ouvem.
E, pelo olvido, a
torre se levanta,
para que os sonhos
da matéria louvem!
E, na sua amplitude
sacrossanta,
a alma de um
Brunelleschi ou de um Beethoven,
fulge na pedra,
quando a pedra canta!
*
Fernando
Pessoa
(1888-1935,
Lisboa, Portugal)
PASSOS DA CRUZ – II
Há um poeta em mim
que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo...
PASSOS DA CRUZ – III
Fernando
Pessoa
Adagas cujas jóias
velhas galas...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas...
O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas...
O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...
PASSOS DA CRUZ – V
Fernando
Pessoa
Tênue, roçando
sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante
passa e esquece,
E dia a dia adias
para prece
O rito cujo ritmo
só decoras...
Um mar longínquo e
próximo umedece
Teus lábios onde,
mais que em ti, descoras...
E, alada, leve,
sobre a dor que choras,
Sem querer saber de
ti a tarde desce...
Erra no anteluar a
voz dos tanques...
Na quinta imensa
gorgolejam águas,
Na treva vaga ao
meu ter dor estanques...
Meu império é das
horas desiguais,
E dei meu gesto
lasso às algas mágoas
Que há para além de
sermos outonais...
PASSOS DA CRUZ – VII
Fernando
Pessoa
Fosse eu apenas,
não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloriola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...
Uma coisa existente sem viver,
Noite de vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloriola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...
PASSOS DA CRUZ – XI
Fernando
Pessoa
Não sou eu quem
descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora
alguém em mim.
Pus a alma no nexo
de perdê-la
E o meu princípio
floresceu em Fim.
Que importa o tédio
que dentro em mim gela,
E o leve outono, e
as galas, e o marfim,
E a congruência da
alma que se vela
Com os sonhados
pálios de cetim?
Disperso... E a
hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um
arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A
vida? O sonho? Deixa-se...
E, abrindo as asas
sobre Renovar,
A erma sombra do vôo
começado
Pestaneja no campo abandonado...
NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ – I
Fernando
Pessoa
Quando, despertos
deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,
Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.
Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;
Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,
Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.
Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;
Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.
NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ –
II
Fernando
Pessoa
Mas antes era o
Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita
Luz, já apagada
Do Caos, chão do
Ser, foi levantada
Em Sombra, e o
Verbo ausente escurecido.
Mas se a Alma sente
a sua forma errada,
Em si, que é
Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste
Mundo, humano e ungido.
Rosa Perfeita, em
Deus crucificada.
Então, senhores do
limiar dos Céus,
Podemos ir buscar
além de Deus
O Segredo do Mestre
e o Bem profundo;
Não só de aqui, mas
já de nós, despertos,
No sangue atual de
Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre
a geração do Mundo.
NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ –
III
Fernando
Pessoa
Ah, mas aqui, onde
irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
..........................................
Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
BARROW-ON-FURNESS – IV
Fernando
Pessoa
Conclusão a sucata!
... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...
A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...
A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...
*
Mário
de Sá Carneiro
(1890,
Lisboa, Portugal-1916, Paris/França)
SALOMÉ
Insônia rôxa. A luz
a virgular-se em medo,
Luz morta de luar,
mais Alma do que a lua...
Ela dança, ela range.
A carne, álcool de nua,
Alastra-se p’ra mim
num espasmo de segredo...
Tudo é capricho ao
seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu,
upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio...
Alabastro!... A minha Alma parou...
E o seu corpo
resvala a projetar estátuas...
Ela chama-me em Íris.
Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios
nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos,
punhais... A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a
chorar — há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som,
oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial
que humanizou um Santo...
CERTA VOZ NA NOITE RUIVAMENTE
Mário
de Sá Carneiro
Esquivo sortilégio
o dessa voz, opiada
Em sons cor de
amaranto, às noites de incerteza,
Que eu lembro não
sei de Onde — a voz duma Princesa
Bailando meia nua
entre clarões de Espada.
Leonina, ela
arremessa a carne arroxeada;
E bêbada de Si,
arfante de Beleza,
Acera os seios nus,
descobre o sexo… Reza
O espasmo que a
estrebucha em Alma copulada…
Entanto nunca a vi
mesmo em visão. Somente
A sua voz a fulcra
ao meu lembrar-me. Assim
Não lhe desejo a
carne – a carne inexistente…
É só de voz-em-cio
a bailadeira astral ─
E nessa
voz-Estátua, ah! nessa voz-total,
É que eu sonho
esvair-me em vícios de marfim.
PIED-DE-NEZ
Mário
de Sá Carneiro
Lá anda a minha Dor
às cambalhotas
No salão de
vermelho atapetado —
Meu cetim de
ternura engordurado,
Rendas da minha
ânsia todas rotas...
O Erro sempre a
rir-me em destrambelho —
Falso mistério, mas
que não se abrange...
De antigo armário
que agoirento range,
Minha alma atual o
esverdinhado espelho...
Chora em mim um
palhaço às piruetas;
O meu castelo em
Espanha, ei-lo vendido —
E, entretanto,
foram de violetas,
Deram-me beijos sem
os ter pedido...
Mas como sempre, ao
fim — bandeiras pretas,
Tômbolas falsas,
carrossel partido...
ÚLTIMO SONETO
Mário
de Sá Carneiro
Que rosas fugitivas
foste ali!
Requeriam-te os
tapetes – e vieste...
— Se me dói hoje o
bem que me fizeste,
É justo, porque
muito te devi.
Em que seda de
afagos me envolvi
Quando entraste,
nas tardes que apareceste!
