GRANDES SONETOS DA NOSSA LÍNGUA - Por José Lino Grünewald - 1987






















Grandes sonetos da nossa língua/Organização e seleção de José Lino Grünewald – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.










Grandes sonetos da nossa língua
(orelhas do livro)

   Esta é a mais completa reunião de sonetos escritos em português já editada no Brasil. É uma grande viagem pelo mundo da poesia, que começa com Sá de Miranda e Luís de Camões e termina na revolucionária feita quase inteiramente de palavras novas de Jorge de Sena. Nela o leitor passará por todos os movimentos literários que já existiram no Brasil e em Portugal, além dos casos à parte na literatura como Augusto dos Anjos e seus Versos Íntimos (“O beijo é a véspera do escarro/A mão que afaga é a mesma que apedreja”). Há versos que fazem parte da memória nacional, como os de Vinícius de Moraes no Soneto da Fidelidade (“De tudo ao meu amor serei atento antes”) ou os de As pombas de Raimundo Correa (“Vai-se a primeira pomba despertada”), convivendo lado a lado com pouco conhecidas inovações experimentais como os sonetos de Mário Faustino.

   Esta obra é, enfim, um magnífico retrato através dos tempos da luta do poeta com “a última flor do Lácio, inculta e bela”, como chamava Olavo Bilac a língua portuguesa, para, dentro da forma fixa há séculos, seja com métrica perfeita e rimas ricas, em octassílabos, decassílabos ou alexandrinos, em versos brancos ou reinvenções, dizer algo sempre novo e original.

   A seleção dos sonetos apresentados obedeceu a seus critérios básicos: o de serem consagrados, independente do gosto da crítica ou do público atual, os grandes sonetos, qualquer que seja o movimento literário a que pertençam, os inovadores, o soneto metalingüístico, os que criaram alguma expressão que se incorporou ao idioma e os por assim dizer obscenos.

    Foram organizados e selecionados por José Lino Grünewald, que escreveu também o texto introdutório deste livro (Soneto: Sal e Sol da Pura Forma). Poeta e crítico, foi um dos fundadores do movimento Poesia Concreta ao lado de de Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Recentemente traduziu Os Cantos de Ezra Pound, um outro grande lançamento da Nova Fronteira.

  


SONETO:
SOL E SAL DA PURA FORMA
José Lino Grünewald


 A palavra soneto vem de som (son, desde o provençal). Daí, o sonetto, lançado na Itália, terra onde, pelo menos na fase iniciou, mais brilhou: do siciliano Giacomo de Lentino (século XIII) e também Pier delle Vigne, passando por Guittone d'Arezzo (segundo consta, o primeiro a estabelecer as regras de obrar essa forma fixa), e Guido Guinizelli, chegamos ao trio sem igual: Cavalcanti, Dante e Petrarca.
 Depois de Petrarca, o soneto inundou o mundo. Na França, com Marot e a turma da Plèiade (Ronsard, Du Bellay etc); Na Espanha, com Garcilaso de La Vega; na Inglaterra, de Surrey e Sir Thomas Wyatt,  até desembocar no gênio de Shakespeare; em Portugal, com outro trio inigualável na língua: Sá de Miranda, Luís de Camões e Diogo Bernardes. Veio o barroco logo em seguida e, principalmente, o marinismo de Giambattista Marino, quando imagens e sons dentro do verbo se entrelaçavam nos notáveis jogos de sutileza formal e conceitual: basta lembrar Gôngora.

 Na época pré-moderna e moderna, o gênero continuou dando as cartas. Baudelaire, na França, introduziu inovações na métrica e nos sistemas de rima. E lá o acompanharam simbolistas ou paralelos, como Verlaine, Rimbaud, Corbière, Laforgue e, principalmente, Malarmé. O soneto francês promovia a glória do verso alexandrino (doze sílabas, divididas em dois hemistíquios de seis), além do octossílabo. Esse modelo era mais fácil na estirpe de Racine porque, na língua francesa, há uma grande freqüência de palavras oxítonas.

 E no idioma inglês permanecia a ascendência das quatorze linhas, com os grandes nomes de Wordsworth, Keats, Elizabeth Barrett Browning ou Dante Gabriel Rosseti. Vale ressaltar que o soneto inglês, em geral, desde Wyatt e Shakespeare, ao contrário do módulo de dois quartetos e dois tercetos com rimas alternadas, utiliza aquele de três quartetos e um dístico final, rimando os dois versos.

 Evidentemente que, em especial a partir do século passado — com as grandes correntes ou escolas literárias — a forma fixa (quatorze linhas) sofreu alterações de superestrutura e, com maior freqüência, nos esquemas rimários. Faziam-se até com versos brancos (sem rima).

 No Brasil, o soneto foi praticamente introduzido pelos poetas barrocos: Gregório de Matos, Manuel Botelho de Oliveira etc. Mas foi com os parnasianos que encontrou a sua grande glória, e nisso já emerge novamente outra trindade: Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Mas, se levam a glória da popularidade, são obrigados a dividir o bastão com os simbolistas. Nem tanto os mais divulgados, como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, porém nomes como os de Da Costa e Silva, Pedro Kilkerry, Raul de Leoni.

 O século atual assistiu, em Portugal, ao esplendor de Fernando Pessoa, logo seguido, quase em mesmo brilho, no soneto, por Mário de Sá Carneiro. Aqui, no entanto, os nossos grandes poetas modernos também souberam esmerar-se no gênero e tivemos contribuições originais e da maior voltagem de um Manuel Bandeira, um Jorge de Lima, um Carlos Drummond de Andrade, um Vinicius de Moraes, um Mário Faustino.

 O soneto, pode-se dizer, é quase um esporte em matéria de poesia. Mário Faustino dizia que o fazia a fim de "exercitar a munheca" — com o objetivo de se preparar para as grandes obras épicas, alentadas. De qualquer modo, muito exige do saber do metrônomo, do saber contar funcionalmente as sílabas e forjar rimas ricas. Em suma, o soneto, em si, instiga eventuais amadores e profissionais do versejar.

 A elaboração desta antologia atendeu aos seguintes critérios: 1— o soneto consagrado, independentemente do gosto do organizador ou do próprio público atual; exemplos típicos disso são o Alma Minha Gentil Que Te Partiste (com este seu famoso cacófato), de Camões, ou o Mal Secreto, de Raimundo Correia; 2 — o grande soneto, seja clássico, barroco, parnasiano, simbolista ou moderno, seja com Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Camões, Gregório de Matos, a turma da Fênix Renascida, Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Cruz e Sousa, Pedro Militão Kilkerry, Da Costa e Silva, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima etc; 3 — o soneto inventivo, original, tendo, como alguns exemplos, aquele de uma sílaba só, de Martins Fontes, aquele soneto espacializado (sem título), de Mário Faustino, ou a seqüência da Afrodite Anadiómena (formada quase toda por palavras novas, mediante a permuta de sílabas), do português Jorge de Sena; 4 — o soneto sobre o soneto, em suma, expressões ou meditações estéticas e/ou vivenciais sobre o próprio ato de fazer, redigir, escrever, como no caso de Oficina Irritada, de Carlos Drummond de Andrade; 5 — um soneto que, independentemente de oferecer ou não outros aspectos estéticos ou inventivos, criou alguma expressão verbal que ficou na memória do público ou mesmo tornou-se integrante da fala ou de citações — estão aí exemplos como o "pálido de espanto", de Olavo Bilac, ou "um urubu pousou na  minha sorte", de Augusto dos Anjos; 6 - o gênero de soneto tido, vamos dizer assim, como "obsceno", do qual o maior representante é o lendário e anedótico Bocage — aliás, um extraordinário poeta além disso — de quem a Editora Nova Fronteira lança uma antologia.

 Voltamos a dizer: o soneto é a mais popular e, agora, tradicional, das formas fixas. Em seu contexto, conciso e concentrado, em suas regras de  jogo verbal e de versificação altamente policiada e autopoliciada, fizeram os poetas seus exercícios ou seus talismãs. Vamos à viagem — sem esquecer de lembrar que esta antologia está vulnerável a críticas sobre omissões ou exageros. Mas, quem há de?

(Páginas 19 a 21)





SAINTE-BEUVE
(UM SONETO SOBRE O SONETO)


Não ria do soneto, ó crítico em humor;
Outrora por amor o fez o grande Shakespeare; 
Nessa lira feliz, Petrarca só suspira,
E Tasso nos grilhões mitiga um pouco o ardor.

Camões em seu exílio abrevia uma via.
Porque canta em sonetos o amor que mira.
Ama Dante essa flor de mirto e a respira,
Mescla-a aos louros que cingem a fronte de guia.

Spencer ao retornar dessa ilha das magias,
Exara em mil sonetos as tristezas pias
Milton, cantando os seus, reilumina o olhar.

Renovarei o doce soneto da França;
Du Bellay, o primeiro, o trouxe de Florença,
E sabe-se mais um desse velho Ronsard.

23


Ne ris point du sonnet, ô critique moqueur;
par amour autrefois en fit le grand Shakespeare; 
c'est sur ce luth heureux que Pétrarque soupire,
et que le Tasse aux fers soulage un peu son coeur.

Camoens de son exil abrège la longueur,
car il chante en sonnets l'amour et son empire. 
Dante aime cette fleur de myrte, et la respire,
et la mêle au cyprès qui ceint son front vainqueur.

Spencer, s'en revenant de l'île  des féeries,
exhale en longs sonnets ses tristesses chéries; 
Milton, chantant les siens, ranimait son regard.

Moi, je veux rajeunir le doux sonnet de France;
du Bellay, le premier, l’apporta de Florence,
et l’on en sait plus d’un de notre vieux Ronsard.


24



*




Sá de Miranda
(1481, Coimbra-1558, Amares - Portugal)

SONETO 11

Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tão contínua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos teus rogos, no tormento!

E ver no mal que todo entendimento
naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem não fará crer que é tudo um vento?

Bem sei uns olhos, que têm toda a culpa,
e são os meus, que a toda parte vêm
após o que veem sempre e os desculpa.

Ó minhas visões altas, meu só bem,
quem vos a vós não vê, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!



SONETO 12
Sá de Miranda

Desarrazoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
e já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo é soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?



SONETO 17
Sá de Miranda

Não sei qu’em vós mais vejo; não sei que
mais ouço e sinto ao rir vosso e falar;
não sei qu’entendo maios, te no calar,
nem quando vos não vejo a alma que vê;

Que lhe aparece em qual parte qu’estê,
olhe o céu, olhe a terra, ou olhe o mar;
e, triste aquele vosso suspirar,
em que tanto mais vai, que direi qu’ê?

Em verdade não sei; nem isto qu’anda
entre nós; ou se é ar, como parece,
se fogo doutra sorte e doutra lei,

Em que ando, e de que vivo; nunca abranda;
por ventura que à vista resplandece.
Ora o que eu sei tão mal, como o direi?



SONETO 22
Sá de Miranda

O sol é grande; caem co'a calma as aves
do tempo em tal sazão, que soe ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d‘amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores;
e tudo o mais renova, isto é sem cura!



SONETO 23
Sá de Miranda

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me deponho,
E me quero afirmar se foi assi,
Pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal
quando m’era mister tant’ outr’ ajuda,
de que me valerei, se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.



SONETO 27
Sá de Miranda

Este retrato vosso é o sinal
ao longe do que sois, por desamparo,
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.

Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.

Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.

Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo? 


*


Luís de Camões
(1524, Reino de Portugal-1580, Lisboa - Portugal)

SONETO 9

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu, cá na terra, sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te;

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.



SONETO 11
Luís de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer!
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É um ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo Amor?



