Rio de Janeiro, RJ, 2008
CONVICÇÃO
Giuseppe Ghiaroni
Por saberes que nunca serás minha
permites que entre nós, timidamente,
vacile a intimidade reticente
que haveria entre súdito e rainha.
Não que saibas. Serias adivinha
se soubesses que te amo loucamente.
Já me tomas até por confidente
por saberes que nunca serás minha.
E não que eu pense mal de ti, pois vivo
a imaginar-te um cisne pensativo
sob a vivacidade de andorinha.
Mas, quando ris olhando-me de frente,
parece-me que ris unicamente
por saberes que nunca serás minha!
(Soneto do livro "O DIA DA EXISTÊNCIA", 1941, reeditado em
"A Máquina de Escrever", São Paulo, Scortecci, 1997)
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"A Máquina de Escrever", São Paulo, Scortecci, 1997)
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ECONOMIA
Giuseppe Ghiaroni
Dá de ti. Dá de ti quanto puderes:
o talento, a energia, o coração.
Dá de ti para os homens e as mulheres
como as árvores dão e as fontes dão.
Não somente os sapatos que não queres
e a capa que não usas no verão.
Darás tudo o que fores e tiveres:
o talento, a energia, o coração.
Darás sem refletir, sem ser notado,
de modo que ninguém diga obrigado
nem te deva dinheiro ou gratidão.
E com que espanto notarás, um dia,
que viveste fazendo economia
de talento, energia e coração!
(Sonetos do livro "A GRAÇA DE DEUS", 1945, reeditados
CONTINUIDADE
Giuseppe Ghiaroni
Existe um cão que ladra quando eu passo,
como se visse um bêbado, um mendigo.
E. no entanto, esse cão foi meu amigo
como tantos amigos que ainda faço.
A noite, com que alegre estardalhaço
vinha encontrar-me no portão antigo,
enquanto a dona vinha ter comigo
e, sorrindo, apoiava-se ao meu braço.
Hoje ele faz a outro a mesma festa
e ela o mesmo carinho, tão honesta
como se nem notasse a transição.
Eu rio dessa triste brincadeira.
Mas quando uma mulher é traiçoeira
não se pode confiar nem no seu cão!
INJUSTIÇA
Giuseppe Ghiaroni
Tu queres que eu te esqueça de repente,
que esqueça de repente os teus carinhos,
eu que te venho amando aos bocadinhos,
desde quando te era indiferente!
Deixa-me ir esquecendo lentamente,
voltando aos poucos sobre os teus caminhos,
arrancando um a um os teus espinhos,
até ver urna estranha á minha frente.
Dá-me um beijo de menos cada dia,
inventando um pretexto que sorria,
de maneira que eu saiba sem saber.
Pois queres que eu te esqueça de repente,
e nem sei se uma vida é suficiente
para — mesmo aos pouquinhos — esquecer!
em "A Máquina de Escrever", São Paulo, Scortecci, 1997)
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AS GERAÇÕES
Giuseppe Ghiaroni
Uma outra geração mais nova do que a minha
com outro coração mais novo do que o meu
vem clamar como eu vinha; acusar como eu vinha;
Vem sonhar como eu e acordar como eu!
Eu a vejo investir contra a erva daninha
que renasce sem fim, contra o escuro de breu
que asfixia os clarões; contra a força mesquinha
que a nobreza combate e que nunca venceu.
Eu a ouço acusar quem passou antes dela
sem fazer desta vida uma vida mais bela,
mas a vejo também triste e inútil como eu...
Ouvindo-se acusar pela voz de procela
de uma outra geração mais nova do que ela
com outro coração mais novo do que o seu!
REMINISCÊNCIAS
Giuseppe Ghiaroni
As mulheres que amei sinceramente
e que sinceramente me iludiram
seguiram por aí e, felizmente,
não sei por onde nem com quem seguiram.