Como fui de percal
quando me deste
Tua boca a beijar,
que remordi...
Pensei que fosse o
meu o teu cansaço —
Que seria entre nós
um longo abraço
O tédio que, tão
esbelta, te curvava...
E fugiste... Que
importa ? Se deixaste
A lembrança violeta
que animaste,
Onde a minha
saudade a Cor se trava?...
*
Manuel
Bandeira
(1886,
Recife, Pernambuco-1968, Rio de Janeiro, RJ)
À BEIRA D’ÁGUA
D’água o fluido
lençol, onde em áscuas cintila
O sol, que no
cristal argênteo se refrata,
Crepitando na
pedra, a cuja borda oscila,
Cai, gemendo e
cantando, ao fundo da cascata.
Parece a grave
queixa, atroando em torno a mata,
Contar não sei que
mágoa inconsolada, e a ouvi-la
A alma se nos
escapa e vai perder-se abstrata
Na avassalante paz
da solidão tranqüila…
Às vezes, a tremer
na fraga faiscante,
Passa uma folha
verde, e sobre a veia ondeante
Abandona-se toda,
ansiosa pelo mar…
E vendo-a mergulhar
na espuma que a sacode,
Não sei que íntimo
e vago anseio ali me acode
De cair como a
folha e deixar-me levar…
VERDES MARES
Manuel
Bandeira
Clama uma voz
amiga: – “Aí tem o Ceará.”
E eu, que nas ondas
punha a vista deslumbrada,
Olho a cidade. Ao
sol chispa a areia doirada.
A bordo a faina
avulta e toda a gente já
Desce. Uma moça ri,
quebrando o panamá.
“- Perdi a mala!”
um diz de cara acabrunhada
Sobre as águas,
arfando, uma breve jangada
Passa. Tão frágil!
Deus a leve, onde ela vá.
Esmalta ao fundo a
costa a verdura de um parque.
E enquanto a grita
aumenta em berros e assobios
Rudes, na confusão
brutal do desembarque:
Fitando a vastidão
magnífica do mar,
Que ressalta e
reluz: – “Verdes mares bravios…”
Cita um sujeito que
jamais leu Alencar.
O SÚCUBO
Manuel
Bandeira
Quando em silêncio
a casa adormecia e vinha
Ao meu quarto a
aromada emanação dos matos,
Deslizáveis astuta,
amorosa e daninha,
Propinando na treva
o absinto dos contatos.
Como se enlaça ao
tronco a ondulação da vinha,
Um por um
despojando os fictícios recatos,
Estreitáveis-me
cauta e essa pupila tinha
Fosforescências
como a pupila dos gatos.
Tudo em vós flamejava
em instintiva fúria.
A garganta cruel
arfava com luxúria.
O ventre era um
covil de serpentes em cio...
Sem paixão, sem
pudor, sem escrúpulos, — éreis
Tão bela! e as
vossas mãos, fontes de calafrio,
Abrasavam no ardor
das volúpias estéreis...
SONETO INGLÊS No. 2
Manuel
Bandeira
Aceitar o castigo
imerecido,
Não por fraqueza,
mas por altivez.
No tormento mais
fundo o teu gemido
Trocar num grito de
ódio a quem o fez.
As delícias da
carne e pensamento
Com que o instinto
da espécie nos engana
Sobpor ao generoso
sentimento
De uma afeição mais
simplesmente humana.
Não tremer de
esperança nem de espanto.
Nada pedir nem
desejar senão
A coragem de ser um
novo santo
Sem fé num mundo
além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
VITA NUOVA
Manuel
Bandeira
De onde me veio
esse tremor de ninho
A alvorecer na
morta madrugada?
Era todo o meu
ser... Não era nada,
Senão na pele a
sombra de um carinho.
Ah, bem velho
carinho! Um desalinho
De dedos tontos no painel
da escada...
Batia a minha cor
multiplicada,
— Era o sangue de
Deus mudado em vinho!
Bandeiras tatalavam
no alto mastro
Do meu desejo. No
fervor da espera
Clareou a distância
o súbito alabastro.
E na memória em
nova primavera,
Revivesceu,
candente como um astro,
A flor do sonho, o
sonho da quimera.
PEREGRINAÇÃO
Manuel
Bandeira
Quando olhada de
face, era um abril.
Quando olhada de
lado, era um agosto.
Duas mulheres numa:
tinha o rosto
Gordo de frente,
magro de perfil.
Fazia as
sobrancelhas como um til;
A boca, como um o (quase). Isto posto,
Não vou dizer o
quanto a amei. Nem gosto
De me lembrar, que
são tristezas mil.
Eis senão quando um
dia... Mas, caluda!
Não me vai bem
fazer uma canção
Desesperada, como
fez Neruda.
Amor total e
falho... Puro e impuro...
Amor de velho
adolescente... E tão
Sabendo a cinza e a
pêssego maduro...
*
QUARENTA ANOS
Mário
de Andrade
(1893-1945, São Paulo/SP)
(1893-1945, São Paulo/SP)
A vida é para mim,
está se vendo,
Uma felicidade sem
repouso;
Eu nem sei mais se
gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido
em se sofrendo.
Bem sei que tudo é
engano, mas sabendo
Disso, persisto em
me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida
foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi
meu pecado… Horrendo
Seria, agora que a
velhice avança,
Que me sinto
completo e além da sorte,
Me agarrar a esta
vida fementida.
Vou fazer do meu
fim minha esperança,
Oh sono, vem!… Que
eu quero amar a morte
Com o mesmo engano
com que amei a vida.
