Maria João Brito de Sousa

Oeiras, Concelho (1952-
Portugal



UM SONETO PARA DEFENDER O SONETO
Maria João Brito de Sousa
(Em decassílabo heróico)

É deste estranho limbo em que medito
Que me nasce, em soneto, o pão do dia,
Sonoro, como o verbo que o recria,
Vibrátil, como a nota em que o credito,

Sem outra presunção, sem mais quesito
Que os de um canto banal de cotovia
Que invadisse uma vida antes vazia
Com a voracidade do seu grito

Pr`a convertê-la em clara sinfonia
Porquanto quase nada nela via
Senão folhagem verde, um céu bonito

E quanta absurda fome em si crescia
Da musicalidade, ou melodia
Que traduzisse a carne em força e fito...

(Maria João Brito de Sousa – 25.10.2014 – 22.37h)



VERSO A VERSO...
Maria João Brito de Sousa
(Soneto em decassílabo heróico)

Na tenaz destas coxas que te prendem
Conduzo-te, poema imaginário,
Por ondas e marés, doce corsário,
Ao cais onde estas vagas se me rendem...

Rotas hábeis que engendro e que te entendem,
Levar-te-ão, poema solitário,
Ao cais urgente, ao porto necessário
À nau que vara as ondas que a suspendem...

Afundo-te, poema, verso a verso,
Firmando o leme assim que tu, disperso,
Te desvias da rota e, já perdido,

Recusando, talvez, morrer submerso
Na doce embriaguês deste universo,
Te negas ao naufrágio prometido...



VESTIDO DE MENINA
Maria João Brito de Sousa

Da seda, branco linho, ou do tobralco
De um poema nascido de outro alguém,
Ficou-me imagem vaga, aqui, além,
De panos recoberta, como um palco
.
E chega-me um cheirinho a pó-de-talco,
À cânfora, que usava a minha mãe,
E à arca de pau-preto que ninguém
Sabe ir escondendo os sonhos que recalco...
.
Vão ficando, indeléveis, na memória
Palavras de cetim, ou de algodão
De mui branda textura feminina

Que despertam, de forma aleatória,
Ao toque da varinha-de-condão,
Lembranças de um vestido de menina...

(Maria João Brito de Sousa - 05.05.2008 - 12.58h)



TERCEIRO AUTO-RETRATO
Maria João Brito de Sousa

Meu porte de cantiga por cantar,
De ideia inacabada e já nascendo
Ainda uma outra ideia por esboçar
No poema que fui e que vou sendo,

Castelo de ilusões em tom lunar,
Satélite do mundo em que me centro;
Se todas as janelas dão pr`o mar,
As portas abrem, todas, para dentro...

Meus olhos, onde a pátina do tempo
Tornou mais negro o negro do carvão,
Sabem de cor a dor, o sofrimento,

Mas calam, bem calado, o seu talento
De verem muito mais que outros verão,
Se o olhar me vagueia, desatento.

(Maria João Brito de Sousa -18.02.2008 - 14.10h)



TUDO O QUE EU QUERIA...
Maria João Brito de Sousa

Ainda a minha fome era criança,
Ainda olhos perdidos nas lonjuras,
Ainda não na espera, que as procuras
Se sobrepunham sempre à própria esp`rança.

Inda a vida girava numa dança,
Inda o corpo pedia outras doçuras,
Inda as formas instáveis, inseguras,
Inda os cabelos presos numa trança,

Já as mãos, incansáveis, me guiavam,
Entreteciam estrofes, desenhavam,
Perdidas na missão que lhes cabia

E, à noite, já meus olhos se cansavam
Sobre as palavras que os desafiavam
Como se fossem tudo o que eu pedia...