Não sei se sorrirão como sorriram
para os meus olhos bons de adolescente,
mas nem eu vejo como antigamente
nem elas são como os meus olhos viram.
Só sei que as vi passar num passo esquivo,
não sei para que fim, por que motivo,
além do fato atroz de que passaram.
Nem sequer sei quais delas se perderam,
nem sei quais se casaram ou morreram.
Mas sei que todas elas me mataram!
DEPOIS
Giuseppe Ghiaroni
Depois de ter tentado e conseguido,
depois de ter obtido e abandonado;
depois de ter seguido e ter chegado;
depois de ter chegado e prosseguido!
Depois de ter querido e ter amado;
depois de ter amado e ter perdido;
depois de ter lutado e ter vencido;
depois de ter vencido e fracassado!
Depois que o sonho comandou: "Avança!".
Depois que a vida ironizou: "Criança!".
Depois que a idade sentenciou: "Jamais!".
Depois de tudo que escarnece e exalta,
depois de tudo, quando nada falta,
depois de tudo, falta muito mais!
(Sonetos
do livro "A CANÇÃO DO VAGABUNDO", Irmãos PONGETTI - Editores, Rio
de Janeiro, 1949, reeditados em "A Máquina de Escrever", São
Paulo: Scortecci, 1997)
Mais Sonetos do livro "A CANÇÃO DO VAGABUNDO",
Irmãos PONGETTI - Editores, Rio de Janeiro, 1949
PRÓLOGO
Giuseppe Ghiaroni
Êstes versos que eu faço estão perdidos
entre milhões de altissonantes versos,
como um círio caído entre universos
de sóis eternamente encandecidos.
Êstes sonhos que eu sonho estão perdidos
na tragédia banal dos grãos dispersos;
estão fadados a morrer imersos
Entre os sonhos coroados e vividos.
Versos sem vôo e sonhos sem grandeza!
Mais condenados que, na natureza,
o arbusto exposto ao vendaval medonho...
Falte tudo à minha alma e aos meus sentidos.
Mas fiquem, versos que eu já sei perdidos!
Fiquem, ânsias perdidas do meu sonho!
AQUI ONDE ME BATE O CORAÇÃO
Giuseppe Ghiaroni
Aqui onde me bate o coração,
constante e maquinal como os motores,
servindo a alheios fins exteriores,
sem repouso, sem paga e sem razão!
Batem como que as dôres e a paixão
de não ter mais paixões e não ter dôres;
e bate o triste fim dos sonhadores
aqui onde me bate o coração!
E bate o indecifrável desencanto
de ser culpado e vítima de tanto,
na tão emaranhada confusão,
Que eu chego a desejar com ansiedade
que me batam silêncio e frialdade
aqui onde me bate o coração.
INOCÊNCIA
Giuseppe Ghiaroni
O homem, o monarca da existência,
fez tudo a bem do seu prazer egoísta.
Arrogou-se os direitos da conquista
e exigiu servidão e complacência.
Na mulher, pelas graças e a excelência,
demorou sobretudo a sua vista.
Foi plasmando a mulher como um artista,
e esmerou-se nas formas da inocência.
Mas a lei do castigo não se ilude.
Êle, o autor da inocência e da virtude,
procura-as na mulher inutilmente.
Procura o que plantou por egoísmo.
Colhe apenas uns galhos de cinismo
e descobre que é êle o inocente.
OPORTUNIDADE
Giuseppe Ghiaroni
Um dia tu sorrias ao meu lado
e o teu sorriso era um divino ensejo.
Talvez fosse ilusão do meu desejo,
do meu amor calado e irrealizado.
Parece que foi hoje! Ainda te vejo
com os olhos abertos de pecado.
Impressão? Mas por que não fui ousado,
não te dei um abraço, nem um beijo?
Minha chance passou se foi verdade,
deixando mais remorsos que saudade,
sem se ter revelado numa frase.