*
SONETO
Menotti
Del Picchia
(1892-1988, São Paulo/SP)
Soneto! Mal de ti
falem perversos
que eu te amo e te
ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti
a ave da graça
na gaiola dos teus
quatorze versos.
Quantos sonhos de
amor jazem imersos
em ti que és dor,
temor, glória e desgraça?
Foste a expressão
sentimental da raça
de um povo que
viveu fazendo versos.
Teu lirismo é a
nostálgica tristeza
dessa saudade
atávica e fagueira
que no fundo da
raça nos verteu
a primeira guitarra
portuguesa
gemendo numa praia
brasileira
naquela noite em
que o Brasil nasceu...
*
ALEGORIA DO CREPÚSCULO
Athos
Damasceno Ferreira
(1902-1975,
Porto Alegre, Rio Grande do Sul)
Quem
andará, dentro da tarde triste e fria,
perlustrando,
em silêncio, as aléias de sombra,
e
deixando, ao cair de um vago fim de dia,
o
apressado rumor de leves pés na alfombra?...
Quem
andará, dentro da tarde, triste e erma,
dentro
da tarde, de olhos raros e distantes,
enchendo
o Parque de volúpia morna e enferma
de
dedos longos e de lábios balbuciantes?...
Quem
andará, dentro da tarde triste e fria,
quase
roçando o espelho azul do lago raso?...
Quem
andará dentro da tarde triste e fria?...
Quem
andará perto do céu, nesta hora sombria,
desfolhando
do azul, sobre as cinzas do ocaso,
grinaldas
cor de luar, dentro da tarde fria?...
*
A CHUVA
CHOVE...
Cecilia
Meireles
(1901-1964 - Rio de Janeiro/RJ)
A chuva
chove mansamente... como um sono
Que
tranquilize, pacifique, resserene...
A chuva
chove mansamente... Que abandono!
A chuva
é a música de um poema de Verlaine...
E
vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em
certo paço, já sem data e já sem dono.
Véspera
triste como a noite, que envenene
A alma,
evocando coisas líricas de outono.
... Num
velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com
muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de
imensos corredores espectrais,
Onde
murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
Enquanto
o vento, crepitando pelas portas,
Revira
in-fólios, cancioneiros e missais...
*
Cassiano
Ricardo
(1895,
São José dos Campos, São Paulo/SP-1974, Rio de Janeiro/RJ)
IARA, A MULHER VERDE
Neste país de
coisas em excesso
o sol me agride, o
azul passa da conta.
No entanto, os
poucos beijos que te peço
o teu amor futuro
me desconta.
De tanto céu tenho
a cabeça tonta.
O meu jornal é todo
em verde impresso.
Só tu, a quem já um
pássaro amedronta,
te fechas no mais
íntimo recesso...
No país do
excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta
jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida
a manhã louca!
Por que seres
assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem
branca - e com que graça –
só falta vir pousar
em nosso ombro?
MARCHA FÚNEBRE
Cassiano
Ricardo
Quando
às vezes escuto a música sombria
que ao
ouvido me vem, qual “requiescat in pace”,
sinto a
mágoa cruel de quem acreditasse
ser um
pouco do que morreu, ao fim do dia.
A
saudade, a amargura, a dúvida, a agonia
irrompem
dentro em mim, num brusco desenlace,
e entre
a dor que me fere e o som que me extasia
uma
idéia, em meu ser contraditório, nasce.
A idéia
de ser eu aquele por quem arde
a
estrela que surgiu como um círio, na tarde.
Haverá
quem nesta hora as coisas não confunda?
E vindo
não sei de onde, e caminhando a esmo,
sob a
minha visão extática e profunda
lá vou
eu conduzindo o enterro de mim mesmo.
EVA MATUTINA
Cassiano
Ricardo
No Paraíso — mundo
sem dialética —
o amor é uma
palavra ainda vã.
Ninguém percebe o
que há de mulher nua
na que seria nossa
triste irmã.
Por eu não existir,
passeia implume
(orvalho ainda os
olhos de avelã)
a que trazia, na
manhã da carne,
como uma rosa, a
invenção do amanhã.
Corpo cheio de
lágrimas futuras,
em que o vermelho
símbolo da maçã
não irrompeu ainda.
Eva gorjeia.
Eva é o primeiro
pássaro da manhã.
Pela graça de estar
e não de ser.
Olhos ainda azuis
de olhar sem ver.
*
Carlos
Drummond de Andrade
(1902-Itabira, Minas
Gerais-1987, Rio de Janeiro/RJ)
SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
Perdi o bonde e a
esperança.
Volto pálido para
casa.
A rua é inútil e
nenhum auto
passaria sobre meu
corpo.
Vou subir a ladeira
lenta
em que os caminhos
se fundem.
Todos eles conduzem
ao
princípio do drama
e da flora.
Não sei se estou
sofrendo
ou se é alguém que
se diverte
por que não? na
noite escassa
com um insolúvel
flautim.
Entretanto há muito
tempo
nós gritamos: sim!
ao eterno.
REMISSÃO
Carlos
Drummond de Andrade
Tua memória, pasto
de poesia,
tua poesia, pasto
dos vulgares,
vão se engastando
numa coisa fria
a que tu chamas:
vida, e seus pesares.
Mas, pesares de
quê? perguntaria,
se esse travo de angústia
nos cantares,
se o que dorme na
base da elegia
vai correndo e
secando pelos ares,
e nada resta,
mesmo, do que escreves
e te forçou ao
exílio das palavras,
senão contentamento
de escrever,
enquanto o tempo,
em suas formas breves
ou longas, que sutil
interpretavas,
se evapora no fundo
do teu ser?
