José Chagas

Piancó, PB (1924)
São Luiz, MA (2014)
(poeta maranhense de coração)


SONETO DA MANHÃ PRIMEIRA
José Chagas

Quero a manhã exata, a manhã viva,
pois estas luzes e estes vôos na aurora,
são só ensaios de manhãs. E agora,
o que eu quero é a manhã definitiva,

a autêntica manhã pura, exclusiva,
manhã nascida de si mesma e fora
desta jubilação falsa e sonora
que só por um momento nos cativa.

Ah, a manhã da última promessa,
manhã de um novo mundo que começa,
mais acessível, mais humano e bom.

Meu Deus, seria como se chegasse
a manhã do primeiro sol que nasce,
a cor primeira e do primeiro som.



O APITO DO PASSADO
José Chagas

O Mearim derrama na distância
uma água que em sonho nos invade,
como fio invisível que se lance a
separar em duas a cidade.

E essa água vem banhar sem que se canse a
vida inteira que no rio nade,
porquanto água de amor que lava infância
lava também velhice e mocidade.

Mearim — rio velho e rio novo,
alegria e aflição de um mesmo povo —
um mar se afoga nos mistérios teus.

Mas preservas em ti, para Pedreiras,
vibrando no ar, o apito das primeiras
lanchas que nos deixaram seu adeus.



OS HOMENS RASOS
José Chagas

Os homens é que estão traindo a vida,
traindo as águas que não voltam mais
à sua velha paz, hoje perdida
na própria refração dos seus cristais.

Do equilíbrio do mundo se duvida
com as ambições pesando desiguais
sobre uma ecologia ressentida,
dentro dos seus telúricos sinais.

Agora são mais rasas as vertentes,
rasos os homens e as ações urgentes
com que buscam mover águas e terras.

E tu, velho, ó velho rio, entre homens ficas,
vendo-os enodoar-te as águas ricas
e as cortinas de sonhos que descerras.
  


DUALISMO
José Chagas

Eu, que nunca termino o que começo,
vou, sem ter começado, ver meu fim,
e já me preparei para o regresso
de uma viagem que não fiz em mim.

Vivo um contraste humanamente expresso,
pois me fiz dois: um bom e outro ruim.
Sendo irmão de mim mesmo, a mim confesso
que, se nasci Abel, cresci Caim.

De antigas eras trago esse conflito,
e ora amaldiçoado, ora bendito,
não encontro equilíbrio em meu redor.

Mas, se não tendo início é que me acabo,
lanço tudo o que sou a Deus e ao Diabo,
e eles que façam como achar melhor.



OLHOS AZUIS
José Chagas

Os teus olhos azuis não eram mais
do que os olhos azuis de uma mulher.
No entanto, eu nunca vi olhos iguais,
nem esse azul era um azul qualquer.

Não sei se, sendo azuis, eram fatais
como os abismos, e nem sei sequer
como os teus olhos, sendo dois cristais,
podiam ser dois olhos de mulher.

Só sei que esses teus olhos são ainda
uma lembrança azul que não se finda,
como a distância em forma de um adeus.

E o mais que eu sei é não lembrar-me agora
de quantas vezes me perdi na aurora
desse infinito azul dos olhos teus.



(ALCÂNTARA)
José Chagas

A noite sobre Alcântara é mais densa
que qualquer noite de qualquer cidade
e as horas passam sem pedir licença
para o que nos encante ou desagrade

O tempo em seu eterno se condensa
e a escuridão não sabe o quanto dá de
seu mistério para a recompensa
de uma idade parada noutra idade

É que a noite de Alcântara incorpora
o que ficou de uma apagada aurora
cujo sol não se acende nunca mais

E Alcântara de noite sonha medo
o medo que ela tem de acordar cedo
todos os seus fantasmas ancestrais

               
(De Alcântara - Negociação do Azul, 1994)

 
SONETO XLII
José Chagas

Se uma flor desabrocha, uma esperança
cresce no coração da natureza,
e tudo em torno dela vibra e dança
numa febril coloração acesa,

e a brisa da manhã sopra mais mansa
como pondo carícia na beleza
para a flor nos dizer que a vida avança
e que a terra não pode ficar presa,

pois tudo é doação, nada é herança,
e há de crescer no campo uma certeza
que a mão que agora o fruto não alcança

vai um dia afinal se abrir, surpresa,
para a colheita pura, na bonança
que a todos servirá, numa só mesa.