Quando alguém perguntar com voz dorida
Se alguma vez eu fui feliz na vida,
Que poderei dizer? Que já fui... quasi!
CARIDADE
Giuseppe Ghiaroni
Tens vinte anos; vais chegar aos trinta.
E dos trinta aos quarenta, é curta a estrada!
Dos quarenta aos cincoenta, é quasi nada,
e eu duvido que um velho me desminta.
Uma vez que a jornada é tão sucinta,
e preciso ter a alma preparada
Para que, após o fim dessa jornada,
O Eterno te receba e te consinta.
Tens vinte anos! Já vais ter sessenta!
Anda! A lei do castigo é lei violenta
que condena uma vez e não redime!
Anda! Salva-te, amor! Dá-me os teus beijos,
que matar um poeta de desejos
é um pecado mortal e um grande crime!
A LENDA DOS BEIJOS
Giuseppe Ghiaroni
Quando Deus se apiedou ligeiramente
da amarga condição da humanidade,
inventou êsses beijos com que a gente,
ainda hoje, se esquiva à claridade.
Chamou seus anjos sucessivamente
e, com beijos de pura suavidade,
descobriu tanto beijo diferente
que ofuscou a visão da Eternidade.
Mas como o Céu é a cúpula parada
onde não há mais luta, nem desejo,
seus beijos eram beijos de chegada.
Eis porque quando eu parto, minha vida,
beijo-te tanto, e quanto mais te beijo,
menos encontro beijo da partida.
BEIJOS
Giuseppe Ghiaroni
Eu beijo as lindas mãos da minha amada
e vou sozinho pela noite, ouvindo
o éco dos meus passos construindo
as muralhas da ausência na calçada.
Pois eu não sei que pérfida cilada
arma-lhe a vida que lhe está sorrindo,
mas sei que um rosto, quanto mais é lindo,
mais mostra a mágua, na expressão maguada.
Eu beijo as lindas mãos da minha amada.
Se ela sofrer, chorando de desgosto,
Pondo o rosto entre as mãos, desesperada...
Nêsse momento, como por encanto,
as suas mãos hão de beijar seu rosto
e os meus dois beijos secarão seu pranto!
SONETO
Giuseppe Ghiaroni
Eu te daria tudo, porque és linda
e a ternura é doçura em tua face.
Eu te daria a lua, o sol que nasce,
a luz que brilha e o espaço que não finda.
Eu te daria a calma, que é bem vinda,
se ainda um vago otimismo me acalmasse.
Eu te daria o sonho, se sonhasse,
como a esperança, se esperasse ainda!
Mas como os universos são de Deus
e os sonhos e a esperança não são meus,
dou-te estes versos de expressão sentida.
Mas eu dou-te êstes versos sem beleza,
como a esvair-me em ritmos de tristeza;
e nêstes versos, dou-te a minha vida!
DEVOÇÃO
Giuseppe Ghiaroni
Amada como tu não há nenhuma,
pois entre tantas vocações terrenas,
eu vim para penar nas tuas penas,
consumir-me na dor que te consuma!
Eu vim guiar-te nas manhãs de bruma!
Eu vim cercar-te de emoções amenas,
vim ser um mar de ondulações serenas,
onde andam versos num vagar de espuma!
Amado como tu, só Êle, o vulto
que têm todas as almas no seu culto,
em vez de só uma alma sofredora!
Mas não te sirva isso de amargura!
Amado como tu só Deus na altura,
e Deus é justo... e tu és pecadora!
CONTRASENSO
Giuseppe Ghiaroni
Todo homem quer ser dono de uma vida
que seja sua de uma forma imensa;
sua em tudo que pensa e que não pensa;
sua em tudo que crê ou que duvida.
Que em todas as minúcias lhe pertença,
sob os nomes de amada e de querida,
ficando imensamente agradecida
de não ter a mais leve recompensa.