A INGAIA CIÊNCIA
Carlos
Drummond de Andrade
A madureza, essa
terrível prenda
que alguém nos dá,
raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito
de oferenda
sob a glacialidade
de uma estela,
a madureza vê, posto
que a venda
interrompa a
surpresa da janela,
o círculo vazio,
onde se estenda,
e que o mundo
converte numa cela.
A madureza sabe o
preço exato
dos amores, dos
ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra
sua ciência
e nem contra si
mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a
mão, livre de encantos,
se destroem no
sonho da existência.
SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA
Carlos
Drummond de Andrade
Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que
visto
muitas há que não
vi.
Sem mim como sem ti
posso durar.
Desisto
de tudo quanto é
misto
e que odiei ou
senti.
Nem Fausto nem
Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso
oaristo,
posso dizer:
assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem
isto.
OFICINA IRRITADA
Carlos
Drummond de Andrade
Eu quero compor um
soneto duro
como poeta algum
ousara escrever.
Eu quero pintar um
soneto escuro,
seco, abafado,
difícil de ler.
Quero que meu
soneto, no futuro,
não desperte em
ninguém nenhum prazer.
E que, no seu
maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo
saiba ser, não ser.
Esse meu verbo
antipático e impuro
há de pungir, há de
fazer sofrer,
tendão de Vênus sob
o pedicuro.
Ninguém o lembrará:
tiro no muro,
cão mijando no
caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se
deixa surpreender.
RETORNO
Carlos
Drummond de Andrade
Meu ser em mim
palpita como fora
do chumbo da
atmosfera constritora.
Meu ser palpita em
mim tal qual se fora
a mesma hora de
abril, tornada agora.
Que face antiga já
se não descora
lendo a efígie do
corvo na da aurora?
Que aura mansa e
feliz dança e redoura
meu existir, de
morte imorredoura?
Sou eu nos meus
vinte anos de lavoura
de sucos
agressivos, que elabora
uma alquimia
severa, a cada hora.
Sou eu ardendo em
mim, sou eu embora
não me conheça mais
na minha flora
que, fauna, me
devora quanto é pura.
CONCLUSÃO
Carlos
Drummond de Andrade
Os impactos de amor
não são poesia
(tentaram ser:
aspiração noturna).
A memória infantil
e o outono pobre
vazam no verso de
nossa urna diurna.
Que é poesia, o
belo? Não é poesia,
e o que não é
poesia não tem fala.
Nem mistério em si
nem velhos nomes
poesia são: coxa,
fúria, cabala.
Então desanimamos.
Adeus, tudo!
A mala pronta, o
corpo desprendido,
resta a alegria de
estar só, e mudo.
De que se formam
nossos poemas? Onde?
Que sonho
envenenado lhes responde,
se o poeta é um
ressentido, e o mais são nuvens?
*
IMORTALIDADE
José
Régio
(1901-1969 - Vila do Conde, Portugal)
Já no lugar dos
olhos, que eram belos,
tenho um buraco atônito
e apagado;
Já rosas de
gangrena me hão tocado
comendo-me as
raízes dos cabelos;
Já os dentes me
caíram, amarelos;
Já o meu nariz é
osso cariado;
Já o meu sexo é um
trapo amarfanhado;
Já o meu ventre são
bichos aos novelos;
Já as minhas carnes
moles despegaram;
Já a língua inútil
se me apodreceu;
Já a terra se
fendeu por me aceitar;
Já milhões de pés
vivos me pisaram;
Filho de pó, já o
próprio pó sou eu...
Mas, ao terceiro
dia, hei-de acordar!
*
Vinicius
de Moraes
(1913-1980 - Rio de Janeiro/RJ)
SONETO DE INTIMIDADE
Nas tardes de
fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.
Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.
Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve
Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.
Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.
Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve
Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.
SONETO A KATHERINE MANSFIELD
Vinicius
de Moraes
O teu perfume,
amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.
Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro — e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.
Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima!... (Nunca te apartas
Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.
Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro — e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.
Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima!... (Nunca te apartas
Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
SONETO DE FIDELIDADE
Vinicius
de Moraes
De tudo, ao meu
amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
SONETO DE MEDITAÇÃO – III
Vinicius
de Moraes
O efêmero. Ora, um
pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.
E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.
O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo
Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós...
Porém o vale há de escutar a voz.
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.
E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.
O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo
Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós...
Porém o vale há de escutar a voz.
SONETO DE MEDITAÇÃO - IV
Vinicius
de Moraes
Apavorado acordo,
em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.
Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.
Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.
SONETO DE SEPARAÇÃO
Vinicius
de Moraes
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
POÉTICA
Vinicius de Moraes
De
manhã escureço
De dia
tardo
De
tarde anoiteço
De
noite ardo
A oeste
a morte
Contra
quem vivo
Do sul
cativo
O este
é meu norte.
Outros
que contem
Passo
por passo:
Eu
morro ontem
Nasço
amanhã
Ando
onde há espaço
— Meu
tempo é quando.
*
Jorge
de Lima
(1893, União
dos Palmares, Alagoas-1953, Rio de Janeiro)
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO PRIMEIRO - XV
A garupa da vaca
era palustre e bela,
uma penugem havia
em seu queixo formoso;
e na fronte lunada
onde ardia uma estrela
pairava um
pensamento em constante repouso.
Esta a imagem da
vaca, a mais pura e singela
que do fundo do
sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à
noite à outra imagem daquela
que ama me
amamentou e jaz no último pouso.
