A Vitalidade do Soneto

Humberto Mello Nóbrega (1901-1978), inteligência e talento de escol, historiador, tradutor, ensaísta e poeta, escreveu o seguinte:
"Prossegue o soneto, íntegro e desafiante, a atravessar tempos e modas, quando outros poemas também fechados, e tão antigos, já se perderam ou se vão perdendo definitivamente".
Sempre foi, desde Dante — o primeiro grande poeta a produzir soneto — e, principalmente, desde Petrarca, a composição lírica de maior pureza. Alphonse Seché, no prefácio de seu livro "Les Sonnets d'amour", recordou, com propriedade, que "este pequeno poema foi inventado muito especialmente para cantar o amor e os seus arroubos".

A máxima vitória conquistada pelo soneto, como mensagem de amor, foi o célebre soneto de Félix Arvers (1806-1850). Ele é, tecnicamente, inferior, por exemplo, aos cintilantes sonetos de "Os Troféus", de José Maria de Herédia (1842-1905), mas, apesar disso, pela sua emotividade, granjeou a irrestrita admiração do público e alcançou a simpatia universal. É mais uma prova evidente de que a poesia significa, antes de tudo, a expressão maior da alma humana.
Ao contrário, porém, do que, em geral, se pensa, nem todos os poetas do Romantismo o adotaram. Chegou a ser quase proscrito pelos Românticos, que, já o frisamos, se opunham a toda criação clássica.

Valemo-nos, ainda, de Jucá, que, a respeito, nos recorda:
"A concepção do Soneto é incompatível com a escola romântica. Esta, que queria a liberdade absoluta, na técnica e na execução, como poderia aceitar as restrições que o Soneto exige do Autor?".
Entre as grandes figuras dessa escola, há os exemplos de Schiller, Lamartine e A. de Vigny, que nunca os rimaram; e de Victor Hugo e Alfredo de Musset, que escreveram pouquíssimos sonetos.
Na nossa língua, Garret, Castilho e Guerra Junqueiro (em Portugal), Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias (no Brasil), muito pouco a ele se dedicaram. Herculano, Porto Alegre, Teixeira de Melo, Bruno Seabra e Mello Morais não escreveram nenhum, como nenhum escreveu Casimiro de Abreu (1837-1860), a mais autêntica figura do lirismo brasileiro.

Aliás, a respeito de Casimiro de Abreu, temos de fazer uma ressalva. Esse poeta compôs um "soneto", sob o título "Ontem à noite", que não figura no seu livro "As primaveras", publicado em 1859, mas está incluído na coletânea "Sonetos Brasileiros", de Laudelino Freire, edição de 1913. Infelizmente, não podemos transcrevê-lo no capítulo dedicado ao Romantismo. Isto porque, apesar de se tratar de composição muito bonita, bem ao estilo de Casimiro, não atende à exigência de haver somente duas rimas nos quartetos.
É uma pena!
Entretanto, os amantes do soneto jamais se desesperaram. Sabiam que o Romantismo idealizado pelos seus precursores e praticantes seria, como Escola, dentro da perenidade da poesia, apenas um momento fortuito de rebeldia antiformalista e até política. E assim ocorreu. Impuseram, então e sempre, a sua filosofia, o seu sentimento, a sua convicção inabalável, tudo impregnado do verdadeiro e eterno lirismo.

Exigente, no que diz respeito à forma e ao conteúdo, o soneto nunca deixou de, por destino, resistir à autodestruição, mesmo levando-se em conta os obstáculos erguidos à sua passagem. Ele sabe que tem de ultrapassar as naturais barreiras impostas pelas próprias peculiaridades, algo severas e inflexíveis. E que, quando manejado por experientes artistas do verso, sobrepuja qualquer antagonismo. Daí, o segredo precípuo de sua vitalidade.

O poeta espanhol, contemporâneo, Dámaso Alonso (n. 1898) assim se expressou sobre o soneto clássico: "E passarão os anos e os anos; irão modas, virão modas; e esse ser criado, tão complexo e tão simples, tão sábio e tão pueril (nada mais, em suma, que dois quartetos e dois tercetos), seguirá tendo uma eterna voz para o homem, sempre igual, mas sempre nova, mas sempre distinta".
A estrada que se lhe abriu, desde o nascedouro, haveria de trazê-lo até nós, como vencedor imbatível. De todas as batalhas que travou, para se defender, trouxe alguns ferimentos leves e muitas condecorações insignes.

Os poetas pré-nascentes ou da Renascença, os dos séculos XVII e XIX cultivaram, com desvelo, o soneto. Dele só se afastou, excepcionalmente e em parte, o século XVIII. Nesse século XVIII, registrou-se um relativo declínio do poema, que, na centúria seguinte, refloriu com redobrado impulso, reabilitado pelos Parnasianos. Estes, tornaram-no a mais estimada forma da poesia.
O soneto é, sem dúvida, a composição que mais se presta como recado lírico. Isto, porém, não serviu de empecilho aos poetas parnasianos e simbolistas, que, ampliando o círculo dos temas poéticos, empreenderam vôos largos através da natureza e das circunstâncias literárias, normalmente mutáveis. Outras razões, além das sentimentais, podem e devem inspirar os sonetistas, ainda que não consigam, eles, alhear-se, em definitivo, de seu tema primordial: o lirismo. Alberto de Oliveira escreveu: "Hoje, essa é a verdade, cada um de nós é um romântico a seu modo".