SONETO 17
Luís de Camões

Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando à terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.



SONETO 50
Luís de Camões

Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e pérfida esperança
Longo tempo após si me trouxe cego;

De vós me aparto, sim; porém não nego
Que inda a longa memória, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem poderá Fortuna este instrumento
De alma levar por terra nova e estranha,
Oferecido ao mar remoto, ao vento;

Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas asas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, voa, e em vós se banha.



SONETO 107
Luís de Camões

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se escureça.
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhes monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu.



SONETO 109
Luís de Camões

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vem do dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o Sol temores deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.



SONETO 178
Luís de Camões

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só, por prêmio, pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que, com enganos,
assim lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começou a servir outros sete anos,
dizendo: "Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida".



SONETO 187
Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude de muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta pura e linda semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,

Está no vivo pensamento como idéia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.


*

Diogo Bernardes
(1530, Ponte da Barca-1605, Lisboa - Portugal)

SONETO 20

Um firme coração posto em ventura,
Um desejar honesto, que se enjeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura:
Um ver-vos de piedade, e de brandura
Imagem sempre, faz-me que suspeite
Que alguma brava fera vos deu leite,
Ou que nascestes de uma pedra dura.
Ando buscando causa que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata,
Donde vem que não há quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto;
A mim, que tanto quero a quem me mata.



SONETO 24
Diogo Bernardes

Põem-me onde queima o Sol toda a verdura,
Ou onde seu ardor a neve esfria:
Põem-me onde pelo meio o carro guia,
Ou onde cobre, ou mostra a luz mais pura:
Põem-me em baixa, ou próspera ventura,
No sereno da Lua, ou na sombria
Escura noite, em longo, ou breve dia,
Em sazão inda verde, ou já madura:
Em vale, em monte, em água, em fogo, em ar,
Nas estrelas me põem, ou no profundo,
Sprito livre, ou inda à carne atado,
Com nome escuro, ou claro em todo o mundo,
Serei qual fui, não deixarei de amar
A quem amei té gora desamado.



SONETO 26
Diogo Bernardes

Eu me parto de vós, campos do Tejo
Quando menos temi esta partida,
E se minh’alma vai à dor rendida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que a razão leva vencida,
Asinha darão fim à triste vida,
Se vos não torno a ver, como desejo.
Em tanto nunca verá noite, nem dia
Apartar-se de vós minha lembrança;
Amor, que vai comigo, o certifica:
Andarão sempre em minha companhia,
Enquanto na tornada houver tardança,
Saudades do bem que em vós me fica.



SONETO 37
Diogo Bernardes

Marília, que do céu à terra dada
Foste, por glória sua, e nosso espanto,
Que verso louvará, que novo canto,
Formosura tão nova, e desusada?
Qial serena manhã alva e rosada
Foi nunca tão formosa, ou qual Sol tanto
O mundo alumiou, Marília, quanto
Teis olhos, onde Amor tem sua morada?
Se estrelas, Lua, Sol tua beleza
Perdem diante de ti, que desenganos
De perlas, de rubis, de neve e rosas!
Enfim em ti juntou a natureza
Quanto reparte em mil, e em mil anos
Com mil, e mil, e todas mui formosas.



SONETO 74
Diogo Bernardes

Quão caro venda Amor um gosto seu,
Quão pouco tarde a pena certa e justa
Bem o sabe minh’alma e bem lhe custa,
Que por um (que não viu) o melhor deu.
Milagre foi por certo escapar eu
De mar tão furioso, em fraca fusta:
Erro seria agora e cousa injusta,
Crer nas cousas d’Amor inimigo meu.
Porque nos laços seus outra vez caia,
Hora finge, hora roga, hora ameaça,
Usa de força, e manhã tudo tenta:
Mas não me enganará, por mais que faça:
Quem do naufrágio sai a nado à praia,
Té na terra se teme da tormenta.



SONETO 75
Diogo Bernardes

Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceu quando vos tinha,
Que vos visse tornadas tão asinha
Em tão compridos dias de tormento.
Aquelas torres, que fundei no vento,
O vento as levou já que as sostinha;
Do mal, que me ficou, a culpa é minha
Que sobre cousas vãs fiz fundamento.
Amor com rosto ledo e vista branda,
Promete quando dele se deseja,
Tudo possível faz, tido segura:
Mas dês que dentro n’alma reina, e manda,
Como na minha fez, quer que se veja,
Quão fugitivo é, quão pouco dura.



SONETO 82
Diogo Bernardes

Quem por ouro, que não descansa, cansa,
Passando o mar, e rompendo a terra, erra,
Porque de terra desenterra terra,
Sem ver cobiça, que foi mansa, mansa.
E tanto sem fazer mudança, dança,
Que de nada, que não s’aferra , ferra,
E assim nada, que desencerra, cerra,
Porque enfim nada em balança lança.
Quem anda neste pressuposto posto
Atente bem em que demanda anda,
Primeiro que dele seja a vida ida,
E se pretende sem desgosto gosto,
Cumpra com quem, nunca demanda, manda,
Porque a tal vida é devida vida.



*

ESSES MARES QUE VEJO, ESSAS AREIAS
Francisco Manuel de Melo
(1608, Lisboa-1666, Lisboa, Alcântara - Portugal)

Esses mares que vejo, essas areias
Rompi, pisei, beijei hoje, há sete anos;
Sete servi, sete perdi; tiranos
Sempre os fados nas vozes das sereias.
Tantos há que arrastando cruéis cadeias
Não guardo ovelhas, mas aguardo danos,
Das fermosas Raquéis vendo os enganos,
Sem a promessa ouvir das Lias feias.
Sofra Jacó fiel Labão mentindo;
Que se dobra o servir, da alta consorte
Já não pode negar-lhe a mão devida.
Ai do que espera; quanto mais servindo!
Para um tão triste fim, tão leda morte,
Pra um tão largo amor, tão curta vida.


*

D. Tomás de Noronha
(1770, Lisboa, Portugal-1847, Olinda, Pernambuco)

A MUITOS TEMORES NO PORT COM MEDO
DE UMA NAU DE HOLANDESES

Portugal, Portugal, és um sandeu
Estás caduco já por esta cruz,
Tudo talam-balam, tanto truz, truz,
Para quarenta cus cheio de breu!

Para quarenta cus, pois bem eu sei,
Quem, sem lança nenhuma ou arcabuz,
Para dar guerra a quatrocentos cus
Armado está com quando Deus lhe deu.

Holanda será caça se cá vem,
Se tendes medo a Holanda, o meu Ruão
Sabe correr e caça muito bem.

Esforçai-vos, pois tendes capitão,
Que toda Holanda escassamente tem
Para forrar a perna de um calção.



DE CONSOANTES FORÇADOS
D. Tomás de Noronha

Não sossegue eu mais que um bonifrate,
De urina sobre mim se vaze um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me deem água em açafate.

Se jogar o xadrez, me deem um mate,
E jagando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate.

Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,

E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas tragam cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.



*


SONETO CLXVIII
Antonio Lobo de Carvalho
(1730, Guimarães-1787, Lisboa - Portugal)

Este que vês aqui, formosa dama,
Entre moles testículos pendente,
Já foi em outro tempo raio ardente,
Hoje é pavio, que não solta chama:

Este que vês aqui, já foi o Gama
Dos mares onde navega tanta gente;
Hoje é carcaça velha, que somente
Dos estragos que fez conserva a fama:

Este que vês aqui, foi do trabalho
O maior sofredor (quem tal dissera?)
Hoje do amor é lânguido espantalho:

Este que vês aqui, na ardente esfera,
Já foi flor, já foi luz, já foi caralho;
Mas hoje não é já quem dantes era.


*

AO RIGOR DE LISI
Jerônimo Baía
(1620, Coimbra, Portugal-1688)

Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois, Lisi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o Céu vê, cerca o mar, a terra goza.

Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa,
Que a perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.

Não viu tão doce, plácida e amena,
(Brame o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Luz o Céu, ave a terra, o mar sirena.

Vós triunfais de sirena, luz e ave,
Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Mor cometa, árduo muro, rocha grave.


*

Antonio Barbosa Bacelar
(1610-1663, Lisboa, Portugal)

A UMA AUSÊNCIA

Sinto-me sem sentir todo abrasado
No rigoroso fogo, que me alenta,
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado:
Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta,
Alegro-me de ver-me atormentado:
Choro no mesmo ponto, em que me rio,
No mor risco me anima a confiança,
Do que menos se espera estou mais certo;
Mas se de confiado desconfio,
É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim, como em deserto.



A UM DESMAIO
Antonio Barbosa Bacelar

Contra Flora aos suspiros fugitiva
O Amor em um delíquio se conjura,
Muda-se o vivo fogo em neve pura,
Mas mais aquela neve o fogo aviva;
Até no paroxismo almas cativa
Desmaiada a mais bela formosura,
No embargos da vida ainda lhe dura
O rigor, em sinal de que era viva.
Sylvio, que aflisse a ele, e a Flora adora
Trazendo-a no peito retratada,
Com um desmaio outro desmaio chora;
Mas não foi maravilha desusada,
Se a bela cópia se desmaia em Flora,
Que se desmaie em Sylvio a copiada.


*

Soror Violante do Céu
(1601-1693 - Lisboa, Portugal)

A DONA MARIANA DE LUNA

Musas, que no jardim do rei do dia
Soltando a doce voz, prendeis o vento:
Deidades, que admirando o pensamento
As flores aumentais, que Apolo cria.
Deixai, deixai do Sol a companhia,
Que fazendo invejoso o Firmamento
Uma Lua, que é Sol, e que é portento,
Um jardim vos fabrica de harmonia.
E porque não cuideis que tal ventura
Pode pagar tributo à variedade
Pelo que tem de Lua a luz mais pura:
Sabei que por mercê da divindade
Este jardim canoro se assegura
Com o muro imortal da eternidade.



AO AMADO AUSENTE
Soror Violante do Céu

Se aparta do corpo a doce vida,
Domina em seu ligar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente d’alma estou, que me dá vida?
Não quero sem Sylvano já ter vida,
Pois tudo sem Sylvano é viva morte;
Já que se foi Sylvano venha a morte,
Perca-se por Sylvano a minha vida.
Ah, suspirando ausente, se esta morte
Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não me vem dar-me a mesma morte?
Mas se n’alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.



SONETO
Soror Violante do Céu

Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este, meu tirano deus Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido,
Me deixa o sentido duplicado.
Absorta no rigor de um duro fado
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido,
E tenho já de morte o mal logrado.
Enlevo-me no dano, que me ofende;
Suspendo-me na causa de meu pranto,
Mas meu mal, ai de mim, não se suspende
Oh cesse, cesse amor, tão raro encanto,
Que para quem de ti não se defende,
Basta menos rigor, não rigor tanto.


*

Bocage
(1765, Setúbal-1805, Lisboa - Portugal)

MEU SER EVAPOREI
NA LIDA INSANA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus! Quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.



JÁ BOCAGE NÃO SOU!...
À COVA ESCURA
Bocage

Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!… Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!



SONETO IX
Bocage

Arreitada donzela em fofo leito
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachocho estreito:

De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branda crica nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito.

A voraz porra, as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrando:

Como é ainda boçal perde os sentidos;
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.



DOS TÓRRIDOS SERTÕES,
PEJADOS D’OURO
Bocage

Dos tórridos sertões, pejados d’ouro,
Saiu um sabichão d’escassa fama,
Que os livros preza, os cartapácios ama,
Que das línguas repartem o tesouro:

Arranha o persiano, arranha o mouro,
Sabe que Deus em turco Alá se chama;
Que no grego alfabeto o G é gama,
Que taurus em latim quer dizer touro:

Para papaguear saiu do mato:
Abocanha talentos, que não goza;
É mono, e prega unhadas como gato:

É nada em verso, quase nada em prosa:
Não conheces, leitor, neste retrato
O guapo charlatão Tomé Barbosa?