Escuto-lhe o mugido
— era meu acalanto,
e seu olhar tão
doce inda sinto no meu:
o seio e o ubre
natais irrigam-me em seus veios.
Confundo-os nessa
ganga informe que é meu canto:
semblante e leite,
a vaca e a mulher que me deu
o leite e a
suavidade a manar de dois seios.
*
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO SEGUNDO
- XVII
Jorge
de Lima
Hoje há
uma mulher nesse sol-posto,
ora
não, ora meiga, ora alvadia.
Ontem
revendo-a, muda-se o meu rosto
assustado
em cegueira, que não via.
Certa
vez a revi em findo agosto:
não era
o mesmo canto que eu ouvia;
o seu
pranto expirava um outro gosto,
retinia
o seu bronze outra alegria.
Tendo
vindo do céu chuvas antigas,
essa
ofélia dos ares semeou-se:
houve
joio e houve trigo sobre o humo.
E a
semente do joio nasceu triga,
e uma
parte do trigo transformou-se
em
sombra ou coisa menos do que fumo.
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO TERCEIRO
- XXVII
Jorge
de Lima
Contemplar o jardim
além do odor
e a mulher
silenciosa entre semblantes,
e refazê-los todos,
todos antes
que o tempo condenado
os atraiçoe.
Porque eu quero, em
memória refazê-los:
flor longínqua,
mulher não pertencida,
substância
inexistente, móvel vida,
intercessão de
nadas e cabelos.
E meus olhos
ausentes me espiando
entre as coisas
caducas e fugaces
a minha intercessão
em outras faces.
Orfeu, para
conhecer teu espetáculo,
em que queres
senhor, que eu me transforme,
ou me forme de
novo, em que outro oráculo?
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO QUARTO
- IV
Jorge
de Lima
Era um cavalo todo
feito em lavas
recoberto de brasas
e de espinhos.
Pelas tardes amenas
ele vinha
e lia o mesmo livro
que eu folheava.
Depois lambia a
página, e apagava
a memória dos
versos mais doridos;
então a escuridão
cobria o livro,
e o cavalo de fogo
se encantava.
Bem se sabia que
ele ainda ardia
na salsugem do
livro subsistido
e transformado em
vagas sublevadas.
Bem se sabia: o
livro que ele lia
era a loucura do
homem agoniado
em que o íncubo
cavalo se nutria.
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO QUARTO
- XIV E XV
Jorge
de Lima
Nasce do suor da
febre uma alimária
que a horas certas
volta pressurosa.
Crio no jarro
sempre alguma rosa.
A besta rói a flor
imaginária.
Depois descreve em
tomo ao leito uma área
de picadeiro em que
galopa. Encare-a
o meu espanto, vem
a besta irosa
e desbasta-me o
juízo em sua grosa.
Depois repousa as
patas em meu peito
e me oprime com fé
obsidional.
Tomo-me exangue e
mártir no meu leito,
repito-lhe o que
sou, que sou mortal.
E ela me diz que
invento esse delírio;
e planta-se no
jarro e nasce em lírio.
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO QUINTO
- VIII
Jorge
de Lima
A espepe e a noite se deitaram juntas,
paralelas as asas sobre as asas,
ambas como as solidões, ambas defuntas,
e entre elas, sós, ardentes como brasas,
espreitando à direita e à esquerda o estrito
espaço ínfimo que entre as duas corre,
correm cruciados como o imenso grito,
imenso grito mudo de quem morre,
os olhos renegados de quem está
esperando, esperando. Que esperando?
Entre a estepe e a noite olham olhos, rente
às trevas opressoras, olhos que a
estepe e a noite juntas se estreitando
apagam misericordiosamente.
INVENÇÃO DE
ORFEU – CANTO DÉCIMO
- X
Jorge
de Lima
Não a vaga palavra,
corrutela
vã, corrompida
folha degradada,
de raiz deformada,
abaixo dela,
e de vermes, além,
sobre a ramada;
mas, a que é a
própria flor arrebatada
pela fúria dos
ventos: mas aquela
cujo pólen procura
a chama iriada
— flor de fogo a
queimar-se como vela:
mas aquela dos
sopros afligida,
mas ardente, mas
lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre
extremos. Esta sim,
esta é que é a flor
das flores mais ardida,
esta veio do início
para o eterno,
para a árvore da
vida que há em mim.
*
SONETO
Lêdo
Ivo
(1924-Maceió,
Alagoas-2012, Sevilha, Espanha)
À doce
sombra dos cancioneiros
em
plena juventude encontro abrigo.
Estou
farto do tempo, e não consigo
cantar
solenemente os derradeiros
versos
de minha vida, que os primeiros
foram
cantados já, mas sem o antigo
acento
de pureza ou de perigo
de
eternos cantos, nunca passageiros.
Sôbolos
rios que cantando vão
a
lírica imortal do degredado
que,
estando em Babilônia, quer Sião,
irei,
levando uma mulher comigo,
e
serei, mergulhado no passado,
cada
vez mais moderno e mais antigo.
*
DO AZUL, NUM SONETO
Alphonsus
de Guimaraens Filho
(1918-Mariana, Minas Gerais-2008, Rio de Janeiro)
Verificar
o azul nem sempre é puro.
Melhor
será revê-lo entre as ramadas
e os altos
frutos de um pomar escuro
— azul
de tênues bocas desoladas.
Melhor
será sonhá-lo em madrugadas,
fresco,
inconstante azul sempre imaturo,
azul de
claridades sufocadas
latejando
nas pedras — nascituro.
Não
este azul mas outro e dolorido,
evanescente
azul que na orvalhada
ficou,
pétala ingênua, torturada.