Todo homem quer essa mulher tão sua
que longe dêle, fique como nua,
num vergonhoso e trágico abandono.
E enquanto essa mulher não aparece,
é o sonho dêsse homem que se esquece
de que nem de si mesmo êle é dono.
NARRATIVA
Giuseppe Ghiaroni
“Acabemos!... Parece que ainda escuto
minha voz, nas querelas que tivemos,
porque eu padeço de um ciume bruto
que, num minuto, me arremete a extremos.
E sinto ainda o seu olhar arguto,
nessas horas de amor que nós perdemos,
a rir do meu enfático: “Acabemos!”,
meu rompante: “Acabemos num minuto!”
Mas eu disse “Acabemos“ certo dia.
E era o fim da união que nos unia.
E ela disse também: “Pois acabemos”.
E até hoje, sem rumo e sem paisagem,
ando perdido a procurar coragem
e voz para pedir: “Recomecemos!”
DESTINOS
Giuseppe Ghiaroni
Quem goza, goza num instante
de instantânea maravilha,
como uma luz que mal brilha
e cai na treva distante.
Quem sofre, sofre constante
como quem segue uma trilha
e jamais se desvencilha
da mesma trilha incessante.
Quem sofre, sofre consciente.
Quem goza, goza inconsciente
dos próprios risos banais.
Pobres destinos terrenos!
Quem goza, goza de menos;
quem sofre, sofre demais!
NA RUA
Giuseppe Ghiaroni
Existe uma mulher em quem eu falo
com um grande e formal desinteresse,
como se nem de longe a conhecesse,
ou falasse num astro ou num cavalo.
Na maneira vulgar com que me calo
sou cuidadoso, como se temesse
que alguém olhasse o meu desinteresse
com um olhar capaz de penetrá-lo.
Puxo um cigarro numa calma incrível
e falo de outro assunto, se possível
numa mulher sem significação.
E ninguém sabe, pois sou tão perfeito;
ninguém sabe que dentro do meu peito,
bateu violentamente o coração!
ESQUECIMENTO
Giuseppe Ghiaroni
Tôda vez que me deito ou me levanto,
tenho orgulho em lembrar que te esqueci;
de cantar ou chorar e o chôro e o canto
não ser música ou prato para ti.
Há um manto de sombras que estendi
sobre as tuas feições, que já quis tanto.
Puxo e repuxo as dobras dêsse manto,
cobrindo-te e esquecendo o que cobri.
Ontem te vi, falei-te e, nessa hora,
ri de mim mesmo, de pensar que, embora,
não tenhas sido minha, eu te perdi.
E ri também porque, naquele instante,
eu lembrava o meu másculo e constante
orgulho de lembrar que te esqueci!
DÔCE NOME DE ESTELA
Giuseppe Ghiaroni
Dôce nome de Estela, nome lindo,
meigo nome que em vão estou chamando,
Nome que a vida murmurou sorrindo,
nome que a morte rouquejou chorando.
Dôce nome de Estela que, surgindo,
foi a luz das estrelas me aclarando.
Triste nome de Estela que, sumindo,
foi a treva de abismos me tragando.
Dôce nome de Estela, abênçoado,
que uma voz ainda ecôa no passado,
num suspiro de amor vagando ao léo.
Último alento em meu sôfrer profundo!
Último nome que eu direi no mundo!
Primeiro nome que eu direi no Céu!
O ESPÍRITO
Giuseppe Ghiaroni
O espírito que vem quando nós vimos
vem tão puro e tão bom, de um outro nível,
que é um crime sacrílego, terrível,
leva-lo pelos rumos que seguimos.
Vem da impossível ilusão dos cimos
e nos segue aos abismos do possível.
Imperecível preso ao perecível,
vai caindo à medida em que caímos.
Porisso é que, nas horas de tristeza,
eu apalpo o meu rosto, e vagamente
tateio na expressão e na magreza.