CAMÕES, GRANDE CAMÕES,
QUÃO SEMELHANTE
Bocage

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos trances da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


*

SONETO
Filinto Elísio
(1734, Lisboa, Portugal-1819, Paris, França)

Cristo morreu há mil e tantos anos;
foi descido da cruz, logo enterrado:
mas até aqui de pedir não tem cessado
para o sepulcro dele os franciscanos.

Tornou Cristo a surgir entre os humanos,
subiu da terra aos céus, lá está sentado,
e ainda à saúde dele sepultado,
bebem (o saco o paga) estes maganos.

E cuida quem lhes dá a sua esmola,
que eles a gastam em função tão pia?
Quanto vos enganais; oh gente tola!

O altar-mor com dois cotos se alumia;
e o frade com a puta que o consola,
gasta de noite o que lhe dais de dia.

*

Gregório de Matos
(1636, Salvador, Bahia-1696, Recife, Pernambuco)

SONETO

Largo em sentir, em respirar sucinto,
Peno e calo, tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento,
Mostro que o não padeço e sei que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro do coração é que o sustento
Com que, para penar é sentimento;
Para não se entender, é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a Terra, o Mar suspiros.

Mas oh, do meu segredo alto conceito!
Pois não chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.



ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO
DO MENINO DEUS DE N. S. DAS
MARAVILHAS,
QUE DESACATARAM INFIÉIS NA SÉ DA
BAHIA
Gregório de Matos

O todo sem a parte, não é todo;
a parte sem o todo não é parte;
mas se a parte o faz todo, sendo parte,
não se diga, que é parte, sendo o todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,
e todo assiste inteiro em qualquer parte,
e feito em partes todo em toda a parte,
em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,
pois que feito Jesus em partes todo,
assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
um braço, que lhe acharam sendo parte,
nos diz as partes todas deste todo.



AOS AFETOS, E LÁGRIMAS DERRAMADAS
NA AUSÊNCIA DA DAMA
A QUEM QUERIA BEM
Gregório de Matos

Ardor em firme Coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
incêndio em mares de água disfarçado;
rio de neve em fogo convertido:

tu, que em um peito abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo, em cristais aprisionado;
quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,
se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
como quis que fosse a neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.



AOS CARAMURUS DA BAHIA
Gregório de Matos

Um calção de pindoba, a meia zorra,
camisa de urucu, mantéu de arara,
em lugar de cotó, arco e taquara,
penacho de guarás, em vez de gorra.

Furado o beiço, sem temer que morra
o pai, que lho envazou cuma titara,
porém a mãe a pedra lhe aplicara
por reprimir-lhe o sangue que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé,
sem mais eis que a do gôsto, quando erra,
de Paiaiá tornou-se em abaité.

Não sei onde acabou, ou em que guerra:
só sei que dêste Adão de Massapé
procedem os fidalgos desta terra.



AOS SRS. GOVERNADORES DO MUNDO
EM SECO DA CIDADE DA BAHIA,
E SEUS COSTUMES
Gregório de Matos

A cada canto um grande Conselheiro,
que nos quer governar cabana e vinha,
não sabem governar sua cozinha,
e querem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüente Olheiro
da vida do Vizinho e da Vizinha,
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
para o levar à Praça e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés aos Homens nobres;
posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados:
todos os que não furtam, muito pobres:
eis aqui a Cidade da Bahia.


*

PONDERAÇÃO DO ROSTO
E OLHOS DE ANARDA
SONETO X

Manuel Botelho de Oliveira
(1636-1711 - Salvador, Bahia)

Quando vejo de Anarda o rosto amado,
vejo ao céu e ao jardim ser parecido
porque no assombro do primor luzido
tem o sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocado
de açucenas e rosas o vestido;
porque se vê nas faces reduzido
todo o império de Flora venerado.

Nos olhos e nas faces mais galharda
ao céu prefere quando inflama os raios,
e prefere ao jardim, se as flores guarda:

enfim dando ao jardim e ao céu desmaios,
o céu ostenta um sol, dous sóis Anarda,
um maio o jardim logra; ela dous maios.


*

SONETO
Sebastião da Rocha Pita
(1660, Salvador, Bahia-1738, Cachoeira, Bahia)

O desvelo maior tem aplicado
Fílis para esquecer um bem perdido,
Mas como pode o bem ser esquecido,
Quando o próprio desvelo o faz lembrado?

Como pode o discurso desvelado
Ver-se do que imagina dissuadido?
Lembrar-se de esquecer traz no sentido,
E vem o esquecimento a ser cuidado.

Se da perda o descuido não tomasse
Por empresa, essa mágoa que padece
Fora possível, que lhe não lembrasse.

Mas a memória em Fílis permanece,
Pois se do descuido de cuidado nasce,
Do que quer esquecer se não esquece.


*

SONETO JOCO-SÉRIO
Luís Canelo de Noronha

Para que colhe flores meu meni-
Neste campo, ou jardim, ou messe pra-
Se lhe há de suceder u’a desgra-
De morder-lhe na mão um cruel bi-?

Pero se é um Menino pequeni-
Não lhe estava melhor o papar pa-?
Se quer flores. Não basta a sua gra-?
Para graça não sobra o ser boni-?

Mais se pois é pensão a desventu-
De quem nasce gentil, que quer ago-?
Pague à morte, meu belo, o seu tribu-;

Nesse canto porém enquanto Cho-
Namorada assim minha triste Mu-
As exéquias lhe faz por este mo-.


*


ELOGIO EUTRAPÉLICO

Crítico-Encomiástico, Seri-Faceto, Joco-Sério, Irônico-Enfático, Metódico-Empírico, Médico-Jurídico, Cripto-Lógico, Antagonístico-Erótico: Ao Eruditíssimo Acadêmico-Físico, o Doutor Mateus Saraiva, usando, nas suas Obras, de gudos, e outras licenças, contra a Crusca Moderna, e Nova Reforma do Parnaso. 





SONETO SEMIAGUDO
Manuel Tavares de Sequeira e Sá
(Portugal)

Meu Doutor: Dos assuntos a maté.............ria
exauristes Agido de tal for.......................ma
que esgotastes sutil por culta nor.............ma
da Hipocrene os Cristais, de Numa a Egé...ria
Hoje alcança por Vós burlesco-sé.............ria
A Acadêmia feliz sábia refor....................ma
e Minerva, aprendida a Platafor...............ma
já, de Palas merece o soldo, ou fé.............ria
E enfim, quando prudente as Musas fri......as
de Saraiva julgava nas empre.................sas
nunca as vi mais alegres em meus di.........as
Protestando ainda obrar por Vós fine.........zas
 quando acharem nas Vossas Poesi..............as  
em lugar dos Agudos, Agude....................zas



*


Cláudio Manuel da Costa
(1729, Mariana, Minas Gerais-1789, Ouro Preto, Minas Gerais)

SONETO LXIV

Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece, que se cansa, de que a um triste
Haja de aparecer: quanto resiste
A seu raio este sítio tenebroso!

Não pode ser, que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
Acaso o meu delírio! se me assiste
Ainda aquele humor tão venenoso!

Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai um pastor: outro assobia,
E o gado para o monte vai chamando.

Ora não há mais louca fantasia!
Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe, quando é noite, ou quando é dia.



SONETO XCVIII
Cláudio Manuel da Costa

Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci! oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.


*


ESTELA E NIZE
Alvarenga Peixoto
(1744, Rio de Janeiro-1792, Ambaca, Angola)

Eu vi a linda Estela, e namorado
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nise, e a achei tão bela,
Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste estado
Não posso distinguir Nise de Estela?
Se Nise vir aqui, morro por ela;
Se Estela agora vir, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços,
Ou faz de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços.


*

Olavo Bilac
(1865-1918, Rio de Janeiro/RJ)

A SESTA DE NERO

Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E marmor de Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.

Nero no toro ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.

Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.

Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.



VIA LÁCTEA — XI
Olavo Bilac

De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
Usam todas de lágrimas e preces:
Tu de acerbas risadas e ironias.

De modo tal minha atenção desvias,
Com tal perícia meu engano teces,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor terias.

Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
Falo-te – e com que fogo a voz levanto! –
Em vão... Finges-te surda às minhas frases...

Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a nova dor que trazes
À dor antiga que doía tanto!



VIA LÁCTEA — XIII
Olavo Bilac

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso! ”E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,   X
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi:”Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.



RIO ABAIXO
Olavo Bilac

Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga...
Quase noite. Ao sabor do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos. Curva os bambuais o vento.

Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
Desmaia agora o ocaso. A noite apaga
A derradeira luz do firmamento.
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.

Um silêncio tristíssimo por tudo
Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fímbria do horizonte mudo:

E o seu reflexo pálido, embebido
Como um gládio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.



O VOADOR
Olavo Bilac

Em Toledo. Lá fora, a vida tumultua
E canta. A multidão em festa se atropela...
E o pobre, que o suor da agonia enregela,
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.

Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua
Vem velar-lhe a agonia, através da janela.
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,
E entre as névoas da morte uma visão flutua:

"Voar! Varrer o céu com as asas poderosas,
Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!..."

E o pranto do luar cai sobre o catre imundo...
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão...



LÍNGUA PORTUGUESA
Olavo Bilac

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “Meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


*

CÍRCULO VICIOSO
Machado de Assis
(1839-1908 - Rio de Janeiro)

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– “Mísera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”


*

Alberto de Oliveira
(1857, Saquarema, RJ-1937, Niterói, RJ)

HORAS MORTAS

Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço,
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia!

Desta janela aberta à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo    
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica.
Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas, 
Um verso, um pensamento, uma saudade.



CONTAI, ARCOS DA PONTE,
ONDAS DO RIO!
Alberto de Oliveira

Contai, arcos da ponte, ondas do rio,
Balças em flor, lírios das ribanceiras,
O enlevo meu... Das curvas ingazeiras
Cerrado arqueia-se o dossel sombrio.

Arde o sol pelo campo, onde o bravio
Gado se dessendenta nas ribeiras;
À beira d’água, como em desafio,
Cantam, batendo roupa, as lavadeiras.

Eu... ponte, rio, flores, balças, tudo,
Eu, junto a vós, embevecido e mudo...
 — Aquelas horas de êxtase, contai-as! —

Eu, como que num fluido estranho imerso,
Faço, talvez o meu primeiro verso,
Vendo corar ao sol as suas saias.



PALEMO
Alberto de Oliveira

Viu nestas águas mortas, o corpo frio
Boiando errante à fúria da procela,
Palemo, o pescador, a Ulânia bela,
Filha de Alceu, mimosa flor do rio.

Deu-lhe a desesperança de perdê-la
Ao seu perdido amor tal desvario,
Que em mais não cuida do que em ter o esguio
Caniço na água e o pensamento nela.

Acompanha, com os olhos na corrente,
O anzol e a ideia – árdua, incessante, lida!
Nem o estar só, nem o mau tempo o assombra!

Nem horas conta – que o seu mal latente
Alheio a tudo o traz e à própria vida,
Curvo a pescar a sua própria sombra.



CAJÁS
Alberto de Oliveira

Cajás! Não é que lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!

— “Vamos sós?” perguntei-lhe. E a feiticeira:
— “Então! tens medo de ir comigo?” — E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.

— “Uma carreira!” — “Uma carreira!” — “Aposto!”
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.

Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias voar, como vou vendo.



IRONIA
Alberto de Oliveira

De cima abaixo a lâmina brilhante
Da vidraça estalou. E o vidro agora
Fendido ao meio, espia o céu cá fora
Com o olhar partido em dois, pisco, hesitante...

Não sei o que secreto e lancinante
Ali se esconde, — alma talvez que chora
E num esgar se estorce, aflita, embora
A serena aparência do semblante.

Brinca-lhe o sol à face, a aura lhe adeja,
E o vidro, sem que alguém lhe ouça um gemido
Ou o sofrer recôndito lhe veja,

Mudo, irônico, frio e incompreendido,
Cortando anavalhado a luz que o beija,
Parece estar-se a rir de estar ferido.



*


Vicente de Carvalho
(1866-1924, Santos, São Paulo)

VELHO TEMA

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada,
e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,

existe, sim; mas nós não a alcançamos,
porque está sempre apenas onde a pomos,
e nunca a pomos onde nós estamos.



VELHO TEMA — IV
Vicente de Carvalho

Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.


*

Raimundo Correia
(1859, São Luís, Maranhão-1911, Paris, França)

MAL SECRETO

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!



AS POMBAS
Raimundo Correia

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüinea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.



GREEN SPOT
Raimundo Correia

Da atroz Verdade o incêndio não devasta
Teus sólios de âmbar e esmeralda, e a imensa
Paisagem de ouro e carmesim, suspensa
No horizonte, que, além, foge e se afasta...

Do supremo repouso a hora nefasta
Soou. A treva impenetrável, densa,
Cresce em torno; e enche a noite de descrença
A amplidão do deserto adusta e vasta...

Seja esta embora a noite derradeira;
A caravana trôpega e cansada
Inda sorris, ao longe, áurea e fagueira!

E ela linda, ao longe, vê, feita a jornada,
Sorrir-lhe o verde oásis, a palmeira,
O fio de água e a sombra suspirada...



O MISANTROPO
Raimundo Correia

À boca, às vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem; tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.

Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!

Porque, desde que esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?

Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!



A CAVALGADA
Raimundo Correia

A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

 *

SONETO
Maciel Monteiro
(1804, Recife, Pernambuco-1868, Lisboa, Portugal)

Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pôde ou nunca ousara;
Formosa, qual jamais desabrochara
Na primavera a rosa purpurina;

Formosa, qual se a própria mão divina
Lhe aninhara o contorno e a forma rara;
Formosa, qual jamais no céu brilhara
Astro gentil, estrela peregrina;

Formosa, qual se a natureza e a arte,
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores,
Jamais soube imitar no todo ou parte;

Mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!


*

MOESTUS SED PLACIDUS
José Maria do Amaral
(1812, Rio de Janeiro-1885, Niterói, RJ)

Tristezas de minha alma tão sentidas,
Que sois doces memórias do passado,
Do tempo já vivido, e tão lembrado,
Inda me dais as horas já perdidas!

Horas de tanto bem, tão bem vividas,
Quando vivi feliz e descuidado,
Sejam ao coração desenganado
Sonhos que enganem dores tão gemidas.

Tem hoje o meu viver tal agonia,
Que é doçura a tristeza da saudade,
E a saudade do tempo é poesia.

Flores da quadra sois da mocidade,
Minha velhice em vós se refugia,
Tristezas de minh’alma em soledade.


*

VISITA À CASA PATERNA
Luís Guimarães Jr.
(1845, Rio de Janeiro-1898, Lisboa, Portugal)

Como a ave que volta ao ninho antigo
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez, do amor materno,
Tomou-me as mãos, — olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que da luz noturna à claridade
Minhas irmãs e minha mãe... O pranto

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.


*

Alphonsus de Guimaraens
(1870, Ouro Preto, Minas Gerais-1921, Mariana, Minas Gerais)

VAGA EM REDOR DE TI...

Vaga em redor de ti uma fulgência,
Que tanto é sombra quanto mais fulgura:
O teu sorriso, que é divino, vence-a,
E ela, que é luz de estrela, pouco dura.

De outra não sei que tenha a etérea essência
Que nos teus olhos brilha: nem a pura
Linha de arte de tal magnificência,
Como a que o rosto de anjo te emoldura.

Na candidez ebúrnea do semblante
Tens um lis de ternura, que desliza
À flor da pele em mágoa suavizante.

Não sei que manto celestial arrastas...
És como a folha do álamo que a brisa
Beija e balança ao luar das noites castas.



HÃO DE CHORAR POR ELA
OS CINAMOMOS...
Alphonsus de Guimaraens

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão: — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria...”
E, pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul, ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"


*

Raul de Leoni
(1895, Petrópolis-1926, Itaipava - Rio de Janeiro)

INSTINTO

Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão! 

Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!

És a minha verdade e a ti entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego,
A minha linda e trágica inocência!

Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Edipo, eterno e mudo,
De todas as esfinges da Existência!...



MEFISTO
Raul de Leoni

Espírito flexível e elegante,
Ágil, lascivo, plástico, difuso,
Entre as cousas humanas me conduzo
Como um destro ginasta diletante.

Comigo mesmo, cínico e confuso,
Minha vida é um sofisma espiralante;
Teço lógicas trêfegas e abuso
Do equilíbrio na Dúvida flutuante.

Bailarino dos círculos viciosos,
Faço jogos sutis de idéias no ar
Entre saltos brilhantes e mortais,

Com a mesma petulância singular
Dos grandes acrobatas audaciosos
E dos malabaristas de punhais...



NASCEMOS UM PARA O OUTRO,
DESSA ARGILA...
Raul de Leoni

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras,
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila.

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço de longe o oráculo de Eleusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses.


*

DUAS ALMAS
Alceu Wamosy
(1895, Uruguaiana-1923, Sant’Ana do Livramento - Rio Grande do Sul)

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...


*

Antônio Nobre
(1867, Porto-1900, Foz do Douro  - Portugal)

SONETO

Não repararam nunca? Pela aldeia,
Nos fios telegráficos da estrada,
Cantam as aves, desde que o Sol nada,
E, à noite, se faz sol a lua cheia.

No entanto, pelo arame que as tenteia,
Quanta tortura vai, numa ânsia alada!
O Ministro que joga uma cartada,
Alma que, às vezes, d’Além-Mar anseia:

— Revolução! — Inútil. — Cem feridos,
Setenta mortos. — Beijo-te! — Perdidos!
— Enfim, feliz!-?-! — Desesperado. — Vem.

E as boas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, Antônio! Deves ser também.



SONETO
Antônio Nobre

Ó virgens que passais ao sol poente
pelas estradas ermas a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente
que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
o sol que tomba, aureolando o mar,
a fartura da seara reluzente,
o vinho, a graça, a formosura, o luar.

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu lar desaterrai
todas aquelas ilusões antigas

que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas
adormecei-me nessa voz... Cantai!


*

Antero de Quental
Portugal (1842-1891)

NA MÃO DE DEUS

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!



O QUE DIZ A MORTE
Antero de Quental
(1842-1891, Ponta Delgada  -  Portugal)

Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. —

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.



METEMPSICOSE
Antero de Quental

Ardentes filhas do prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vós se agita e freme?

Noutra vida e outra esfera, onde geme
Outro vento, e se acende um outro dia,
Que corpo tínheis? que matéria fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
Arrastando, leoas ou panteras,
De dentadas de amor um corpo exangue...

Mordei, pois, esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze flutuante...
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!


*

Emílio de Menezes
(1866, Curitiba, Paraná-1918, Rio de Janeiro, RJ)

MARCHA FÚNEBRE

Baixaste sobre mim teu olhar funerário
Numa resignação piedosa de hora extrema,
E as pálpebras caindo em alvas de sudário
Velaram-me de todo a luz clara e suprema,

E tateante no mundo hostil, no mundo vário,
Sem outro guia, sem outra alma que o meu poema
Ilumine e engrinalde e o faça extraordinário,
Um poema em que minh’alma artista ria ou gema —

Vou para além ouvindo uma música nova
Feita de pás de terra a te cair no peito
Como que para pôr o meu amor à prova

E essa música ouvindo, estranha em seu efeito,
Sinto a luz a morrer e cantarem-lhe à cova
Um funéreo e feral réquiem de luares feito.



OLHOS FUNÉREOS — IV
Emílio de Menezes

Dentro do funeral dos seus olhos pressagos,
Enlutados talvez por algum sonho extinto,
Como na estagnação sinistra de dois lagos
Mira-se duplamente a mesma flor do Instinto.

Olhos! vós sois, por certo, o fúnebre recinto.
Onde vêm responsar, aos íntimos estragos,
Os restos de ilusão que dentro d'alma sinto
E que são para mim meus únicos afagos.

Perturba a placidez do meu sonhar de asceta,
O augúrico fulgor dos seus dois negros cílios
Imponderáveis como asas de borboleta.

Os meus mortos ideais em teu olhar, asile-os
Essa, que ele me abriu, cova humilde e discreta,
Onde irei sepultar meus últimos Idílios!...



OLHOS FUNÉREOS — V
Emílio de Menezes

Olha! de par em par, as duas portas abro
Que deitam para o céu por teus olhos de sombra;
Este mundo febril, este mundo macabro,
Já me não horroriza e já me não assombra.

É o céu! da Via-láctea o estranho candelabro
Fulge. Em tudo há fulgor e há carícias de alfombra;
Luz-me no teu olhar da lua o rosto glabro,
Nada o olhar me perturba ou a mente me ensombra.

Só tristeza, entretanto, em teus olhos me mostras
Tal se fossem a tumba em que os sonhos empedro
Como as pérolas dentro à válvula das ostras; —

E os cílios, — doce alpendre à cuja sombra medro,
Como, neles meu ser todo fechas e prostras
Num círculo feral de casuarina e cedro!...


*

Cruz e Sousa
(1861-Florianópolis, Santa Catarina-1898, Antônio Carlos, Minas Gerais)

LÉSBIA

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
Planta mortal, carnívora, sangrenta,
Da tua carne báquica rebenta
A vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,
Ri, ri risadas de expressão violenta
O Amor, trágico e triste, e passa, lenta,
A morte, o espasmo gélido, aflitivo...

Lésbia nervosa, fascinante e doente,
Cruel e demoníaca serpente
Das flamejantes atrações do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,
Fluem capros aromas e os letargos,
Os ópios de um luar tuberculoso...



TRIUNFO SUPREMO
Cruz e Sousa

Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
É quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fúteis ouropéis mais belos!

É quem ficou no mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensangüentando,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo, mas ficou sonhando!



INVULNERÁVEL
Cruz e Sousa

Quando dos carnavais da raça humana
Forem caindo as máscaras grotescas
E as atitudes mais funambulescas
Se desfizerem no feroz Nirvana;

Quando tudo ruir na febre insana,
Nas vertigens bizarras, pitorescas
De um mundo de emoções carnavalescas
Que ri da Fé profunda e soberana;

Vendo passar a lúgubre, funérea
Galeria sinistra da Miséria,
Com as máscaras dos rostos descoladas;

Tu que és o deus, o deus invulnerável,
Resiste a tudo e fica formidável,
No Silêncio das noites estreladas!



UM SER
Cruz e Sousa

Um ser na placidez da Luz habita,
Entre os mistérios inefáveis mora.
Sente florir nas lágrimas que chora
A alma serena, celestial, bendita.

Um ser pertence à música infinita
Das Esferas, pertence à luz sonora
Das estrelas do Azul e hora por hora
Na Natureza virginal palpita.

