São
Luiz, MA (1935-2015)
SONETO
1
Nauro
Machado
Vinha
cantante como um eco dentro
e
porque já era um fruto em frente à fonte,
da
escuridão me fiz o sol no centro
a
caminhar nos pés subindo ao monte.
Deparei
então com o Outro: feito adentro
da
própria soma o fim que já me conte,
para
subtrair-me do chão em que, eu-pó, já entro
como
se entrasse noutro horizonte.
Aberto
após, como se abre uma treliça,
cessei
de ser no Ser qualquer premissa
de
uma matéria póstuma, podre e oca.
E
outras palavras, como verbos feitos
do
que se fala além dos fetos-leitos,
me
enchiam os lábios com essa outra boca.
SONETO
2
Nauro
Machado
Que
me não mate o tempo ainda agora
na
minha vida feita de um futuro
para
negar-me ao vivo desta aurora
a
amanhecer após num sol escuro.
Que
enquanto não me cegue a última hora
a
nos fazer reféns do eterno muro,
me
a vida seja como um beijo fora
dado
a um cadáver ainda não frio e duro.
E
a ser da vida um fruto já tão tardo,
no
dissabor vencido da revolta,
esfriando
o fogo que no meu peito ardo
em
chama estéril a que a cinza escolta,
que
enfim me faça o tempo o findo tardo
de
quem à terra para sempre volta.
SONETO
5
Nauro
Machado
Uma
casa que apenas fosse um quarto
a
ser chamado seu para quem anda
buscando
à vida as mãos com que me aparto
soturnamente
meu em sua varanda.
Onde
a chegar tão pobre, embora farto
da
solidão que manda e até desmanda,
tirasse
à morte um ser ainda em parto
e
desse à vida a força dessa vândala.
Uma
casa que apenas fosse minha
mobília
irmã e a ser de mim rainha
nesse
banheiro aberto, onde eu me asseie,
despindo
tudo que o meu corpo traz:
para
deitar-me limpo na sua paz,
para
que nela eu seja enfim um rei.
SONETO
63
Nauro
Machado
Não
quero ser feliz, não quero a esponja
de
um Deus qualquer para o meu naufragar,
ou
o salva-vidas como uma lisonja
do
perdão eterno nesse infindo mar.
Não
quero o frio desse útero com já
tudo,
ao final, chegando a me acabar
na
monstruosa mãe, que é puta ou monja,
nesse
mosteiro feito lupanar.
Eu
quero a dor da póstuma doença
a
ser ainda atroz, fatal presença,
perversamente
viva em minha dor.
E
até depois de tudo, quero a raiz
crescendo
ainda o verbo que maldiz
uma
existência em mim, seja qual for.
SONETO
80
Nauro
Machado
A
me julgarem pelos versos lidos
terão
da soma os números errados,
porque
me fiz dos seres subtraídos
para
o final até dos não somados.
Mulher
nenhuma para os frutos tidos
de
uma semente além dos pais sonhados,
é
mais real que a dos filhos paridos
por
mim que os fiz exércitos passados.
Se
uma nádega pena o que é manada,
correndo
solta no mais baixo cume,
a
atravessar da noite a madrugada:
para
ser o boi da alma, eterna vaca,
cegarei
a luz do alto em mim, o nu me
deitando
após em Deus, como vil maca.
SONETO
82
Nauro
Machado
Enquanto
passo a própria tarde olhando,
enquanto
penso a tarde que vou vendo
em
tudo aquilo feito ainda andando
na
multidão faminta anoitecendo,
e
o chão da minha carne ao vento brando
se
faz na terra o em mim se desfazendo,
para
chegar até por fim no quando
alguém
me nasce e um ser me vai morrendo:
sou
eu sem ti e tu sem mim, e somos ambos
nenhum
real de alguma, ao menos uma,
ressurreição
como à terra os jambos.
E
enquanto parto para um porto em bruma,
tragando
os trapos de nós dois mulambos,
a
vida à morte faz-se em nós nenhuma.
SONETO
99
Nauro
Machado
No
teu cadáver jogo uma moeda,
para
comprar a vida nessa cama
em
que te deitas como, à própria queda,
também
se deita o corpo de quem ama.
Nenhuma
sede sobre a seda seda
o
sofrimento aos lábios desse drama,
a
transformar em vil terra o que é, da
mais
pura boca, a terra apenas lama.
Ninguém
te quer, ó asilo, a carne pronta
para
gozar do amor a velha afronta,
eternamente
pútrida depois.
Mas
nessa moeda, a ser cara e coroa,
no
teu cadáver sou dupla pessoa:
nós
nos deitamos para sempre em dois.