(Maria João Brito de Sousa - 16.06.2008 -22.38h)



WHAT A WONDERFUL WORLD!
Maria João Brito de Sousa
 (Soneto em decassílabo heróico)

O mundo, Amor, será maravilhoso,
Mesmo depois de mim, quando no mar,
A minha velha Barca naufragar
Num Inverno qualquer, mais rigoroso,

Mas... se por um momento doloroso,
Eu deixasse, no Mundo, de apostar,
Não teria sabido ao Mundo amar,
Nem desta Vida obtido qualquer gozo...

Ah, Mundo-Vida, quanto me prendeste
Pois, de quanto tiraste, mais me deste
Desta riqueza a que nem vejo o fim

Quando, por dentro, a chama me acendeste
E, morra embora nesse dia agreste,
Maravilhada, vi-te aceso em mim...

(Maria João Brito de Sousa - 15.06.2016 - 14.22h)



AMAR É...
Maria João Brito de Sousa

Amar é estar em paz, acreditar...
É ser gato e mulher e planta em flor!
Mais do que ter amor é Ser-se amor
E nesse amor florir, frutificar...

É ter dentro de nós a terra, o mar,
É pintar um poema em cada cor,
É poder consolar quem sinta dor,
Semear um sorriso em quem chorar...

É saber aceitar, em vida, a morte,
Sem medo e sem a sombra da revolta
E, equilibrando os pratos do destino,

É vislumbrar, ao longe, um fio de sorte,
E agarrar, desse fio, a ponta solta
De tudo o que em nós há de mais divino...

(Maria João Brito de Sousa - 04.04.2008 - 11.53h)




A CEIA DO POETA
Maria João Brito de Sousa
(Soneto em decassílabo heróico)

O verso ardendo ao lume, a mesa posta,
a toalha das rimas bem estendida
e um prato de silêncios, sem lagosta,
aguardando, expectante, essa comida

Que o nutre, que o sustenta, de que gosta
e que está quase pronta a ser servida
pela mão do poeta, numa aposta
em resistir, fintando as leis da vida...

Apaga o lume e serve-se à vontade
de imagens, de palavras, de conceitos
expurgados da excessiva quantidade

Dos "ais", dos gongorismos, dos trejeitos
em que, alguns, julgam estar a qualidade,
e a qualidade sempre achou defeitos...

(Maria João Brito de Sousa - 08.09.2015 - 16.47h)

(In "A CEIA DO POETA", inédito)




A ILHA
Maria João Brito de Sousa

Serei sempre uma ilha de paixões
Rodeada de espanto a toda a volta,
Deserta por decreto da revolta
Que me encheu de lagoas e vulcões...

Em mim os animais são aos milhões,
Procriam como o verso, à rédea solta,
Pois por cima da lava que me solda
Lavrei um verde manto de ilusões

E neste Paraíso em que me dou
Entre ervas, embondeiros, brancos lírios,
Sou Arca de Noé de âncora presa!

Talvez alguém duvide do que sou,
Talvez seja mais um dos meus delírios,
Talvez seja uma forma de defesa...

(Maria João Brito de Sousa – 2008)



A PERFEITA OCUPAÇÃO DAS HORAS
Maria João Brito de Sousa

No corpo inacessível de um poema
Mora o ritmo, sereno ou agitado,
Que fala da virtude e do pecado
E faz com que escrevê-lo valha a pena.

Essa alma musical que assim me acena
A seduzir-me o corpo já cansado,
Virá trazer-me o verbo inesperado
Que me preenche e torna mais serena

E vai-se esse vazio que então crescia
E fica-me o fruir do que se faz
Nas noites renovadas como auroras

Em que me torno amante da Poesia
E concebo o poema que me traz
Essa perfeita ocupação das horas...

(Maria João Brito de Sousa - 30.01.2009 - 23.58h)



ADEUS, MAMÃ!
Maria João Brito de Sousa

Afogo o meu soluço em parte alguma
Se recordo o menino que gerei
E logo tudo aquilo que não sei
Se dissolve no ar desfeito em espuma...

Num vão peculiar do meu sentir,
Arrumada a miragem, com carinho,
Lá deixo o meu menino deitadinho,
No mais fundo de mim irá dormir.

