Ponto de vista



Pela leitura de “O MUNDO MARAVILHOSO DO SONETO”, de Vasco de Castro Lima, bem se observa a trajetória do Soneto e os aspectos que envolveram a sua criação na Itália do século XIII.

Com vivo esplendor, as especiais mãos de Francesco Petrarca consagraram a forma clássica de nome Soneto, “não só universalizando-o, como fazendo dele o maior mensageiro do sentimento, no mundo inteiro. Os italianos foram sempre fiéis a esse culto, pois que, dentre eles, apareceram, em todas as épocas, excelentes sonetistas.”

No entanto, alterações passaram a ser feitas  na concepção inicial do Soneto (primeiramente na forma, depois no conteúdo), conforme o capítulo “Variações e extravagâncias do Soneto”, do referido livro de Vasco de Castro Lima.

A esse respeito, escreveu o estudioso, ensaísta, professor, poeta e crítico literário Sânzio de Azevedo, de Fortaleza/CE, num texto de 2004:

No Brasil, do Barroco ao Romantismo, não encontramos um soneto que não siga os esquemas clássicos. Com os realistas (alguns dos quais se tornarão parnasianos e outros, simbolistas) começam a surgir rimas cruzadas nos quartetos (ABAB) e variações nos tercetos. Mas é interessante notar que depois das Flores do Mal (1857), de Baudelaire (1821-1867), é que apareceram os sonetos cujos quartetos não rimam entre si, para não falar dos tercetos antepostos aos quartetos, prática encampada por alguns simbolistas. O Parnasianismo que, sob muitos aspectos, foi um novo Neoclassicismo (com perdão para o aparente pleonasmo), buscou fugir a essas liberdades, mas de Baudelaire alguns poetas herdaram as rimas emparelhadas nos quartetos.

Com o Modernismo, quase desapareceu o soneto, vítima de um preconceito que lamentavelmente confundia fôrma com forma. Mas como não havia razão para morrer um tipo de poema que foi barroco com Gregório de Matos; neoclássico com Cláudio Manoel da Costa; romântico com Castro Alves; parnasiano com Olavo Bilac e simbolista com Cruz e Souza, hoje o soneto é praticado ora dentro dos mais rígidos esquemas de rimas, ora com rimas independentes nos quartetos, ora com rimas toantes, ou mesmo sem rima alguma."

Sânzio de Azevedo, “Palimpsesto & outros sonetos”, Diário do Nordeste”, 12-09-2004



Também na Inglaterra se verificaram inúmeras alterações à forma tradicional do Soneto com o objetivo maior de adequar à especificidade do verso inglês a forma clássica italiana soneto. Destaque-se, entre outras alterações efetuadas, a criação do “soneto inglês”, por Thomas Wyatt ou Henry Howard, não se sabe ao certo, tornada célebre por abraçar as peças e os enternecedores trabalhos poéticos de  William Shakespeare (1564-1616) e que ficou conhecida como “soneto shakespeariano”.

    A propósito, diz-nos Vasco de Castro Lima que — em que pese a variável inglesa ter sido adotada por um gênio da literatura universal, como o foi Shakespeare, e até mesmo levar o seu nome — não é Soneto.


Para muitos, entre os quais me incluo, é estranhável a facilidade com que paulatinamente se altera o que foi criado por outrem, apontando uma forte descaracterização da forma modelar original. Não estaria havendo uma utilização indiscriminada do próprio termo soneto paralelamente a uma desobediência cada vez maior das suas regras?

Não seria cabível se criarem novas estruturas poéticas à luz do passar dos tempos e dos modos de pensar, mas com novas terminologias? Se há tanta inventividade, por que desconstruir a estrutura secular do soneto, erguida com uma filosofia mais do que determinada no século XIII, para criar a própria e, ainda assim, continuar a chamá-la de soneto?

Mas... há outras formas de se ver  desaparecer o soneto petrarquiano: uma delas é a simples  disposição de um poema de 14 versos em dois quartetos e dois tercetos, sem o cuidado da rima, da métrica, requisitos básicos concernentes à estrutura; e sem levar em conta a alma do soneto, ou seja, o especial pensamento que ocorre num especial momento e que somente o veículo chamado soneto tem o poder de transportar ao leitor na tradicional estrutura criada para tal.
Ainda que sem esses cuidados, normalmente se costuma dizer que é um soneto.