(Do livro “TÚNICA DE ECOS”, 5º livro de sonetos,
São Luiz, MA, Litograph, 1999, 99 sonetos em 114 páginas)
São Luiz, MA, Litograph, 1999, 99 sonetos em 114 páginas)
SONETO 720
Pretendo o verbo
que é maior se mudo,
que só é real se
quando à boca cala
nesse silêncio após
com Deus e tudo,
como um cadáver
preso a sua fala.
E sobre o barro com
que em paz me acudo
na muda boca, já
mais funda ou rala,
esse silêncio,
feito eterno estudo,
cresce na boca e
sem poder fechá-la,
pois muda embora,
quando é morta, a voz
ainda fala para
abrir-se após,
cavando a terra
numa eterna lavra.
E como um fruto
cresce para a fruta,
esse silêncio fala
a quem escuta
o verdadeiro verbo
da palavra.
SONETO 721
Falar porque ao fim
cala o que nos é
de uma existência a
sina a ser finita,
desde que o verbo
em nós se faz, até
o que a mudez, no
morto, ainda grita.
Falar o verbo como
um Deus sem fé,
ou como um cego que
alheia noite fita,
ou como, à dor, a
ovelha num só bé,
sem berro algum
sequer em sua desdita.
Falar o sofrimento
que nos fez
dizer após
nascidos: eis-nos pois, eis-
nos até o fim
falando em nossa voz.
Falar deitados como
se faz entre
os pais paridos por
um outro ventre,
os pais tornados
póstumos em nós.
SONETO 722
Sempre me soube o
que só cabe em mim
e que por dentro
ainda a ser me cave,
enquanto cresço
para eterno fim
o que se faz por
fora em meu cadáver.
Para existir comigo
feito assim
nesse ser duplo que
me lavre e eu lave,
pelo seu dentro me
abro, como a um in-
finito espaço para
o vôo de uma ave.
E nesse infindo
espaço, essa avezinha
que é feita apenas
da pena que é a minha
e que me chora por
partido ao meio,
é quem me voa
agora, já feito pois,
quando comigo a ser
um só com dois,
do que sou, em mim
dentro, ou em mim fora, alheio.
SONETO 723
Trôpego parto de um
Deus que é torto,
de um Deus ambíguo
e que jamais conforta,
para se abrir
somente às mãos de um morto,
meu coração se faz
de um vivo a porta.
E como de uma
síncope ou do aborto
aberto o tempo todo
na minha aorta,
o coração, que faz
de mim seu porto,
se enterra ao fundo
de uma carne morta.
O coração escoceia
no amor a mula
que lhe traz,
quando sobre o peito pula,
seu duro casco para
o chão de um bode.
E por fazer-se em
banco de fúria e ócio,
o coração, que é
meu sanguíneo sócio,
roubar-me todo pelo
fim já pode.
SONETO 726
A balançar por quem
se dane e clame
pelo repique a se
fazer mais dobre
para um corcunda de
outra Notre-Dâme,
para um Quasímodo
em sinos de cobre,
na boca funda que
de um peito mame
o leite negro que
pelo além sobre
de uma matéria a me
dizer: " — me ame,
como ama a carne
podre a carne pobre",
é que me encontro à
beira de uma corda
dependurada para o
meu pescoço,
e enquanto o sino
pelo azul acorda
a badalar no
inferno, e para dar-mo,
pobre Quasímodo de
pé, em pele e osso,
choro sozinho na
Igreja do Carmo.
SONETO 727
Desde a vagina,
como o que é sovaco
lembrando tudo que
se fez aberto,
meu pensamento,
pelo mundo opaco,
de mim mais dista
quanto mais me é perto.
E porque dentro é
feito como um saco
para o que fora, se
o abro, em vão liberto,
meu pensamento é
como um vidro ou um caco
a refletir o ser
que é o meu deserto.
E a ser após comigo
o que é de um muro,
para tapar o chão
do meu futuro
ou a me erguer de
um chão se além pensado,
meu pensamento é
como um ser ausente
e que, distante
embora, é o meu presente
eternamente vindo e
após passado.
SONETO 728
Construo uma casa
de alicerce duro,
com argamassa de
sangue e concreto,
para torná-la, além
do chão e do seu muro,
uma morada feita de
alfabeto.
E por erguê-la
neste sol escuro,
com mãos verbais de
uma flora ou feto,
esta morada impura,
ou lar mais puro,
e do cadáver no meu
corpo ereto.
Sou o natimorto
desta minha soma,
falando morte em
vida e vida em coma,
numa existência a
ser talvez depois:
porque herdaste,
carne, o que é palavra,
fazendo dela nossa
casa e lavra,
maldito eu seja no
teu parto em dois.