Um ser desdenha das fatais poeiras,
Dos miseráveis ouropéis mundanos
E de todas as frívolas cegueiras...

Ele passa, atravessa entre os humanos,
Como a vida das vidas forasteiras,
Fecundada nos próprios desenganos.


*

SEMPRE!
Domingos do Nascimento
(1862, Guaraqueçaba-1905, Curitiba  -  Paraná)

Quando outrora parti, era em plena alvorada,
A estrela–d’alva ardia ao cimo da montanha.
E do planalto olhando, oh surpresa tamanha!
Morria a estrela-d’alva à beira-mar tombada...

E me vendo passar nessa corrida estranha
Da mocidade em flor, me disse a sorte airada:
Como hás de ser feliz em tua glória, ganha
Nesta da vida esconsa e misteriosa estrada?!

Desci: e anos sem fim, sempre visões ignotas
Que almas fazem gemer, como naus entre fráguas
Numa desolação atroz de velas rotas...

Ó taças de cicuta! Ó flores de ópio! Trago-as
De parcéis em parcéis, de ilhotas sobre ilhotas,
Olhos para o alto-mar das infinitas mágoas!


*

MINHA SENHORA,
Azevedo Cruz
(1870, Campos-1905, Nova Friburgo - Rio de Janeiro)

MINHA SENHORA,

                                                                 o amor

degenerou, por fim, numa palavra falsa,
e hoje já não é mais uma alucinação;
tudo o que o doura e o veste e o transfigura e o realça
da fantasia vem, nunca do coração!

É uma frase feliz no delírio da valsa,
uma chama no olhar, um aperto de mão...
um capricho, uma flor, uma luva descalça
que alguém deixou cair e que se ergue do chão!

Disse-lhe isto e esperei. Um silêncio aflitivo,
longo e soturno como os torvos pesadelos,
pairou no espaço como um ponto sobre um i!

Dormi; quando acordei vi-me, enterrado, vivo,
dentro da noite má dos seus negros cabelos,
em cuja cerração corre que me perdi!...

            Do Sonho.


*

Pethion de Vilar*
(1870-1924, Salvador, BA)

SONETO PARA O SÉCULO XX

Dizem que a arte de Goethe é uma arte anacrônica
Coeva do mamute e das larvas primárias;
Que Homero não passou de uma abantesma trágica
Vislumbrada através de névoas milenárias.

Dizem que todos nós lembramos uns ridículos
Idólatras senis de coisas funerárias,
E andamos a colher – incuráveis maníacos –
Em cinzas hibernais, flores imaginárias;

Dizem que a Poesia há muito está cadáver;
Que a rima faz cismar num guiso de funâmbulo,
Monótono, a tinir no trampolim do Verso...

Que importa? Se bendita, essa loucura mística
Entorna em nossa Mágoa o leite do papáver
E abre à nossa volúpia o azul de outro Universo?



MARINHA
Pethion de Vilar

Desce a Noite enrolada em brumas hibernais...
Trágica solidão, vago instante sombrio,
Em que, tonto de medo, o olhar não sabe mais
Onde começa o mar e onde acaba o navio.

Nem o arfar de uma vaga: o mar parece um rio
De óleo; oxidado o céu de nuvens colossais,
Num zimbório de chumbo acaçapado e frio,
Escondendo no bojo a alma dos temporais.

Nem das águas no espelho o reflexo de um astro...
Apenas o farol, no vértice do mastro,
Rubra a pupila, a arder, dentro de uma garoa.

E lá vai o navio, espectral, lento e lento,
Como um negro vampiro, enorme e sonolento,
Pairando sobre um caos de tênebras, à toa.


 (*) Pethion de Villar é o pseudônimo literário do médico e poeta brasileiro Egas Moniz Barreto de Aragão.


*

  

O HIPOGRIFO
Severiano de Resende
(1871, Mariana, Minas Gerais-1931, Paris/França)


                               A José de Freitas Vale

Resfolega o hipogrifo, indômito, batendo
No asfalto as patas de ouro; e os olhos de águia adusta
Sobre as nuvens e além dos sóis ovante erguendo,
Já no azul a cabeça em fogo barafusta.

O éter transpõe, afIando as asas, belo e horrendo,
E haurindo a Vida e a Graça e a Idéia eterna e augusta,
Ó como eu nesse arroubo insofrido compreendo
Que ao estranho hipogrifo o gesto astral não custa.

No solo os áureos pés, no empíreo em glória a fronte,
Terras, mares e céus, de horizonte a horizonte,
Mede, calcando o pó, e os páramos transcende.

Brotam fráguas de luz na poeira dos seus rastros
E nas landas glaciais e tristes, ermas de astros,
Novas constelações o seu hálito acende.


*

ABRINDO O LIVRO
Alves de Faria
(1942, São Paulo/SP-    )

A — sombra geme aqui. Ruínas este soneto.
A — arcaria da frase é um esgarado momo
e sobre este papel erguem-se os versos como
velhos muros de pedra ou restos de esqueletos.

A imagem lembra um curvo e triste cinamomo,
onde a hera da dor se enrosca ao tronco preto
e passeia através da quadra e do terceto
a saudade que reza, em religioso assomo.

Senta-se a mágoa sobre os escombros dispersos
do hemistíquio onde bate o coração dos versos,
e em derredor rasteja o verme dos gemidos.

E como um braço, amor, que no outro braço arrima,
cai em música estranha a rima sobre a rima,
num sonoro rumor de mármores partidos.


*

PORQUE O MEU BRAÇO
É ENCORDOADO EM MÚSCULOS
Adalberto Guerra Duval*
(1872, Porto Alegre, Rio Grande do Sul-1947, Petrópolis/Rio de Janeiro)

Porque o meu braço é encordoado em músculos
E pareço talhado para a lida,
Ninguém crê nos meus íntimos crepúsculos...
Vocês não sabem que eu nasci suicida?

E levantei-me cedo e fui viajar...
Por mais que andasse não saí do mundo,
Por mais que andasse, ia comigo, a andar,
A sombra de um desgosto vagamundo.

E para que viajar? O esforço é inútil.
A desventura é a túnica inconsútil.
A carne é dolorosa, a carne é triste.

Uma viagem só, para o Nirvana,
Que nesta longa travessia humana
Vi o avesso de tudo quanto existe!

(*)introdutor do verso livre no Brasil (1900).


*

AZUL
Orlando Teixeira
(1875, São João da Boa Vista/São Paulo-1902-Sítio/Minas Gerais)

Chapéu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azuis o pára-sol e as luvas, Senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa toda de azul, por mil bocas bendita.

Há um bálsamo azul nesse azul que palpita,
Misticismos de um mundo, há muito em vão sonhado,
Azul que a alma da gente a idolatrá-la incita,
Azul claro, azul suave, azul de céu lavado.

Deixa na rua um rastro azul que cega e prende,
Não sei que de anormal, de fantasma e de duende,
Que prende os pés ao solo e ao mundo os olhos cerra;

Vendo-a, não se vê nada que o azul, tonteia...
Como num sonho azul, logo nos vem à ideia
Como um pedaço de céu azul passeando a terra.

*

REVIVESCÊNCIA
Maurício Jubim
(1875-Rio de Janeiro-1923)

Para evocar a angelical pureza
Desse Perfil que o meu pincel revela,
— Saudade — fica nos meus olhos presa
E os meus olhos de lágrimas constela.

Num roxo reverbero em toda a tela,
Dos vagos tons da tinta da Tristeza,
Lembra, entre incensos, morta, numa cela,
De lívido perfil — Santa Teresa!

Fulge um fino fulgor na fina face,
Como se através da nívea neve
A fria luz da Lua a iluminasse.

Fugidia visão dos meus delírios...
Demora no meu sonho vago e leve
Sob um clarão agônico de círios!...


*

ESTRANHAS LÁGRIMAS
Félix Pacheco
(1879-Teresina, Piauí-1935-Rio de Janeiro/RJ)

Lágrimas... Noutras épocas verti-as.
Não tinha o olhar enxuto, como agora.
Alma, dizia então comigo, chora,
Que o pranto diminui as agonias.

Ah! Quantas vezes pelas faces frias,
Umas, outras, após, a toda hora,
Gota a gota rolando, elas, outrora,
Marcaram Noutes e marcaram Dias!

Vinham do Oceano d’Alma, imenso e fundo,
De espuma às ondas salpicando o flanco,
Numa fremência amargurada e louca.

Nos olhos, hoje, as Lágrimas estanco...
Rolam, porém, sem que as descubra o Mundo,
Sob a forma de Risos, pela boca!


*

INTERLUNAR
Maranhão Sobrinho
(1879, Barra do Corda, Maranhão-1915-Manaus, Amazonas)

Entre nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
rubro como, de sangue, um hoplita messênio
o Sol, vencido, desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez de uni recolhido essênio...

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Estefânio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

O ônix das sombras cresce ao trágico declínio
do dia em que, a lembrar piratas do mar Jônio,
põe, no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...

Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho solar da Morte e do Demônio
com as torres medievais as sombras do Interlúnio...


*

Pedro Kilkerry
(1885, Santo Antônio de Jesus-1917, Salvador - Bahia)

CETÁCEO

Fuma. É cobre o zênite. E chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala  um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.

Tine em cobre o zênite e o vento arqueja o oceano
Longo enforca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia, ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.



CÉRBERO
Pedro Kilkerry

É, não vens mais aqui... Pois eu te espero,
Gele-me o frio inverno, o sol adusto
Dê-me a feição de um tronco, a rir, vetusto
— Meu amor a ulular... E é o teu Cérbero!

É, não vens mais aqui... E eu mais te quero,
Vago o vergel, todo o pomar venusto
E a cada fruto de ouro estendo o busto,
Estendo os braços, e o teu seio espero.

Mas como pesa esta lembrança... a volta
Da aléia em flor que em vão, toda, transponho,
E onde te foste, e a cabeleira solta!

Vais corações rompendo em toda a parte!
Virás, um dia... E à porta do meu Sonho
Já Cerbero morreu, para agarrar-te.



AMOR VOLAT
Pedro Kilkerry

Não, não é que comigo ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje, fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar, largamente, um bocado
De músculos pingando a levar-me no bico!



AD VENERIS LACRIMAS
Pedro Kilkerry

Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto
Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua,
Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto
Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua...

Canta a alâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto
Acorda e ouço a voz ou da alâmpada ou sua.
O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto
Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua.

Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro
Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava
Finas frechas de luz na cúpula aquecida...

Querem cantar de Íon os dois seios, em coro...
Mas sua alma — por Zeus! — na água azul doutra Vida
Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava.



*

Da Costa e Silva
(1885, Amarante, Piauí-1950, Rio de Janeiro/RJ)

CRUZADA NEGRA

MORS – em letras de luz gravo no meu escudo.
A divisa imortal de cavaleiro traço
Em campo negro. E, após, visto a armadura de aço.
Preme a cota, a luzir, o meu peito desnudo.

O elmo à cabeça, a espada à cinta, a lança ao braço,
Desço ao pátio e cavalgo o meu corcel sanhudo,
E ele, a resfolegar, indiferente a tudo,
Rasga, como um fuzil, a escuridão do espaço.

Levo a lira no arção. Impassível e forte,
No solar do Não Ser, ante o perfil da Morte,
Cantarei a balada augusta e soberana

De cavaleiro errante menestrel transeunte…
E aonde vou? Aonde vou? Ainda há alguém que o pergunte?
– Busco a Jerusalém remota do Nirvana…



TARÂNTULA
Da Costa e Silva

Doudo, sonho que o Sol é a maior das aranhas,
–Tarântula do Azul – a ígnea teia da Vida
Tecendo caprichosa, a arrancar das entranhas
Rubros fios de sangue e de luz difundida.