     O que se observar, afinal, num tradicional soneto, aqui no caso, o modelo petrarquiano? 
Devem ser observadas (sentidas) duas ideias (ou emoções, estados de espírito, crenças, ações, eventos, imagens etc) normalmente contrastantes. A primeira ideia é desenvolvida nos dois quartetos; a segunda, colocada nos tercetos, é a que traz a resolução, o esclarecimento, a conclusão ou o esgotamento da tensão provocada pela primeira ideia.
A essa "virada" no posicionamento do poeta é que se dá o nome de "volta", ou seja, o instante em que ele, o poeta, inicia uma nova ideia que vem se contrapor (às vezes complementar com ênfase) àquela lançada na primeira parte do soneto. É onde reside o fecho do soneto, a chamada "chave de ouro", que não vemos em grande parte dos sonetos mais recentes.

   O soneto, uma forma poética criada para falar do Amor, não exclui, no entanto, a natureza cerebral em sua construção. Com o tempo, outros temas passaram a ser abordados: um fato, um sentimento, uma sensação, uma percepção, uma ideia, uma imagem ou uma impressão, tratados nos dois primeiros quartetos; e em seguida — nos dois tercetos — o poeta deve considerar o que foi dito nos dois quartetos e aí se utilizar de uma argumentação contrária ou que põe muito em dúvida o que foi proposto, ou a ela dando uma outra visão.  

  Marcando bem esses dois tempos na dialética, significando, portanto, uma mudança de tom, a forma soneto instituiu rimas diferentes para cada uma dessas partes: duas rimas para os quartetos e rimas diferentes para os tercetos, nestes últimos usadas com flexibilidade em paralelo com um certo afrouxamento da tensão trazida dos quartetos.

  Um primoroso exemplo de tradicional soneto petrarquiano com fecho de ouro:


MAL SECRETO
Raimundo Correia
Maranhão (1860-1911)

Se a cólera que espuma, a dor que mora
nalma, e destrói cada ilusão que nasce,
tudo o que punge, tudo o que devora
o coração, no rosto se estampasse;

se se pudesse o espírito que chora
ver através da máscara da face,
 quanta gente, talvez, que inveja agora
nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
guarda um atroz, recôndito inimigo,
como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
cuja ventura única consiste
em parecer aos outros venturosa!


Completada a leitura de “O MUNDO MARAVILHOSO DO SONETO”, de Vasco de Castro Lima, questionei-me até que ponto também eu  não estaria descumprindo as linhas mestras do soneto tradicional, banalizando o uso da forma soneto, por usá-lo indistintamente: daqui por diante, terei mais cuidado e procurarei vestir o soneto apenas em “ocasiões e ambientes especiais”. Afinal, “o traje de gala da Poesia” não deve ser usado em lugares quaisquer, para não ser tornado comum. 

Regina Coeli Rebelo Rocha
Rio de Janeiro/RJ – Abril de 2017
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Um comentário:

  1. Querida amiga e grande poeta. Quanto nos falamos nessa sua maravilhosa viagem ao mundo dos sonetos!A sua tenacidade, a sua coragem e a sua persistência são dignas dos mais belos elogios, dos mais vibrantes aplausos.Levou-me consigo neste longo tempo de trabalho onde encontrei expectativas que estavam, talvez, moribundas.O soneto não perecerá. Jamais! Encontra vieses no tempo, no espaço e no novo.Inovar, sim! A criatividade é própria do ser humano.
    Menosprezar o que de tão belo nos ofereceu o clássico, para mim, é ato criminoso mas que não exige punibilidade. Acredito, como você, que os novos modelos deveriam receber também um novo nome.Sonetos seriam apenas os seculares e aqueles que seguem os mesmos requisitos, não somente a forma, mas a sua alma, a sua essência. Quiçá consigamos chegar perto dessa perfeição. Meu aplauso e minha admiração sempre. Cleide Canton

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