SONETO 729
Mortal que ilude a
morte enquanto vive
e que a não sabe
agora ou após já morto,
em mim não sou o
eterno tempo em si, vi-
vendo a impossível vida como um porto.
Desconhecendo o ser
com que me tive
ou terei a ser no
fim maior conforto,
vivo da víbora,
qual se de um vive-
re o envenenado cio
na boca-aborto.
Mortal que ilude a
vida que me sobra,
ganho da presa de
uma outra cobra
esse veneno a ser
chamado vida.
perto à noite e
vejo a minha morte
buscando, viva, a
bússola do Norte
na minha alma ainda em mim anoitecida.
SONETO 730
Este soneto é para
o que te escrevo
numa missiva sem
qualquer remessa,
jamais postada a
quem contudo devo
uma palavra a ser
minha promessa.
Nele renego a morte
com que atrevo
o pensamento que
jamais não cessa,
feito e refeito
sobre a treva e o trevo
de uma matéria que
me é presa e é pressa.
Não é a morte quem
me mata: ela é a nascida
pelo trabalho todo
de uma vida
no suor da semente
a fecundá-la.
Não mata a morte
que, por não ser oca,
germina dentro a
voz querendo a boca
para fazer-me um
fruto abrindo a fala.
SONETO 731
Para o cadáver que
sem voz me cave
numa outra terra
que a fazer se deve
no escurecido
ventre que é suave
e onde o furor
carnal não mais se atreve,
furada nau do tempo
vaza a nave
que vou afundando em
mim e que me leve
à solidão maior que
a dessa ave
sem céu nenhum
aonde voar mais leve.
Ó desespero insone
e de onde me eva-
do do cavalo na
égua feita em treva
para o que a carne
eterna ao fim nos priva:
que a descomunal
vida seja a dessa
presença dada como
uma promessa
para o cadáver que
na tumba viva!
SONETO 796
Voltar ainda a ser,
para apalpares
noutro tato o
retorno dos prazeres,
como extensão
noturna desses mares,
como volúpia feita
em outros seres.
Voltar ainda a ser
em coxas pares
o ventre arado em
seus carnais deveres,
ainda melhor do que
enfim te acabares
e nunca mais mortal
após nasceres.
Assim, a ser igual
no sofrimento,
talvez te volte um
outro nascimento,
talvez te faças
corpo imorredouro.
E a nunca mais
morrer serás a dor
a estar de novo
dentro de quem for
nascendo como faz à
vaca um touro.
SONETO 797
O tempo, eterno
mudo, é a voz a des-
velar-me à carne,
enquanto nela falo,
para fazê-la em mim
quem me há-de es-
cutar seguindo ao
nada, até calá-lo.
Ó ouvido dalma, ó
meus dois covardes
no fim de um
porto-pedra, um Pedro-galo,
nesse quintal
humano feito Hades
a afogar no útero o
meu verbal falo!.
E onde o verbo, já
póstumo, proclama
pela matéria que é
na voz seu fim:
- do que te fez
humano sobre a cama,
querendo, embora
podre, o mais lindo,
daquilo feito com
furor e lama,
há de nascer depois
talvez o Infindo.
SONETO 804
No abraçar-te,
brancura oca, ossadas do além
na amaldiçoada alma
ao cadáver de um Deus,
é noite apenas
sobre mim e mais ninguém,
e a treva tomba
toda aos turvos olhos meus.
Multiplicar-te quer
ainda, noite, quem
pelas palavras
empunha os lábios que são breus,
menstruando
cadáveres de estrelas sem
nenhum túmulo
afora, ó sol eterno, os teus.
Trazendo o mar do
céu ao lodo concebido,
engendra, noite, o
do eco vindo para o ouvido
ao chão do osso
apagado sobre a cal dos fins.
É treva apenas
sobre a terra aquém comigo,
na imensidão da
noite a treva toda em trigo,
qual se fora a alma
uma boca aos pés dos rins.
SONETO 805
Quem, a desesperar,
ainda mais se atreve
e a ousar se faz a
ser o que no ser se engrossa,
querendo a nota
eterna numa nota breve
da carne quando
enfim tornada numa fossa,
faça-se a ser
terrosa fossa em terra leve
na forma toda após
tornada e feita nossa,
ó ser terrosa carne
querendo a alma em neve,
embora a morte
eterna seja escura e grossa!
Circunscrita
matéria ao cio, póstumo porto,
sobrado e
circunscrito ao que já é de um morto
no solitário e
adunco verme pelo rosto,
parada mosca é
Deus!, talvez na boca um sestro
sobre os sedentos
lábios desse Pai-Maestro,
tocando a marcha
fúnebre de um sol já posto.
(Do livro "Nau de Urano" (Antologia de 806 sonetos, publicados e
inéditos), São Paulo, Editora Siciliano, 2002)
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