Urde os fios e os prende, elo por elo, à urdida
Rede transluminosa, a alongar as estranhas
Antenas de ouro e fogo, e com a trama tecida
Estende véus iriais para além das montanhas…

Nessa teia de luz um mistério se encerra:
Sabe-o a Aranha, cravando o enorme olhar que infunde
A energia vital que há no ventre da Terra.

Aracnídeo exemplo, almo e augusto, desvendo
No Sol, como a ensinar que tudo se fecunde
Sempre, Aranha do Azul, véus de noiva tecendo…



SAUDADE
Da Costa e Silva

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio…
Saudade! Amor de minha terra… O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho… O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando…
E, ao o vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…

Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando… E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra…



SUPREMO ENIGMA
Da Costa e Silva

Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.

Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.

Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…

Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?


*

À TARDE O POENTE DESFIA...
Ernâni Rosas
(1886-Desterro, Florianópolis/Santa Catarina-1955, Rio de Janeiro)

À Tarde o Poente desfia
Topázios com filigrana,
Vindo ouvir a melodia
Dos vasos de porcelana!

Castelos do ocaso, esfinge,
Em cinza d'oiro, penumbra!
A Tarde em lírios nos cinge
Para o longe que a deslumbra...

Fulgores de rubra seda
Na dolência carmesim
Que vai do poente à alameda...

Cintilos d'Astros, Poema!
Diluir d'Opalas, Jardim...
De Salomé: o Diadema!
  

*

REGINA MARTYRUM
Álvaro Moreyra
(1888-Porto Alegre, Rio Grande do Sul-1964, Rio de Janeiro)

                                                             Para Dona Belleta

Nossa Senhora da Saudade! um dia,
juntei as mãos, nostálgico, invocando
tua alada presença... Nos céus, ia
o enterro do Crepúsculo passando...

E entre os verdes do Longe, aparecia,
Tisicamente, a Lua Nova, quando,
toda de Roxo, a andar, pela elegia
da Hora bruna, surgiste, me acenando...

E desde então ficaste em meio às trevas
dessa existência obscura... Para o Extinto,
ao que gozei, piedosa tu me levas...

E, hoje, sou como um Bêbado que escombra
a Vida real, e assiste, à luz do Absinto,
às transfigurações da própria Sombra!...

 *

Camilo Pessanha
(1867-Coimbra, Portugal-1926, Macau, República Popular da China)

FONÓGRAFO
Camilo Pessanha

Vai declamando um cômico defunto.
Uma platéia ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente
A cripta e a pó, – do anacrônico assunto.

Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua...
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, – extática corola.

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro – o cheiro de junquilhos,
Vivido e agro! – tocando a alvorada...

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebra-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!



ESVELTA, SURGE!
VEM DAS ÁGUAS, NUA
Camilo Pessanha

Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! — para o expor à Morte...
Mas que ora — a infame! — não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.


*

TÚMULO DE BAUDELAIRE
Eduardo Guimaraens
(1892, Porto Alegre, Rio Grande do Sul-1928, Rio de Janeiro)

Um anjo, que possui uma espada de chama,
hirto e pálido, à fronte um halo virginal,
guarda o Túmulo, junto ao mármore imortal,
a que o Poeta desceu, cego de luz e lama.

Outro, que às mãos desfralda o ardor de uma auriflama,
olha, cismando, o azul profundo como o mal;
e Lúcifer, enfim, magnífico e fatal,
tem à boca a revolta em que a blasfêmia clama.

Entre a aridez da terra e a solidão noturna,
fundo abismo, do espaço ao lúgubre esplendor,
fendem-se do Desejo as largas fauces de urna.

E as Danaides, de aspecto envelhecido e eterno,
tentam encher em vão esse tonel de horror!
Ora, lá dentro, o Céu! Uiva, lá dentro, o Inferno!


*

Duque Costa
(1894, Rio de Janeiro-1977)

VISÃO DE MAIO

Na viva carnação de uma corola aberta
na puberdade, a seiva untuosa e policroma,
da perfumea narcose, em volutas, desperta
numa conspiração, a alma errante do aroma!

Ei-la, flagrante, a errar pelos tufos, incerta,
grato incenso pagão, surto de estoma e estoma,
que transmigre depois e depois se reverta
no veludo de um seio! E no oiro de uma coma!...

— Hálito vegetal se exala e se destila
nas verdes frondes, como expostas para a Altura,
cheias de verde e saúde êxul da clorofila!...

E, ei-la em névoas que vão, e se vai concebê-las
numa reencarnação de luz que a transfigura
na auricrinita umbela imensa das estrelas!


A TEMPESTADE
Duque Costa

Curtindo a enorme dor de um parto formidando,
trombas estouram, como em ribombos de bumbo;
e as nuvens, colossais dromedários de chumbo,
sinistramente vão passando, vão passando...

Na torva ogiva, a Lua é a sombra de um nelumbo;
revolto, o Mar é um deus fustigado, berrando;
e a noite — templo roto — é o imenso caos, de quando,
a blasfemar, convulso, em mim mesmo sucumbo!

Ruiva de raiva, ao ruir, o raio risca, ronca,
rompe, ricocheteia e, em relâmpagos erra,
e abre brechas e brame e racha a grota bronca.

Lembra campas de bronze, indo aos tombos em pompas;
Roma em ruínas, a arder, e rolando por terra,
num estrondo infernal de petardos e trompas!


*

Augusto dos Anjos
(1884, Cruz do Espírito Santo, Paraíba-1914, Leopoldina, Minas Gerais)

AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal do Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!


BUDISMO MODERNO
Augusto dos Anjos

Tome, Dr., esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!



MATER ORIGINALIS
Augusto dos Anjos

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum sexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!



ÚLTIMO CREDO
Augusto dos Anjos

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
na generalidade descrente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!



ASA DE CORVO
Augusto dos Anjos

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!



VERSOS ÍNTIMOS
Augusto dos Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



O MAR, A ESCADA E O HOMEM
Augusto dos Anjos

“Olha agora, mamífero inferior,
“À luz da epicurista ataraxia,
“O fracasso da tua geografia
“E do teu escafandro esmiuçador!

“Ah! Jamais saberás ser superior,
“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o vastíssimo vapor,

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade da Escada íngreme:
“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!”



SONETO
Augusto dos Anjos

N'augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.

São minhas crenças divinais, ardentes
— Alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos,

Quando da vida, no eternal soluço,
Eu choro e gemo e triste me debruço
Na laje fria dos meus sonhos pulcros,

Desliza então a lúgubre coorte.
E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.


*

Martins Fontes
(1884-1927, Santos, São Paulo)

NOSCE TE IPSUM

Quem serei? Quem sou eu? Não me conheço
e tu, meu sósia, te conheces já?
Estudaste a tua alma pelo avesso,
tua mortalidade que será?

Nota-me bem. Feito do mesmo gesso,
que o mesmo em tudo sejas. Oxalá!
E, sendo assim, contigo me pareço,
e, o que és, comigo se parecerá.

Verás, a olhar-me, tua imagem cara,
que a face é minha, mas o rosto é teu,
e a exatez a aparência desmascara.

Relembrarás alguém que ontem morreu,
e, reencarnando em mim, hoje te encara,
sem saber quem tu és, ou quem sou eu.


SONETO MONOSSILÁBICO
Martins Fontes

Vo
gar
Ro
lar

O
ar
do
lar

na
flor


por
A-
mor



CREPÚSCULO
Martins Fontes

Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
e de doçura triste, inexprimivelmente.

À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
entre nuvens de opala, a concha do crescente.

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.



O ESPÍRITO DA MATÉRIA
Martins Fontes

Também as catedrais são sinfonias:
Rege a massa coral da arquitetura
a divinização da partitura;
e ambas se irmanam por analogias!

O alegro, o adágio, o andante, a tessitura,
o arco, o fuste, o florão...Alegorias
que, pela execução das harmonias,
Timbram exatas, no esplendor da altura!

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem.
E, pelo olvido, a torre se levanta,
para que os sonhos da matéria louvem!

E, na sua amplitude sacrossanta,
a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,
fulge na pedra, quando a pedra canta!


*


Fernando Pessoa
(1888-1935, Lisboa, Portugal)

PASSOS DA CRUZ – II

Há um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice...

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo...



PASSOS DA CRUZ – III
Fernando Pessoa

Adagas cujas jóias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas...

O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas...

Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estruge

Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram... 



PASSOS DA CRUZ – V
Fernando Pessoa

Tênue, roçando sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias para prece
O rito cujo ritmo só decoras...

Um mar longínquo e próximo umedece
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem querer saber de ti a tarde desce...

Erra no anteluar a voz dos tanques...
Na quinta imensa gorgolejam águas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas mágoas
Que há para além de sermos outonais...



PASSOS DA CRUZ – VII
Fernando Pessoa

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....

Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloriola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas... 



PASSOS DA CRUZ – XI
Fernando Pessoa

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do vôo começado
Pestaneja no campo abandonado...



NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ – I
Fernando Pessoa

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.



NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ – II
Fernando Pessoa

Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido.
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue atual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.



NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ – III
Fernando Pessoa

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta? 
..........................................

Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala. 



BARROW-ON-FURNESS – IV
Fernando Pessoa

Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...

A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...

Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...
 
*

Mário de Sá Carneiro
(1890, Lisboa, Portugal-1916, Paris/França)

SALOMÉ

Insônia rôxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se p’ra mim num espasmo de segredo...

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio... Alabastro!... A minha Alma parou...
E o seu corpo resvala a projetar estátuas...

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:

Mordoura-se a chorar — há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo...



CERTA VOZ NA NOITE RUIVAMENTE
Mário de Sá Carneiro

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
Em sons cor de amaranto, às noites de incerteza,
Que eu lembro não sei de Onde — a voz duma Princesa
Bailando meia nua entre clarões de Espada.

Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
E bêbada de Si, arfante de Beleza,
Acera os seios nus, descobre o sexo… Reza
O espasmo que a estrebucha em Alma copulada…

Entanto nunca a vi mesmo em visão. Somente
A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
Não lhe desejo a carne – a carne inexistente…

É só de voz-em-cio a bailadeira astral ─
E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz-total,
É que eu sonho esvair-me em vícios de marfim.



PIED-DE-NEZ
Mário de Sá Carneiro

Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado —
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas...

O Erro sempre a rir-me em destrambelho —
Falso mistério, mas que não se abrange...
De antigo armário que agoirento range,
Minha alma atual o esverdinhado espelho...

Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido —
E, entretanto, foram de violetas,

Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim — bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carrossel partido...



ÚLTIMO SONETO
Mário de Sá Carneiro

Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
— Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço —
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

*

Manuel Bandeira
(1886, Recife, Pernambuco-1968, Rio de Janeiro, RJ)

À BEIRA D’ÁGUA

D’água o fluido lençol, onde em áscuas cintila
O sol, que no cristal argênteo se refrata,
Crepitando na pedra, a cuja borda oscila,
Cai, gemendo e cantando, ao fundo da cascata.

Parece a grave queixa, atroando em torno a mata,
Contar não sei que mágoa inconsolada, e a ouvi-la
A alma se nos escapa e vai perder-se abstrata
Na avassalante paz da solidão tranqüila…

Às vezes, a tremer na fraga faiscante,
Passa uma folha verde, e sobre a veia ondeante
Abandona-se toda, ansiosa pelo mar…

E vendo-a mergulhar na espuma que a sacode,
Não sei que íntimo e vago anseio ali me acode
De cair como a folha e deixar-me levar…



VERDES MARES
Manuel Bandeira

Clama uma voz amiga: – “Aí tem o Ceará.”
E eu, que nas ondas punha a vista deslumbrada,
Olho a cidade. Ao sol chispa a areia doirada.
A bordo a faina avulta e toda a gente já

Desce. Uma moça ri, quebrando o panamá.
“- Perdi a mala!” um diz de cara acabrunhada
Sobre as águas, arfando, uma breve jangada
Passa. Tão frágil! Deus a leve, onde ela vá.