Creio que o faço para averiguar
se a alma está cá dentro... E a mão não sente.
E eu me sinto inclinado a duvidar.
A BEBIDA
Giuseppe Ghiaroni
Tu que és menino como eu fui, amigo,
foge à bebida! Ela distrai no início.
Mas de repente, se transforma em vício,
e então o vício se distrai contigo.
Tido pecado tem o seu castigo.
E o castigo do bêbedo é o suplício
de encontrar só tormento e sacrifício
no que era o seu prazer mais grato e antigo.
Eu andei pelo mundo da bebida.
E um dia aprisionei a minha vida
na adega sepulcral de Lucifer.
Pois de tanto beber tudo o que havia,
Tanto bebi que, num sinistro dia,
bebi um juramento de mulher!
FALTA DE SENSO
Giuseppe Ghiaroni
Quando confesso que arquiteto planos
e outros riem dos planos que arquiteto,
porque nada oferecem de concreto
a não ser um porvir de desenganos.
Nem porisso eu altero o meu projeto
para moldes mais lógicos e humanos,
de modo que, mais mêses ou mais anos,
realize o meu plano predileto.
É que eu já tive planos realizados
e achei-os esquesitos, deshumanos
como anjos caídos e aleijados.
E foi porisso que aprendi a amar
os planos loucos, os divinos planos
que nunca chegarei a realizar.
CRIANÇAS
Giuseppe Ghiaroni
Os pequenos criados na inclemência
sujeitos às fadigas e aos insultos,
guardam no peito, horrivelmente ocultos,
os albores do riso e da inocência.
Cedo aprendem a olhar para a existência
como um rodar mecânico de vultos,
e se tornam crianças quando adultos,
ao primeiro sabor da independência.
Em crianças tiveram por brinquedo
a obediência, a humilhação, o medo
e o vício obrigatório de sofrer.
Em homens, riem-se das próprias cargas.
São crianças irônicas e amargas,
debochando, brincando de viver.
OS MISERÁVEIS
Giuseppe Ghiaroni
Todos fingem piedade aos miseráveis,
no entanto, os miseráveis continuam
e, alicerçando as épocas jejuam
por eternas razões inexplicáveis.
Crescem e cáem as pompas condenáveis,
sobre seus ombros que se perpetuam
como um fétido mar onde flutuam
as elites herméticas e instáveis.
É que nem os mais altos defensores
querem baixar ao chão dos sofredores
a piedade que já deu sorrindo!
METEMPSICOSE
Giuseppe Ghiaroni
Dizem que há várias reincarnações
por entre as quais a alma se encaminha
tanto mais triste, tanto mais sozinha
quanto mais vai e volta às multidões.
Mortos, deixamos a região mesquinha,
purificados das brutais paixões.
Mas a alma volta como o galo à rinha,
com nova gula e novos esporões.
Explicando melhor, a terra é o lodo
onde esperneio e me enlameio todo,
fazendo males e vivendo mal.
Levantam-me da lama, gotejando,
e, quando, aos poucos, já me vou limpando,
mergulham-me outra vez no lodaçal.
ESPELHO
Giuseppe Ghiaroni
Estive olhando a minha própria imagem;
estudando-a com tôda a lucidez,
e a minha triste casa de burguês
pareceu-me uma pálida miragem.
Cara de passageiro, de freguês,
de pedestre, transeunte, personagem,
dessas que eu vejo aos montes, de passagem,
de preferência, apenas uma vez.
Então eu recordei, sem perceber,
a minha infância, a ânsia de crescer,
de ser homem, viver o meu destino.
E aí sorri com infinita pena
e chorei uma lágrima pequena,
uma lagrimazinha de menino.
A VIDA QUE EU VIVI
Giuseppe Ghiaroni
A vida que eu vivi não foi má, nem foi boa,
nem heróica, nem vil; nem alegre, nem triste;
não servi de libré, nem reinei de coroa,
não vivi de esmolar e nem de espada em riste.