Recupero-o
sem ter, e ei-lo perdido,
azul de
voz, de sombra envenenada,
que em
nós se esvai sem nunca ter vivido.
*
TEMPO-ETERNIDADE
Paulo
Mendes Campos
(1922, Belo Horizonte, Minas Gerais-1991, Rio de Janeiro)
O instante é tudo
para mim que ausente
Do segredo que os
dias encadeia
Me abismo na canção
que pastoreia
As infinitas nuvens
do presente.
Pobre do tempo,
fico transparente
À luz desta canção
que me rodeia
Como se a carne se
fizesse alheia
À nossa opacidade
descontente.
Nos meus olhos o
tempo é uma cegueira
E a minha
eternidade uma bandeira
Aberta ao céu azul
de solidões.
Sem margens sem
destino sem história,
O tempo que se
esvai é minha glória
E o susto de minh’alma
sem razões.
*
SONETOS DE OLINDA – 1
Afonso
Félix de Souza
(1925, Jaraguá, Goiás-2002, Rio de Janeiro)
Quando na praia
imersa em luz termina
a inquietação de
mares prisioneiros,
com três rosas na
mão subo a colina
e tenho brisa e
amor por companheiros.
Tesouros que
arranquei da terna mina
da beleza - que os
possa dar inteiros
a quem borda um
jardim que me destina,
e espera-me,
infinita, entre coqueiros.
Igrejas,
casarões... onde lembranças
de era flamenga
voejam pedregosas
e tombam num tombar
de paina, mansas.
Batem de novo à
praia ondas raivosas,
mas dou por mim
numa ilha de bonanças
e neste oásis
plantam-se as três rosas.
*
A PRAÇA
DESTERRADA
Thiago
de Mello
(1926, Barreirinha,
Amazonas- )
Em
abril certa vez estive perto
da
esperança de povo erguido em canto.
Antes
nunca jamais meu peito certo
esteve
de alegria. Mas o pranto
foi que
desceu lavrando no deserto
da
praça desterrada. O meu espanto
não foi
de ver o coração coberto
pelo
medo feroz, de turvo manto.
Mas de
ver que ninguém amar sabia,
como
quem ama a rosa namorada,
a praça
de repente degradada.
Ver que
ninguém na rua uma canção
cantou
de amor chamando à rebeldia
para o
trabalho amargo da alegria.
*
SONETO DE
BODAS
Haroldo
de Campos
(1929-2003 - São Paulo/SP)
Luar de
copas e marfins renhidos
Tua
nudez a riste contra o mar.
Violetas
roucas sobre os teus soluços.
E rosas
tênues e papoulas de ar.
Um novo
deus conjura os vaticínios,
E eu
sorvo o mês, em taças, contra o mar,
Tua
nudez orçada em meus espelhos,
E rosas
tênues e papoulas de ar.
Quem te
ensinara o diapasão das noivas
Embevecido
em lírios de ninar?
Ó
Bem-Amada quem te apascentara
Nos
mansos trigos desse apascentar?
Plumas
de outono para as tuas bodas
Que
desfloreces nos porões do mar.
*
Guilherme
Figueiredo
(1915- Campinas/SP-1997, Rio de Janeiro)
OS NUNCAS.
ESSES NUNCAS
QUE SÃO NADA
Os
nuncas. Esses nuncas que são nada,
Nadas
de vida, nadas de alegria,
São
nuncas a bradar a boca fria
Do
tempo nunca em sempre disparada.
Nunca o
teu beijo. Nunca será dada
A
glória do teu ventre. Nunca o dia
De uma
só noite nunca terminada
De
amar-te como nunca. Dor vazia
Do
passado, meu nunca. E do presente
O
sempre nunca me apunhala; e à frente
Um
futuro de nuncas que se junca;
E do
clamor de sempre, nunca eterno,
Primavera,
verão, outono, inverno,
Tu,
sempre minha, tu, que és minha nunca!
POSTO QUE EM
VÃO TE ESPERO
E DESESPERO
Guilherme
Figueiredo
Posto
que em vão te espero e desespero,
Não te
arreceies de negar teu rosto:
Tratarei
de viver neste meu posto
Onde
morro do amor em que me esmero.
Bem que
bem me faria sobreposto
Abrigo
a me abrigar do clima fero
Feito
de tua ausência, do desgosto
Do
desespero com que em vão te espero.
Em vão
o vão da noite se desdobra,
Fresta
de corda que me acorda e dobra
Surdo
sino sem som só sempre sina
De não
te haver, silêncio que não ouve
Meu
silêncio de sonho que bem houve
Assassinar-me
assim, minha assassina.
DE PÉRIPLOS
HAVIDOS, CÉUS E MARES
Guilherme
Figueiredo
De
périplos havidos, céus e mares
Prenhes
de gaivotas e de luas,
Monótonas
auroras tumulares,
Repetidos
fantasmas de faluas,
Que
restou? Os esquálidos manjares
Nas
bandejas de bordo, as barbas caras
Manicuras
cantadas pelos bares,
Velhas
inglesas, vômito às tubaras,
Contrabando
escondido em roupa suja,
Cartões-postais
lambidos de lambuja,
O
espanto do rafeiro de vaginas
Que
infecta catedrais, arrota rumbas,
Ri de
Picasso, mija em catacumbas
E
esculpe didascálias nas latrinas.
*
Ferreira
Gullar
(1930, São
Luís, Maranhão-2016, Rio de Janeiro/RJ)
POEMA PORTUGUÊS 6
Calco sob os pés
sórdidos o mito
que os céus segura
— e sobre um caos me assento.