Esmalta ao fundo a costa a verdura de um parque.
E enquanto a grita aumenta em berros e assobios
Rudes, na confusão brutal do desembarque:

Fitando a vastidão magnífica do mar,
Que ressalta e reluz: – “Verdes mares bravios…”
Cita um sujeito que jamais leu Alencar.



O SÚCUBO
Manuel Bandeira

Quando em silêncio a casa adormecia e vinha
Ao meu quarto a aromada emanação dos matos,
Deslizáveis astuta, amorosa e daninha,
Propinando na treva o absinto dos contatos.

Como se enlaça ao tronco a ondulação da vinha,
Um por um despojando os fictícios recatos,
Estreitáveis-me cauta e essa pupila tinha
Fosforescências como a pupila dos gatos.

Tudo em vós flamejava em instintiva fúria.
A garganta cruel arfava com luxúria.
O ventre era um covil de serpentes em cio...

Sem paixão, sem pudor, sem escrúpulos, — éreis
Tão bela! e as vossas mãos, fontes de calafrio,
Abrasavam no ardor das volúpias estéreis...



SONETO INGLÊS No. 2
Manuel Bandeira

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então
   Morrer sem uma lágrima, que a vida
    Não vale a pena e a dor de ser vivida.


VITA NUOVA
Manuel Bandeira

De onde me veio esse tremor de ninho
A alvorecer na morta madrugada?
Era todo o meu ser... Não era nada,
Senão na pele a sombra de um carinho.

Ah, bem velho carinho! Um desalinho
De dedos tontos no painel da escada...
Batia a minha cor multiplicada,
— Era o sangue de Deus mudado em vinho!

Bandeiras tatalavam no alto mastro
Do meu desejo. No fervor da espera
Clareou a distância o súbito alabastro.

E na memória em nova primavera,
Revivesceu, candente como um astro,
A flor do sonho, o sonho da quimera.



PEREGRINAÇÃO
Manuel Bandeira

Quando olhada de face, era um abril.
Quando olhada de lado, era um agosto.
Duas mulheres numa: tinha o rosto
Gordo de frente, magro de perfil.

Fazia as sobrancelhas como um til;
A boca, como um o (quase). Isto posto,
Não vou dizer o quanto a amei. Nem gosto
De me lembrar, que são tristezas mil.

Eis senão quando um dia... Mas, caluda!
Não me vai bem fazer uma canção
Desesperada, como fez Neruda.

Amor total e falho... Puro e impuro...
Amor de velho adolescente... E tão
Sabendo a cinza e a pêssego maduro...


*

QUARENTA ANOS
Mário de Andrade
(1893-1945, São Paulo/SP)

A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

*

SONETO
Menotti Del Picchia
(1892-1988, São Paulo/SP)

Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...


*

ALEGORIA DO CREPÚSCULO
Athos Damasceno Ferreira
(1902-1975, Porto Alegre, Rio Grande do Sul)

Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
perlustrando, em silêncio, as aléias de sombra,
e deixando, ao cair de um vago fim de dia,
o apressado rumor de leves pés na alfombra?...

Quem andará, dentro da tarde, triste e erma,
dentro da tarde, de olhos raros e distantes,
enchendo o Parque de volúpia morna e enferma
de dedos longos e de lábios balbuciantes?...

Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
quase roçando o espelho azul do lago raso?...
Quem andará dentro da tarde triste e fria?...

Quem andará perto do céu, nesta hora sombria,
desfolhando do azul, sobre as cinzas do ocaso,
grinaldas cor de luar, dentro da tarde fria?...


*

A CHUVA CHOVE...
Cecilia Meireles
(1901-1964 - Rio de Janeiro/RJ)

A chuva chove mansamente... como um sono
Que tranquilize, pacifique, resserene...
A chuva chove mansamente... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine...

E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono.
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono.

... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de imensos corredores espectrais,

Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
Enquanto o vento, crepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais...



*


Cassiano Ricardo
(1895, São José dos Campos, São Paulo/SP-1974, Rio de Janeiro/RJ)

IARA, A MULHER VERDE

Neste país de coisas em excesso
o sol me agride, o azul passa da conta.
No entanto, os poucos beijos que te peço
o teu amor futuro me desconta.

De tanto céu tenho a cabeça tonta.
O meu jornal é todo em verde impresso.
Só tu, a quem já um pássaro amedronta,
te fechas no mais íntimo recesso...

No país do excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida a manhã louca!

Por que seres assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem branca - e com que graça –
só falta vir pousar em nosso ombro?



MARCHA FÚNEBRE
Cassiano Ricardo

Quando às vezes escuto a música sombria
que ao ouvido me vem, qual “requiescat in pace”,
sinto a mágoa cruel de quem acreditasse
ser um pouco do que morreu, ao fim do dia.

A saudade, a amargura, a dúvida, a agonia
irrompem dentro em mim, num brusco desenlace,
e entre a dor que me fere e o som que me extasia
uma idéia, em meu ser contraditório, nasce.

A idéia de ser eu aquele por quem arde
a estrela que surgiu como um círio, na tarde.
Haverá quem nesta hora as coisas não confunda?

E vindo não sei de onde, e caminhando a esmo,
sob a minha visão extática e profunda
lá vou eu conduzindo o enterro de mim mesmo.



EVA MATUTINA
Cassiano Ricardo

No Paraíso — mundo sem dialética —
o amor é uma palavra ainda vã.
Ninguém percebe o que há de mulher nua
na que seria nossa triste irmã.

Por eu não existir, passeia implume
(orvalho ainda os olhos de avelã)
a que trazia, na manhã da carne,
como uma rosa, a invenção do amanhã.

Corpo cheio de lágrimas futuras,
em que o vermelho símbolo da maçã
não irrompeu ainda. Eva gorjeia.

Eva é o primeiro pássaro da manhã.
Pela graça de estar e não de ser.
Olhos ainda azuis de olhar sem ver.


*

Carlos Drummond de Andrade
(1902-Itabira, Minas Gerais-1987, Rio de Janeiro/RJ)

SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA

Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.



REMISSÃO
Carlos Drummond de Andrade

Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?



A INGAIA CIÊNCIA
Carlos Drummond de Andrade

A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.



SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA
Carlos Drummond de Andrade

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

posso dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.



OFICINA IRRITADA
Carlos Drummond de Andrade

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.



RETORNO
Carlos Drummond de Andrade

Meu ser em mim palpita como fora
do chumbo da atmosfera constritora.
Meu ser palpita em mim tal qual se fora
a mesma hora de abril, tornada agora.

Que face antiga já se não descora
lendo a efígie do corvo na da aurora?
Que aura mansa e feliz dança e redoura
meu existir, de morte imorredoura?

Sou eu nos meus vinte anos de lavoura
de sucos agressivos, que elabora
uma alquimia severa, a cada hora.

Sou eu ardendo em mim, sou eu embora
não me conheça mais na minha flora
que, fauna, me devora quanto é pura.



CONCLUSÃO
Carlos Drummond de Andrade

Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?


*


IMORTALIDADE
José Régio
(1901-1969 - Vila do Conde, Portugal)

Já no lugar dos olhos, que eram belos,
tenho um buraco atônito e apagado;
Já rosas de gangrena me hão tocado
comendo-me as raízes dos cabelos;

Já os dentes me caíram, amarelos;
Já o meu nariz é osso cariado;
Já o meu sexo é um trapo amarfanhado;
Já o meu ventre são bichos aos novelos;

Já as minhas carnes moles despegaram;
Já a língua inútil se me apodreceu;
Já a terra se fendeu por me aceitar;

Já milhões de pés vivos me pisaram;
Filho de pó, já o próprio pó sou eu...
Mas, ao terceiro dia, hei-de acordar!


*

Vinicius de Moraes
(1913-1980 - Rio de Janeiro/RJ) 

SONETO DE INTIMIDADE

Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.



SONETO A KATHERINE MANSFIELD
Vinicius de Moraes

O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro — e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima!... (Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.



SONETO DE FIDELIDADE
Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.



SONETO DE MEDITAÇÃO – III
Vinicius de Moraes

O efêmero. Ora, um pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.

E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.

O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo

Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós...
Porém o vale há de escutar a voz. 



SONETO DE MEDITAÇÃO - IV
Vinicius de Moraes

Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.



SONETO DE SEPARAÇÃO
Vinicius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.



POÉTICA
  Vinicius de Moraes
  
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço
— Meu tempo é quando.

*

Jorge de Lima
(1893, União dos Palmares, Alagoas-1953, Rio de Janeiro)

INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO PRIMEIRO - XV

A garupa da vaca era palustre e bela,
uma penugem havia em seu queixo formoso;
e na fronte lunada onde ardia uma estrela
pairava um pensamento em constante repouso.

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela
que do fundo do sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à noite à outra imagem daquela
que ama me amamentou e jaz no último pouso.

Escuto-lhe o mugido — era meu acalanto,
e seu olhar tão doce inda sinto no meu:
o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:
semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu
o leite e a suavidade a manar de dois seios.


*

INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO SEGUNDO
- XVII
Jorge de Lima

Hoje há uma mulher nesse sol-posto,
ora não, ora meiga, ora alvadia.
Ontem revendo-a, muda-se o meu rosto
assustado em cegueira, que não via.

Certa vez a revi em findo agosto:
não era o mesmo canto que eu ouvia;
o seu pranto expirava um outro gosto,
retinia o seu bronze outra alegria.

Tendo vindo do céu chuvas antigas,
essa ofélia dos ares semeou-se:
houve joio e houve trigo sobre o humo.

E a semente do joio nasceu triga,
e uma parte do trigo transformou-se
em sombra ou coisa menos do que fumo.



INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO TERCEIRO
- XXVII
Jorge de Lima


Contemplar o jardim além do odor
e a mulher silenciosa entre semblantes,
e refazê-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraiçoe.

Porque eu quero, em memória refazê-los:
flor longínqua, mulher não pertencida,
substância inexistente, móvel vida,
intercessão de nadas e cabelos.

E meus olhos ausentes me espiando
entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercessão em outras faces.

Orfeu, para conhecer teu espetáculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro oráculo?



INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO QUARTO
- IV

Jorge de Lima

Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.



INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO QUARTO
- XIV  E  XV
Jorge de Lima

Nasce do suor da febre uma alimária
que a horas certas volta pressurosa.
Crio no jarro sempre alguma rosa.
A besta rói a flor imaginária.

Depois descreve em tomo ao leito uma área
de picadeiro em que galopa. Encare-a
o meu espanto, vem a besta irosa
e desbasta-me o juízo em sua grosa.

Depois repousa as patas em meu peito
e me oprime com fé obsidional.
Tomo-me exangue e mártir no meu leito,

repito-lhe o que sou, que sou mortal.
E ela me diz que invento esse delírio;
e planta-se no jarro e nasce em lírio.



INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO QUINTO
- VIII
Jorge de Lima

A espepe e a noite se deitaram juntas,
paralelas as asas sobre as asas,
ambas como as solidões, ambas defuntas,
e entre elas, sós, ardentes como brasas,

espreitando à direita e à esquerda o estrito
espaço ínfimo que entre as duas corre,
correm cruciados como o imenso grito,
imenso grito mudo de quem morre,

os olhos renegados de quem está
esperando, esperando. Que esperando?
Entre a estepe e a noite olham olhos, rente

às trevas opressoras, olhos que a
estepe e a noite juntas se estreitando
apagam misericordiosamente.



INVENÇÃO DE ORFEU – CANTO DÉCIMO
- X
Jorge de Lima

Não a vaga palavra, corrutela
vã, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, além, sobre a ramada;

mas, a que é a própria flor arrebatada
pela fúria dos ventos: mas aquela
cujo pólen procura a chama iriada
— flor de fogo a queimar-se como vela:

mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a flor das flores mais ardida,
esta veio do início para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim.


*

SONETO
Lêdo Ivo
(1924-Maceió, Alagoas-2012, Sevilha, Espanha)

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.


*

DO AZUL, NUM SONETO
Alphonsus de Guimaraens Filho
(1918-Mariana, Minas Gerais-2008, Rio de Janeiro)

Verificar o azul nem sempre é puro.
Melhor será revê-lo entre as ramadas
e os altos frutos de um pomar escuro
— azul de tênues bocas desoladas.

Melhor será sonhá-lo em madrugadas,
fresco, inconstante azul sempre imaturo,
azul de claridades sufocadas
latejando nas pedras — nascituro.

Não este azul mas outro e dolorido,
evanescente azul que na orvalhada
ficou, pétala ingênua, torturada.

Recupero-o sem ter, e ei-lo perdido,
azul de voz, de sombra envenenada,
que em nós se esvai sem nunca ter vivido.


*

TEMPO-ETERNIDADE
Paulo Mendes Campos
(1922, Belo Horizonte, Minas Gerais-1991, Rio de Janeiro)

O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As infinitas nuvens do presente.

Pobre do tempo, fico transparente
À luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta ao céu azul de solidões.

Sem margens sem destino sem história,
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh’alma sem razões.

*

SONETOS DE OLINDA – 1
Afonso Félix de Souza
(1925, Jaraguá, Goiás-2002, Rio de Janeiro)

Quando na praia imersa em luz termina
a inquietação de mares prisioneiros,
com três rosas na mão subo a colina
e tenho brisa e amor por companheiros.

Tesouros que arranquei da terna mina
da beleza - que os possa dar inteiros
a quem borda um jardim que me destina,
e espera-me, infinita, entre coqueiros.

Igrejas, casarões... onde lembranças
de era flamenga voejam pedregosas
e tombam num tombar de paina, mansas.

Batem de novo à praia ondas raivosas,
mas dou por mim numa ilha de bonanças
e neste oásis plantam-se as três rosas.

*


A PRAÇA DESTERRADA
Thiago de Mello
(1926, Barreirinha, Amazonas-   )

Em abril certa vez estive perto
da esperança de povo erguido em canto.
Antes nunca jamais meu peito certo
esteve de alegria. Mas o pranto

foi que desceu lavrando no deserto
da praça desterrada. O meu espanto
não foi de ver o coração coberto
pelo medo feroz, de turvo manto.

Mas de ver que ninguém amar sabia,
como quem ama a rosa namorada,
a praça de repente degradada.

Ver que ninguém na rua uma canção
cantou de amor chamando à rebeldia
para o trabalho amargo da alegria.


*

SONETO DE BODAS
Haroldo de Campos
 (1929-2003 - São Paulo/SP)

Luar de copas e marfins renhidos
Tua nudez a riste contra o mar.
Violetas roucas sobre os teus soluços.
E rosas tênues e papoulas de ar.

Um novo deus conjura os vaticínios,
E eu sorvo o mês, em taças, contra o mar,
Tua nudez orçada em meus espelhos,
E rosas tênues e papoulas de ar.

Quem te ensinara o diapasão das noivas
Embevecido em lírios de ninar?
Ó Bem-Amada quem te apascentara

Nos mansos trigos desse apascentar?
Plumas de outono para as tuas bodas
Que desfloreces nos porões do mar.

*

Guilherme Figueiredo
 (1915- Campinas/SP-1997, Rio de Janeiro)

OS NUNCAS. ESSES NUNCAS
QUE SÃO NADA

Os nuncas. Esses nuncas que são nada,
Nadas de vida, nadas de alegria,
São nuncas a bradar a boca fria
Do tempo nunca em sempre disparada.

Nunca o teu beijo. Nunca será dada
A glória do teu ventre. Nunca o dia
De uma só noite nunca terminada
De amar-te como nunca. Dor vazia

Do passado, meu nunca. E do presente
O sempre nunca me apunhala; e à frente
Um futuro de nuncas que se junca;

E do clamor de sempre, nunca eterno,
Primavera, verão, outono, inverno,
Tu, sempre minha, tu, que és minha nunca!



POSTO QUE EM VÃO TE ESPERO
E DESESPERO
Guilherme Figueiredo

Posto que em vão te espero e desespero,
Não te arreceies de negar teu rosto:
Tratarei de viver neste meu posto
Onde morro do amor em que me esmero.

Bem que bem me faria sobreposto
Abrigo a me abrigar do clima fero
Feito de tua ausência, do desgosto
Do desespero com que em vão te espero.

Em vão o vão da noite se desdobra,
Fresta de corda que me acorda e dobra
Surdo sino sem som só sempre sina

De não te haver, silêncio que não ouve
Meu silêncio de sonho que bem houve
Assassinar-me assim, minha assassina.



DE PÉRIPLOS HAVIDOS, CÉUS E MARES
Guilherme Figueiredo

De périplos havidos, céus e mares
Prenhes de gaivotas e de luas,
Monótonas auroras tumulares,
Repetidos fantasmas de faluas,

Que restou? Os esquálidos manjares
Nas bandejas de bordo, as barbas caras
Manicuras cantadas pelos bares,
Velhas inglesas, vômito às tubaras,

Contrabando escondido em roupa suja,
Cartões-postais lambidos de lambuja,
O espanto do rafeiro de vaginas

Que infecta catedrais, arrota rumbas,
Ri de Picasso, mija em catacumbas
E esculpe didascálias nas latrinas.
  
*

Ferreira Gullar
(1930, São Luís, Maranhão-2016, Rio de Janeiro/RJ)

POEMA PORTUGUÊS 6

Calco sob os pés sórdidos o mito
que os céus segura — e sobre um caos me assento.
Piso a manhã caída no cimento
como flor violentada. Anjo maldito,

(pretendi devassar o nascimento
da terrível magia) agora hesito,
e queimo — e tudo é o desmoronamento
do mistério que sofro e necessito.

Hesito, é certo, mas aguardo o assombro
com que verei descer de céus remotos
o raio que me fenderá no ombro.

Vinda a paz, rosaapós dos terremotos,
eu mesmo ajuntarei a estrela ou a pedra
que de mim reste sob os meus escombros.



POEMA PORTUGUÊS 7
Ferreira Gullar

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta um longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio e silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa o rio sem foz e sem começo.

*

SONETO XVI
Edmir Domingues da Silva
(1921, Recife, Pernambuco-2001)

E estando nós vestidos de amarelo
veio o cais certo dia ao mar fendido,
vago e leve, de aspecto indefinido
tão quase nós de tímido e singelo.

E ao céu de desembarque e de atropelo
em sangue e quase pássaro ferido,
uma canção havíamos pedido,
um som qualquer, de flauta ou violoncelo.

Nós gostamos de música e de dança,
vivemos de canções e de esperança
se não dormidos de ópio e de morfina.

E era de vez, os bonzos de mãos dadas
com os limpa-chaminés, em mascaradas,
nos ângulos sem luz de um cais da China.


*

Carlos Pena Filho
(1929-1960, Recife, Pernambuco)

PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância , e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.



A SOLIDÃO E SUA PORTA
Carlos Pena Filho

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.



SONETO DO DESMANTELO AZUL
Carlos Pena Filho

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


*

Mário Faustino
(1930-Teresina, Piauí-1962, Lima, Peru)

ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA

Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava.
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.



NAM SIBYLLAM...
Mário Faustino

Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloqüentes de um passado
Ou de um futuro argüido pelos anos;
Lá cândidos leões alvijubados
Às brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço me enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios —
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.



RESSUSCITADO PELO EMBATE
DA RESSACA
Mário Faustino

Ressuscitado pelo embate da ressaca,
Eu, vos multiplicada, ergo-me e avanço até
O promontório onde um cadáver, posto em maca,
Hecatombado pela vaga, acusa o céu
Com cem olhos abertos. Fujo e, mais adiante,
O açor rebenta o azul e a pomba espedaçada,
Ensangüenta-me o rastro, Avante, sombra, avante,
Cassa-me a permissão de ficar vivo. O nada
Ladra a meu lado, lambe e morde o calcanhar
Sem asas de quem passa e no espaço se arrasta
Pedindo paz ao fim, que o princípio não basta:
A vitória pertence ao tempo que no ar
Agita um homem só, troféu tripudiado
Pela noite que abate o sol no mar manchado.



SONETO
Mário Faustino

Bronze e brasa na treva: diamantes
pingam
(vibram)
lapidam-se
(laceram)
luz sólida sol rijo ressonantes
nas arestas acesas: não vos deram,
calhaus
                                        (calhaus arfantes),
                                                                         outro leito
corrente onde roçar-vos e suaves
vossas faces tornardes vosso peito
conformar
                              (como sino)
                                                                   como de aves
em brado rebentando em cachoeira
dois amantes precípites brilhando:
tições em selvoscura: salto!
                                               beira
de sudário ensopado abismo armando
amo r
amo r
  amo r a
   mo  r te
             r amo

de ouro fruta amargosa bala!
                                                      e gamo.



SONETO
Alberto da Costa e Silva
(1931, São Paulo/SP-   )

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro.

E a substância mais tímida do sonho
nas mãos do artesão fez de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

*

OUTRA COISA
Mário Cesariny de Vasconcelos
(1923-2006 - Lisboa, Portugal)

Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa.
Exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo Mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

Lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro ato

Pôr-te na posição sexual
Tirar-te todo o bem e todo o mal
Esquecer-me de ti como o gato

*

Jorge de Sena
(1919, Lisboa, Portugal – 1978, Califórnia, EUA

PANDEMOS
(SONETO 1 A AFRODITE ANADIÓMENA)

Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrrica donstália penicela,
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão bolíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
lingâmicos dolins, refucarai!
Por mamivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.



ANÓSIA
(SONETO 2 A AFRODITE ANADIÓMENA))
Jorge de Sena

Que marinais sob tão pora luva
de esbranforida pela retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai que estaminera cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinaisdulcifima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!...
Que marinais, tão pora luva, todo...



URÂNIA
(SONETO 3 A AFRODITE ANADIÓMENA)
Jorge de Sena

Purília emancivalva emergidanto,
imarculado e rósea, alviridente,
na azúrea juventil conquinomente
transcurva de aste o fido corpo tanto…

Tenras nadáguas que oculvivam quanto
palidiscuro, retradito e olente
é mínimo desfincta, repente,
rasga e sedente ao duro latipranto.

Adónica se esvolve na ambolia
de terso antena avante palpinado.
Fímbril, filível, viridorna, gia

em túlida mancia, vaivinado.
Transcorre uníflo e suspentreme o dia
noturno ao lia e luçardente ao cado.



AMÁTIA
(SONETO 4 A AFRODITE ANADIÓMENA)
Jorge de Sena

Timbórica, morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scotia, masturlídia,
amata cíprea, calipígia, tressa

de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.

Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
de lívia damitada, organissanta,

agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abrandimembra a teia canta.



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