O soneto não é um poema universal, porque nem todas as literaturas do mundo o praticam, pelo menos com freqüência.
Sabemos, porém, que está muito generalizado nas literaturas cultas. E, embora se concentre mais nos países de línguas românicas, não deixa de ter uma presença atuante em muitas outras línguas.

Vem ocupando posição de destaque, desde que foi inventado.
A rigor, pode-se classificar como exceção, nesse particular (além do período de vigência do Romantismo), apenas a fase iconoclasta do chamado Modernismo.
Fora disso e apesar disso, o que se tem visto é o império do soneto, é a sua importância, assim explicada pelo Professor Massaud Moisés:
"Tão compacta resistência ao desgaste se deve certamente às suas características peculiares, que o individualizam e o salientam facilmente dentre as demais formas poéticas, ou seja, sua curta extensão e o aspecto sentencioso ou discursivo que pode assumir, como a exigir a concentração e a economia de meios, típica das obras completas e perfeitas".
E acrescenta:
"Por isso, ou melhor, por essas características e pela dificuldade que elas interpõem ao poeta, o soneto tem constituído uma espécie de pedra de toque para todos quantos se abalançam a escrever poesia. Ainda nos dias que correm, ele continua a ser uma esfinge a propor um enigma que desafia a todos, talentosos e medíocres: reduzir a catorze versos um conjunto de sentimentos por certo ávidos de se espraiarem em outras estrofes. Nessa redução é que se revela a mestria ou a bisonhice do poeta".

Paulo Bomfim, autor de dezoito livros de poesia, confirma este pensamento de Massaud Moisés e também o de Otto Lara Resende, como veremos ainda: "Para muitos, o soneto é inibidor, mas eu acho que é a prova de fogo do poeta. Para mim, ele é um momento de amor, com seus dois quartetos, dois tercetos e a chave de ouro, que é o grande êxtase". (...) "Não considero o soneto o espartilho da poesia. Fernando Pessoa, um dos maiores poetas modernos, usa o soneto".
Aragon proclamou, em "Les Lettres Françaises", a "necessidade de se honrar o soneto".

Quais os maiores sonetistas do mundo? Para essa pergunta não existe uma resposta conscienciosamente honesta, a despeito de ser o soneto, como lembra Cruz Filho, um poema poliglótico.
Cada país tem de apreciar, em maior escala, os seus próprios poetas, portadores de mensagens que lhe são familiares.
O teólogo alemão David Friedrich Strauss (1808-1874) escreveu estas Palavras judiciosas: — "Ë possível que Shakespeare seja maior que Goethe; é possível também que Sírio seja maior que o nosso Sol; mas não é Sírio que amadurece as nossas uvas".
Logo adiante, no capítulo "A alma errante do Soneto", oferecemos, com o recurso de excelentes traduções, sonetos de poetas dos mais diversos países; e, através deles, poderemos contemplar um panorama da poesia universal.
De uma coisa, todavia, podemos estar certos: a fórmula de um soneto do século XIII é a mesma do século XX, embora haja, entre elas, no tempo, uma distância tão grande a separá-las.

Sobre a vitalidade e o destino poliglótico do Soneto, vamos transcrever, aqui, o pensamento de Agostinho de Campos:
— O Soneto nasceu ocidental, meridional, latino e católico, o que não o impediu de conquistar a Europa toda e de ainda dominar, vencendo e prendendo na sua celular estreiteza, o Inglês insulano e individualista, o Espanhol eloqüente e esfuziante, o Francês lógico e disciplinado, assim como o Alemão do livre-exame, profundo e difuso, inchado de cogitação, e para quem — dir-se-ia há mais conceitos do pensamento do que palavras no dicionário.
Conquistada a Europa e levado nas asas das três línguas imperiais inglês, castelhano, português — o Soneto partiu a tomar posse das duas Américas.

Se tal forma ou fórmula poética viu com efeito a luz na Sicília, pode esta ilha gabar-se de ter sido o berço de um império durável e de uma devoção pertinaz, no domínio da arte literária; e o ilustre Petrarca prestou com ela a Madonna Laura homenagem teimosa, cujos ecos repercutem ainda e não mostram indícios de calar-se tão cedo.

Nos países latinos foi geral e contínua a vitória do Soneto. Em Espanha, e nos domínios da língua espanhola, praticam-no, desde Boscán e Garcilaso, Herrera, Góngora, Quevedo, até Rubén Darío. A Itália conserva a tradição petrarquiana com os famosos sonetistas modernos Hugo Fóscolo, José Carducci, Gabriel d'Annunzio. Em França encontra-se praticado o Soneto por Pedro Ronsard e Joaquim du Bellay até Banville, Herédia, Leconte de Lisle e outros modernos.

Em Portugal introdu-lo Sá de Miranda, adotam-no Antônio Ferreira, Diogo Bernardes, Agostinho da Cruz, ergue-o Camões à perfeição, e continua o seu triunfo com Rodrigues Lobo, Bocage, João de Deus, Quental, Antônio Nobre — para só falar dos mortos e dos grandes.
                  
Entre estes se conta Olavo Bilac, príncipe dos sonetistas brasileiros de língua portuguesa. Fora da Latinidade moderna apresenta-se igualmente vitoriosa a carreira do Soneto". Confirmando estas palavras de Agostinho de Campos, escreveu Cândido Jucá (filho): "O Soneto atingiu com o Camões, com Bocage e com Bilac, a sua máxima perfeição, e a sua máxima capa-cidade de expressão da alma artística. Talvez Bocage foi, ao seu tempo, o maior poeta lírico do mundo". 









(Das páginas 87 a 91 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)




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