Piso a manhã caída
no cimento
como flor
violentada. Anjo maldito,
(pretendi devassar
o nascimento
da terrível magia)
agora hesito,
e queimo — e tudo é
o desmoronamento
do mistério que
sofro e necessito.
Hesito, é certo,
mas aguardo o assombro
com que verei
descer de céus remotos
o raio que me
fenderá no ombro.
Vinda a paz, rosa‑após dos terremotos,
eu mesmo ajuntarei
a estrela ou a pedra
que de mim reste
sob os meus escombros.
POEMA
PORTUGUÊS 7
Ferreira
Gullar
Neste
leito de ausência em que me esqueço
desperta
um longo rio solitário:
se ele
cresce de mim, se dele cresço,
mal
sabe o coração desnecessário.
O rio
corre e vai sem ter começo
nem
foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas
águas levando, involuntário,
luas
onde me acordo e me adormeço.
Sobre o
leito de sal, sou luz e gesso:
duplo
espelho — o precário no precário.
Flore
um lado de mim? No outro, ao contrário,
de
silêncio e silêncio me apodreço.
Entre o
que é rosa e lodo necessário,
passa o
rio sem foz e sem começo.
*
SONETO XVI
Edmir
Domingues da Silva
(1921,
Recife, Pernambuco-2001)
E estando nós
vestidos de amarelo
veio o cais certo
dia ao mar fendido,
vago e leve, de
aspecto indefinido
tão quase nós de
tímido e singelo.
E ao céu de
desembarque e de atropelo
em sangue e quase
pássaro ferido,
uma canção havíamos
pedido,
um som qualquer, de
flauta ou violoncelo.
Nós gostamos de
música e de dança,
vivemos de canções
e de esperança
se não dormidos de
ópio e de morfina.
E era de vez, os
bonzos de mãos dadas
com os
limpa-chaminés, em mascaradas,
nos ângulos sem luz
de um cais da China.
*
Carlos
Pena Filho
(1929-1960,
Recife, Pernambuco)
PARA FAZER UM SONETO
Tome um pouco de
azul, se a tarde é clara,
e espere pelo
instante ocasional.
Nesse curto
intervalo Deus prepara
e lhe oferta a
palavra inicial.
Aí, adote uma
atitude avara:
se você preferir a
cor local,
não use mais que o
sol de sua cara
e um pedaço de
fundo de quintal.
Se não, procure a
cinza e essa vagueza
das lembranças da
infância , e não se apresse,
antes, deixe
levá-lo a correnteza.
Mas ao chegar ao
ponto em que se tece
dentro da escuridão
a vã certeza,
ponha tudo de lado
e então comece.
A SOLIDÃO E SUA PORTA
Carlos
Pena Filho
Quando mais nada
resistir que valha
a pena de viver e a
dor de amar
e quando nada mais
interessar
(nem o torpor do
sono que se espalha).
Quando, pelo desuso
da navalha
a barba livremente
caminhar
e até Deus em
silêncio se afastar
deixando-te sozinho
na batalha
a arquitetar na
sombra a despedida
do mundo que te foi
contraditório,
lembra-te que
afinal te resta a vida
com tudo que é
insolvente e provisório
e de que ainda tens
uma saída:
entrar no acaso e
amar o transitório.
SONETO DO
DESMANTELO AZUL
Carlos
Pena Filho
Então,
pintei de azul os meus sapatos
por não
poder de azul pintar as ruas,
depois,
vesti meus gestos insensatos
e
colori as minhas mãos e as tuas.
Para
extinguir em nós o azul ausente
e
aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim,
nós derramamos simplesmente
azul
sobre os vestidos e as gravatas.
E
afogados em nós, nem nos lembramos
que no
excesso que havia em nosso espaço
pudesse
haver de azul também cansaço.
E
perdidos de azul nos contemplamos
e vimos
que entre nós nascia um sul
vertiginosamente
azul. Azul.
*
Mário
Faustino
(1930-Teresina, Piauí-1962,
Lima, Peru)
ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA
Estava lá Aquiles,
que abraçava
Enfim Heitor,
secreto personagem
Do sonho que na
tenda o torturava.
Estava lá Saul,
tendo por pajem
Davi, que ao som da
cítara cantava;
E estavam lá
seteiros que pensavam
Sebastião e as
chagas que o mataram.
Nesse jardim,
quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios
que os atraiçoaram!
Era a cidade exata,
aberta, clara:
Estava lá o arcanjo
incendiado
Sentado aos pés de
quem desafiara;
E estava lá um deus
crucificado
Beijando uma vez
mais o enforcado.
NAM SIBYLLAM...
Mário
Faustino
Lá onde um velho
corpo desfraldava
As trêmulas imagens
de seus anos;
Onde imaturo corpo
condenava
Ao canibal solar
seus tenros anos;
Lá onde em cada
corpo vi gravadas
Lápides eloqüentes
de um passado
Ou de um futuro
argüido pelos anos;
Lá cândidos leões
alvijubados
Às brisas temporais
se espedaçavam
Contra as salsas
areias sibilantes;
Lá vi o pó do
espaço me enrolando
Em turbilhões de
peixes e presságios —
Pois na orla do
mundo as delatantes
Sombras marinhas,
vagas, me apontavam.