SONETO LXV
José Chagas

O sopro que animou o barro, quente
ainda das próprias mãos do Criador,
é o mesmo que, no campo, a terra sente,
dando energia a tudo quanto for

matéria posta em sonho de semente,
que a semente, no chão, sonha com flor,
e a flor é a realidade transcendente
do mistério da luz que vem expor

o dia e revelar magicamente
como o estrume se faz aroma e cor,
e é a própria terra sugerindo à gente

com seu alto poder transformador
que o barro que nos fez também se esquente
ao sol das almas e floresça amor.



SONETO XVII
José Chagas

Deus não tem nada com o que ali se passa,
pois tudo deu, até demais talvez,
e deu água, deu som, deu luz de graça,
deu o tempo total de cada mês

e deu o chão para que a planta nasça
e nunca em tempo algum haja escassez,
deu a destreza com que o homem laça
pela manhã, no campo, a sua rês,

deu a esperança que o destino traça
de a cada um ser dada a sua vez,
mas o homem produz sua desgraça

e, arrogante na sua pequenez,
explora a sua natureza escassa
até criar o mal que Deus não fez.



SONETO LXIV
José Chagas

Matéria de silêncio essa que, exposta
na largura do chão, nada nos diz
porque nada dizer é que é a resposta
de tudo o que no chão se faz raiz,

e a terra move a paz de que ela gosta
para expressar-se em florações sutis
no silêncio subindo pela encosta
das montanhas que do alto o sol bendiz,

vendo que a própria natureza aposta
como a luz sobre o campo é mais feliz
e como até o boi com sua bosta

levanta sugestões primaveris,
enquanto o homem só deixa ali, proposta,
uma equação perdida de seu xis.



SONETO LXXXVII
José Chagas

E eu traí a mim mesmo e aos companheiros,
pois passei a lavrar noutro terreno,
latifúndio verbal de mil posseiros,
e sendo sempre um lavrador pequeno,

que, embora plante sonhos verdadeiros,
nunca faço o plantio ficar pleno
de frutos, como o de outros fazendeiros,
e às vezes me deparo com o veneno

de serpentes em botes traiçoeiros,
ou jogam-me águas sujas, mas eu dreno
o chão onde cultivo os meus canteiros

com carinhos de sol e de sereno
e, esmagando os insetos mais rasteiros,
é para o céu que eu olho e que eu aceno.



A LIBERTAÇÃO ÍNTIMA
José Chagas

Por que teve o destino de fechar-me,
Por tanto tempo, num sobrado antigo
Como se num espanto sem alarme
A solidão me fosse um doce abrigo,

E onde eu estivesse então de confessar-me,
Com o quanto o coração tinha consigo,
E o mirante a atrair-me com seu charme
A me envolver em seu silêncio amigo,

Mostrando que o melhor fora calar-me
A fazer de mim mesmo o meu jazigo?
Mas eis que agora, livre com meu carme,

De tão longo silêncio me desligo,
E pede o coração que eu me desarme
De tudo o que afinal guardei comigo.



A ILHA PESSOAL
José Chagas

Guardei em mim uma cidade inteira
E me fiz ilha, numa geografia
Que situa essa ilha onde bem queira
Ou a esconde de todos e a vigia,

Para assim evitar mão estrangeira
Venha ferir sua soberania.
Nesse mar o destino segue a esteira
do sonho e o próprio sonho é que alumia

a trilha onde a poesia mensageira
Nem mesmo em seu naufrágio morreria,
E bem maior que o mar segue altaneira,

Cercada de maré, cheia ou vazia.
E quanto sabiá, quanta palmeira,
Na paisagem que a envolve e que a recria! 



LAVOURA AZUL
José Chagas

Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.

Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.

Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.

Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.

                  (De Lavoura Azul, 1974)




O homem, na cirurgia,
a trocar peça por peça,
sucata que se avalia
pelo nada que se meça,

pensa que então se recria,
a acreditar na promessa
ou na pura fantasia
de que por si recomeça.

Mas na verdade ele tem
de esperar que morra alguém
que outorgue a peça exigida.

Pois são os mortos que outorgam
o favor de um novo órgão
como empréstimo de vida.
  
José Chagas
(De Antropoema, 1988)


  



Do livro “Colégio do Vento”, de 1974,
“livro composto de um poema em 40 estrofes que, por extensão, são 40 sonetos.”