Agora é o poema quem, comigo,
Passeia de mãos dadas, vai à rua,
Dorme na minha cama e, de manhã,

Me acorda pr`a que vá brincar consigo...
Depois, mal chegue a noite e veja a lua,
É quem me vem dizer: - Adeus, mamã!

(Maria João Brito de Sousa - 24.01.2008 - 22.36h)



25 DE ABRIL - Cravo/Metáfora
Maria João Brito de Sousa
 (Em decassílabo heróico)

Porque hoje se acrescenta e se agiganta
A chama dos valores jamais vencidos
Que acende outro amanhã que cresce e canta
Nas brasas da fogueira dos sentidos,

Que ascende, que conforta, que acalanta,
Que faz nascer, cá dentro, indesmentidos,
Os cravos de outro Abril que nos garanta
Direitos e razões quase perdidos,

Eu hoje cantarei… se tempo houver,
Porque o tempo se escoa, um cravo morre
E eu não posso jurar poder, sequer,

Prender não sei o quê, que tanto corre,
Que espreita e que se quer deixar colher,
Mas não tem flor que eu veja, ou pé que eu dobre…

(Maria João Brito de Sousa – 25.04.2014 – 17.37h)



A GESTAÇÃO DO POEMA
Maria João Brito de Sousa

Quando a mente fervilha, o verso é brando
E esgueira-se rumando em rota incerta
Tal qual fora deixada a porta aberta
De um vazio que ao tolhê-lo o vai calando...

Que lhe não dê ninguém voz de comando,
Pois bem sabe caber-lhe estar alerta
Se irrompe, ideia fora, à descoberta
Daquilo que nem eu sei como ou quando,

Mas não sabe que parte e vai ficando
Onde eu sei que o criei porque é criando
Que sinto que arriscar me vale a pena

Do tanto que há de dor se, murmurando,
De rompante me nasce e vai vingando
O que, da mente à mão, se faz Poema…

(Maria João Brito de Sousa – 09.07.2012 – 18.48h)



O MANTO DA VIDA
Maria João Brito de Sousa

Eu sei-me, a mim, de cor e salteada,
Na amarga lucidez dos meus sentidos;
Sei-me na humana cor dos meus vestidos
E acabo onde começa a minha estrada...

Sei-me desde que a vida me foi dada,
No acender da chama em tempos idos,
No manto remendado dos tecidos
Em que me fiz humana e fui amada,

Porque é, o tempo, a renda destas mãos
Partilhadas no sonho e na vontade
Que aqui se tece em malhas de carbono

E, a Vida, como um pacto de artesãos
Urdido entre a mentira e a verdade,
Tem a Necessidade por patrono...

(Maria João Brito de Sousa - 08.05.2008 - 11.08h)


  
ESPANTO
Maria João Brito de Sousa
(Soneto em decassílabo heróico)

Meu espanto, como bicho degolado,
É este quase-nada, este destroço,
Que embora reduzido a pele e osso
Faz frente a quem o tenha encurralado,

É este não temer ser confrontado
Com força natural, fera ou colosso,
Que nega a frustração do “já não posso!”
E muda, à dura sorte, o resultado

Meu espanto mora em mim, comigo vive,
Mas pode exacerbar-se onde eu nem estive
Se as asas dum poema o transportarem,

Porque traz quanta força eu jamais tive
Se enfrenta humilhação que o esgote ou prive
Da voz que os sonhos meus lhe não negarem

(Maria João Brito de Sousa – 30.10.2013 – 15.16h)




E SOLTA-SE O SONETO...
Maria João Brito de Sousa

… e solta-se um soneto alvoroçado
Da estranha compulsão do gesto breve
Que cresce de um anseio exacerbado
Nos insensatos dedos de quem escreve.

Traduz um sonho só, deixa de lado
O jugo do silêncio em que prescreve
E ao ver-se desse jugo libertado
Diz, por vezes, bem mais do que o que deve.

