Cesário Verde

Lisboa (1855-1886)
(um dos precursores do modernismo português)


LÁGRIMAS
Cesário Verde

Ela chorava muito e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:
– “Tu pareces nascida da rajada,
“Tens despeitos raivosos, resolutos:

“Chora, chora, mulher arrenegada;
“Lagrimeja por esses aquedutos...
–“Quero um banho tomar de água salgada.



”PRÓ PUDOR”
 Cesário Verde

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...



MANIAS
Cesário Verde

O mundo é velha cena ensangüentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada –,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!



A FORCA
Cesário Verde

Já que adorar-me dizes que não podes,
Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes,

Eu antes que encaneçam meus bigodes
Ao meu mister de ama-te hei de pôr meta,
O coração mo diz – feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.

E a vida depurada no cadinho
Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,

Mas o que há de apertar o meu pescoço
Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.



NUM TRIPÚDIO DE CORTE RIGOROSO
Cesário Verde

Num tripúdio de corte rigoroso,
Eu sei quem descobriu Vênus linfática,
– Beleza escultural, grega, simpática,
Um tipo peregrino e luminoso.

– Foi lâmpada no mundo cavernoso,
Inspiradora foi de carta enfática,
Onde a alma candente mas sem tática,
Se espraiava num canto lacrimoso.

Mas ela em papel fino e perfumado,
Respondeu certas coisas deslumbrantes,
Que o puseram, é céus, desapontado!

Eram falsas as frases palpitantes
Pois que tudo, é meu Deus, fora roubado
Ao bom do Secretário dos Amantes



HEROÍSMOS
Cesário Verde

Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e nágua quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar! 


Fonte: Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro       <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

          Poesias Completas de Cesário Verde, Rio de Janeiro,
          Ediouro, 1987




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