SONETO 1
José Chagas

Dos meus pés não contraio senão rumos
que me farão chegar aonde me aço,
cercado de canteiros e de húmus,
e onde me acorda às vezes o riacho
de minha infância, os milharais, os sumos
de frutos que caíam como em cacho,
quando as aves pousavam nos resumos
das manhãs claras, e um silêncio macho
buscava a sua fêmea sobre os fumos
de horizontes que ardiam como facho,
e homens erguiam muros com seus prumos,
seus tijolos, seu sangue, num despacho
de vontades abertas aos consumos
dos dias que os marcavam de alto abaixo.



SONETO 3
José Chagas

O campo era um continuar de vida
a se estender pelo horizonte a fora,
e a paisagem se dava repetida,
tanto em seu pôr do sol, como na aurora,
com a luz sendo uma cálida bebida
a embriagar a vastidão sonora,
onde as aves em voo na paz erguida
cobriam de asas o seu ir embora,
e o azul era uma longa despedida
do tempo a consumir-se todo em hora,
para, fugindo assim, dar a medida
de tudo o que era pressa na demora,
e o quanto fosse solidão já ida
não mais voltasse como volta agora.



SONETO 4
José Chagas

Havia a paciência de esperar,
mesmo quando a esperança se perdia,
pois cada sonho recolhido no ar
dava sustento a nova fantasia,
e fácil nesse sonho era chegar
além de para onde não se ia,
que nunca ninguém muda de lugar,
quando o próprio caminho é a moradia,
e o ir já é, no fundo, regressar
de onde nem mesmo em sonho se estaria,
e se sabe, por fim, que o ser e o estar
são uma coisa só, cheia ou vazia
da esperança que sempre há de sobrar
para encher de esperança um outro dia.



SONETO 8
José Chagas

Meu pai sabia a vida, e o seu ensino
era o de quem não diz e apenas faz,
dando-me o testemunho nordestino
de homem comum que não corria atrás
de ilusões gastas pelo desatino,
pois bem sabia o que era ser capaz,
e orvalhado no sonho matutino,
laborava o seu dia e era sagaz
ao me testemunhar do ser menino
até o quanto em mim se fez rapaz,
quando meti as mãos pelo destino,
sem me importar com o que o destino traz,
e hoje o que peço aos céus, quando o imagino,
é que eu não seja um peso em sua paz.



SONETO 12
José Chagas

Minha mãe não sabia que seu filho
iria ser só isso que hoje é,
nem sabe agora que por onde trilho
piso mais chão de mágoas que de fé,
e esse pó de incertezas que palmilho
obriga-me a voltar na vida até
onde, fechado em solidão, me humilho,
a acompanhar um sonho em marcha à ré,
lembrando o tempo em que eu plantava milho,
a abrir o chão da vida com o meu pé,
e mamãe repetindo em estribilho,
toda manhã, na hora do café,
meu nome tão de santo, mas sem brilho,
hoje muito mais chagas que José.



SONETO 13
José Chagas

Muito cedo plantei o arroz real,
e o arroz do sonho era o que mais crescia;
também ao capinar o milharal,
mais me ocupava em minha fantasia,
pois da lavra não vinha por igual
o que eu da terra e da ilusão colhia,
e a esperança do verde era um sinal
a murchar, no verão, como a alegria;
só o plantio da alma é que era tal
que quanto menos chuva mais floria,
e isso era bom, porquanto é natural
nem só de pão a boca ser vazia,
e se pouco era o pão e pouco o sal,
muito era o doce bom da poesia.



SONETO 23
José Chagas

O riacho secava e em sua areia
eu escrevia as letras do alfabeto,
como aluno do campo que semeia
sonhos em seu canteiro predileto,
e ilusões vinham todas em cadeia
para a escola do vento, que, inquieto,
sempre apagava a minha escrita feia,
pra que eu a refizesse com o afeto
de quem retoma o sonho e o delineia
até vê-lo na mão fluir correto,
como o riacho que hoje em minha veia
passa, a escrever-me a vida por completo,
e um vento de saudade quer que eu leia
mas vê que sou ainda analfabeto.