Tem pouco espaço pr`a dizer-se inteiro
Mas, habilmente, custe o que custar,
Num nada se constrói teimosamente;

Pode ser temerário, aventureiro,
Ou simples, incorpóreo, eco lunar,
Mas que não seja escrito inutilmente!

(Maria João Brito de Sousa – 31.05.2012 -16.51h)




SONETO PARA UM SONHO QUE SONHEI
Maria João Brito de Sousa
(Abril, 25, 1974)

Depois de uma janela, outra janela
Se abriu de par em par, nesse protesto…
Mil se abriram depois, fazendo o resto,
Assim que a voz do sonho ecoou nela!

Completo, nasce o sol, derruba a cela,
Infiltra-se-lhe a luz no duro asbesto
E, nessa convicção que ao sono empresto,
Traduz-se-me em vontade enchendo a tela…

Transmutada a janela em peito aberto,
Fosse essa luz descrita a voz roubada
À vivência de um tempo insano, incerto,

Estaria essa vitória bem mais perto
E já se glosaria, em qualquer estrada,
Invicta, esta alegria em que eu desperto!

(Maria João Brito de Sousa – 24.11.2012 – 09.39h)




EU, POETA PORTUGUÊS
Maria João Brito de Sousa

(Ao meu avô, António de Sousa, poeta e português)

Eu tenho o nobre toque das areias
Do meu pequeno-imenso Portugal
E vivo em transparências de cristal
Sobre uma estranha fome de alcateias.

Projecto dos tritões e das sereias
Num traço decidido, horizontal,
Renasci, para o bem e para o mal,
Da cópula carnal de mil ideias...

Aqui cresci! Castelo em construção
Do sonho e da raiz de uma ilusão
Onde naufraga um mar todos os dias,

Eu escrevo-me em memórias, caravelas,
No sol, na lua e nos milhões de estrelas
Em que a dor espanto, à força de ironias...

(Maria João Brito de Sousa - 05.06.2008 - 11.56h)



“S” de SONETO
Maria João Brito de Sousa

Sublime silvo, sopro sussurrado,
Suave solfejo seco ou sibilante;
Sorvo-te o simbolismo segredado,
Sofro-te a sedução simbolizante.

Subliminar, sopraste-me o sondado,
Secreto e só, sem som sintonizante,
Supino, singular e separado,
Sumindo-te, sereno e sublimante.

Soberano soneto, suavemente
Segredas sempre (a)ssim, sociavelmente,
Suavíssimos, soberbos sons sentidos.

Sei-te sempre sincero e silencioso
Secundando-me o sonho, são, sedoso,
Secular sob os sons subentendidos.

(Maria João Brito de Sousa – 24.08.2018 – 14.30h)




3 comentários:

  1. Belo repositório de sonetos da Maria João de SOUSA

    - garantida neste espaço a sua perenidade, que se espera seja ainda muito cedo para vir a ser consultada como fonte

    da boa poeta que é temos ainda muito a esperar

    Beijinho e votos de muita e boa produção

    António Saias

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  2. Peço, antes de mais, desculpa pelo atraso na resposta, António Saias. É de minha vontade escrever ainda por alguns anos, sem dúvida, e tudo farei para que assim seja, apesar do agravamento progressivo dos meus problemas de visão, que suponho serem reversíveis.
    Agradeço do fundo do coração as suas palavras amigas e elogiosas e fico muito feliz por saber que lhe agradaram os meus sonetos, acredite!

    Um beijinho muito amigo!

    Maria João


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  3. Olá, Maria João

    Sei que é uma acérrima defensora pelo respeito da estrutura formal, na escrita do soneto, além de demonstrar elevada maestria na sua produção.
    Por tal motivo, convido-a a participar num desafio literário, que organizo no Palavras Aladas, através da escrita de um soneto de homenagem a Machado de Assis.
    Para mais informação poderá a ceder a : UM SONETO PARA MACHADO DE ASSIS.

    Abraço poético.
    Juvenal Nunes

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