RESSUSCITADO
PELO EMBATE
DA RESSACA
Mário
Faustino
Ressuscitado
pelo embate da ressaca,
Eu, vos
multiplicada, ergo-me e avanço até
O
promontório onde um cadáver, posto em maca,
Hecatombado
pela vaga, acusa o céu
Com cem
olhos abertos. Fujo e, mais adiante,
O açor
rebenta o azul e a pomba espedaçada,
Ensangüenta-me
o rastro, Avante, sombra, avante,
Cassa-me
a permissão de ficar vivo. O nada
Ladra a
meu lado, lambe e morde o calcanhar
Sem
asas de quem passa e no espaço se arrasta
Pedindo
paz ao fim, que o princípio não basta:
A
vitória pertence ao tempo que no ar
Agita
um homem só, troféu tripudiado
Pela
noite que abate o sol no mar manchado.
SONETO
Mário
Faustino
Bronze e brasa na treva: diamantes
pingam
(vibram)
lapidam-se
(laceram)
luz sólida sol rijo ressonantes
nas arestas acesas: não vos deram,
calhaus
(calhaus arfantes),
outro leito
corrente onde roçar-vos e suaves
vossas faces tornardes vosso peito
conformar
(como sino)
como
de aves
em brado rebentando em cachoeira
dois amantes precípites brilhando:
tições em selvoscura: salto!
beira
de sudário ensopado abismo armando
amo r
amo r
amo r a
mo r te
r amo
de ouro fruta amargosa bala!
e
gamo.
SONETO
Alberto
da Costa e Silva
(1931, São
Paulo/SP- )
Cerâmica
e tear: as mãos trabalham
e
constroem o amor num fim de tarde
como
jarro de rústico gargalo
ou fino
pano arcaico. Sobre o barro
põem
desenhos mais jovens de suaves
moças
dançando e restos de paisagens
da
infância e da montanha: perfis núbios
sobre o
vermelho poente desse jarro.
E a
substância mais tímida do sonho
nas
mãos do artesão fez de seu pranto
e
cismas, riso e ardor, tecido raro
em que
se borda uma novilha, bela
como o
beijo em setembro, em que se fez
o amor
com outro fio e um outro barro.
*
OUTRA COISA
Mário
Cesariny de Vasconcelos
(1923-2006 - Lisboa, Portugal)
Apresentar-te aos
deuses e deixar-te
entre sombra de
pedra e golpe de asa.
Exaltar-te
perder-te desconfiar-te
seguir-te de
helicóptero até casa
dizer-te que te amo
amo amo
que por ti passo
raias e fronteiras
que não me chamo Mário
que me chamo
uma coisa que tens
nas algibeiras
Lançar a bomba onde
vens no retrato
de dez anos de
anjinho nacional
e nove de colégio
terceiro ato
Pôr-te na posição
sexual
Tirar-te todo o bem
e todo o mal
Esquecer-me de ti
como o gato
*
Jorge
de Sena
(1919, Lisboa,
Portugal – 1978, Califórnia, EUA
PANDEMOS
(SONETO 1 A AFRODITE ANADIÓMENA)
Dentífona apriuna a
veste iguana
de que se escalca
auroma e tentavela.
Como superta e
buritânea amela
se palquitonará
transcêndia inana!
Que vúlcios
defuratos, que inumana
sussúrrica
donstália penicela,
às trícotas relesta
demiquela,
fissivirão
bolíneos, ó primana!
Dentívolos
palpículos, baissai!
lingâmicos dolins,
refucarai!
Por mamivornas
contumai a veste!
E, quando
prolifarem as sangrárias,
lambidonai
tutílicos anárias,
tão placitantos
como o pedipeste.
ANÓSIA
(SONETO 2 A
AFRODITE ANADIÓMENA))
Jorge
de Sena
Que
marinais sob tão pora luva
de
esbranforida pela retinada
não dão
volpúcia de imajar anteada
a que
moltínea se adamenta ocuva?
Bocam
dedetos calcurando a fuva
que
arfala e dúpia de antegor tutada,
e que
tessalta de nigrors nevada.
Vitrai,
vitrai que estaminera cuva!
Labiliperta-se
infanal a esvebe,
agluta,
acedirasma, sucamina,
e
maniter suavira o termidodo.
Que
marinaisdulcifima contebe,
ejacicasto,
ejacifasto, arina!...
Que
marinais, tão pora luva, todo...
URÂNIA
(SONETO 3 A AFRODITE ANADIÓMENA)
Jorge
de Sena
Purília emancivalva
emergidanto,
imarculado e rósea,
alviridente,
na azúrea juventil
conquinomente
transcurva de aste
o fido corpo tanto…
Tenras nadáguas que
oculvivam quanto
palidiscuro,
retradito e olente
é mínimo desfincta,
repente,
rasga e sedente ao
duro latipranto.
Adónica se esvolve
na ambolia
de terso antena
avante palpinado.
Fímbril, filível,
viridorna, gia
em túlida mancia,
vaivinado.
Transcorre uníflo e
suspentreme o dia
noturno ao lia e
luçardente ao cado.
AMÁTIA
(SONETO 4 A AFRODITE ANADIÓMENA)
Jorge
de Sena
Timbórica, morfia,
ó persefessa,
meláina, andrófona,
repitimbídia,
ó basilissa, ó scotia,
masturlídia,
amata cíprea,
calipígia, tressa
de jardinatas
nigras, pasifessa,
luni-rosácea
lambidando erídia,
erínea, erítia,
erótia, erânia, egídia,
eurínoma,
ambológera, donlessa.
Áres, Hefáistos,
Adonísio, tutos
alipigmaios,
atilícios, futos
de lívia damitada,
organissanta,
agonimais se
esforem morituros,
necrotentavos de
escancárias duros,
tantisqua abrandimembra
a teia canta.
****
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