SONETO 24
José Chagas

Eu sabia do vento como quem
pensa que o vento é feito de segredo,
um segredo que vem e quando vem
não sabe nunca se vem tarde ou cedo,
como não sabe se faz mal ou bem,
por sempre haver quem dele tenha medo,
eu sabia da fúria que ele tem
ao se atirar em vão contra um rochedo,
mas sabia que o vento era também
uma suave dança no arvoredo,
e que nunca soprava à noite sem
dar ao seu leve sopro um toque ledo,
como a querer falar de amor a alguém
capaz de ouvi-lo e de guardar segredo.



SONETO 27
José Chagas

Todo sonho devia ser idôneo
toda ilusão devia ser fiel,
mas há pouco de Deus, mãos de demônio,
nesse movimentado carrossel
da existência puxado pelo errôneo
fio do vento em doido carretel,
e por mais que eu recuse ou abandone
o cerco do passado e o seu anel,
volto-me sempre ao meu viver campônio,
que era tão manso e agora vem cruel,
pois o que punge nesse patrimônio
de ventos é moer-me e chorar fel,
no velho engenho do padrinho Antônio,
que me adoçou a vida com o seu mel.



SONETO 28
José Chagas

Bem amargo é lembrar o mel da vida,
quando esse mel no tempo se desfaz,
tal como a paz que volta revivida,
sem que já mos pareça a mesma paz,
pois o amargo lembrar faz-se bebida
que envenena a memória, e são fatais
os letargos do sonho à dor sofrida
pelo que foi e que, a não ser jamais,
afunda-se no poço da ferida,
alimentando de ecos os seus ais,
lançados à lembrança proibida
no caminho que passa por detrás
da memória do mundo e nos convida
para destinos imemoriais.


SONETO 36
José Chagas

Meu pai voltou ao pó, mas escolheu
o pó da terra que ele mais queria,
voltou de longe para o chão que é seu,
e ali chegou como semente fria,
pois quem daquele chão tanto colheu,
no mesmo chão também se plantaria
para a safra do além, e apenas eu,
eu não vi o plantio desse dia,
sei só do pranto todo que choveu
sobre a cova recente que se abria
e do quanto ficou para um museu
de saudades, na aldeia em agonia,
mas nunca eu disse a mim que ele morreu
— meu coração não acreditaria.



SONETO 37
José Chagas

Pouco me importa se arranco ou não arranco
esta raiz de vida em que me amarro,
Sinto nos ossos o pecado branco
de haver cuspido no meu próprio barro.
Muito me batem, mas também espanco
sombras feitas dos sonhos que desgarro.
Sofro a vergonha imensa de ser franco
e me escondo da vida num cigarro.
Mas quando chega a hora em que destranco
a janela do sonho, de onde escarro
sobre a vida que passa pelo flanco
do mundo, a toda pressa, no seu carro,
fico sentado em mim como num banco
e o silêncio me escuta o que lhe narro.



SONETO 38
José Chagas

O silêncio era toda a minha herança,
tudo o que de minha alma foi repasto,
mas, cheio da ambição de quem avança
contra um tesouro que imagina vasto,
desperdicei essa riqueza mansa,
como quem desperdiça o melhor pasto,
e agora que esta lira já se cansa
de tanto profanar o que era casto,
assumo o claro verde da esperança,
campo da sedução em que me arrasto,
e caio para fora da lembrança,
como a esconder o meu cantar nefasto,
tanto o remorso contra mim se lança
pedindo contas do silêncio gasto.



SONETO 39
José Chagas

A lágrima não cabe no  meu olho,
e chorá-la é perder um tempo imenso,
pois não há pranto para a dor que escolho
como a  que mais me sangra no que penso,
e mágoa que arde no seu próprio molho
não se pode coar num simples lenço,
nem a saudade toda que recolho
guarda o sal desse choro que condenso,
porque o bloco de sal se faz abrolho
dentro do coração em mim suspenso,
e se o quando desejo e o quanto acolho
não amenizam meu pesar intenso,
fecho o portão dos sonhos a ferrolho
e me derroto no que eu mesmo venço.



SONETO 40
José Chagas

Circulam sombras lúgubres do campo,
pela minha memória represada,
como um poço de angústias que destampo
e onde se esconde o tudo do meu nada,
persiste ainda ali o pirilampo,
da minha infância pouco iluminada,
o corte dos meus sonhos no sarampo
da meninice em dor, na madrugada,
a solidão azul de um céu escampo
com uma estrela tremendo de assustada,
os andaimes da vida com o seu grampo
a me prender à cal da minha ossada,
e o próprio impulso com que agora tampo
meu poço de memória estagnada.




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