Não espero morrer como alguém que desiste
de um esfôrço infeliz, inteiramente atôa.
Nem espero morrer como quem não perdôa
a perda do esplendor em que a vida consiste.
A vida que eu vivi, tão a mercê de tudo,
não foi a do meu eu manietado e mudo,
debaixo dêsse vão e inútil meio-tom!
Não me julguem, portanto, ao chegar o final.
E não me queiram bem pelo que fiz de bom,
mas não me queiram mal pelo que fiz de mal!
Sonetos
Inéditos do livro "A Máquina de Escrever",
São Paulo: Scortecci,
1997
TERNURA
Giuseppe Ghiaroni
Agora que deixaste em minha vida
esta ternura que ninguém supera,
tu que foste por mim tão iludida,
tão iludida sendo tão sincera!
Agora eu sei que tu, tão preterida,
eras o grande amor que a gente espera.
E: não te conheci, minha querida,
Mas tu sempre soubeste quem eu era.
De bordo do avião em que partiste,
tu não pudeste ver quanto eu sofri.
Todos viram meu pranto, e tu não viste.
Tu não tiveste a glória derradeira
de saber que uma vez chorou por ti
o amor por quem choraste a vida inteira!
INTERMEZZO
Giuseppe Ghiaroni
Um ligeiro intervalo de esperança
foi a nossa escapada da rotina:
cada dia uma glória repentina,
cada noite a euforia da mudança.
Um ligeiro intervalo de esperança
e eu julguei ter achado o ouro e a mina.
Vi no teu rosto aquela luz divina,
voltei a ser poeta e a ser criança.
Foi a nossa embriaguez dos impossíveis,
ilusão de vencer os invencíveis
e de alcançar o que ninguém alcança.
Mas foi bom. Foi tão mais do que mereço,
que hoje, em meu desespero, eu te agradeço
um ligeiro intervalo de esperança!
O MAL MAIOR
Giuseppe Ghiaroni
A princípio eu te vi a tal altura,
que pensei que jamais te alcançaria.
Que doce encanto! — meu olhar dizia.
E meus braços diziam: — Que lonjura!
Depois teu rosto me mostrou ternura.
Beijei a tua boca que fremia
e penetrei no Céu pela heresia.
Penetrei pela porta da loucura!
Hoje que és minha muito mais que um pouco,
eu que devia estar radiante, louco,
sofro de um mal maior e mais profundo.
Pois antes eu sabia que não tinha.
Mas hoje quanto mais penso que és minha,
mais reconheço que és de todo mundo!
PERSISTÊNCIA
Giuseppe Ghiaroni
Quando surgiste alegremente, presa
ao braço protetor de quem te ama,
instalados os dois à mesma mesa
com ar de quem dormiu na mesma cama...
Eu tive o repelão de uma surpresa.
Surpresa que surpresa não se chama.
Mesmo quem nunca viu tua beleza
de há muito já conhece a tua fama.
Eu fui quase feliz naquele instante,
por ser outro, não eu, o teu amante
suspeitoso, intranqüilo, enciumado.
Mas não posso negar que, ainda agora,
tu me possas fazer na mesma hora
quase feliz e quase desgraçado!
TELEFONEMA
Giuseppe Ghiaroni
Não telefono! Não! Não telefono!
Ela não me merece esta atenção!
Posso não trabalhar, perder o sono.
Mas lhe telefonar? Isso é que não!
Terá a sensação de um abandono.
Não diz que é dona do meu coração?
Pois bem! Da mão, ao menos, eu sou dono,
e com ela não faço a ligação!
Olho e espreito o aparelho, mas não disco.
Sinto água nos olhos. Foi um cisco.
Somente um cisco, pois chorar por quê?
Telefonar seria um desabono,
nas chorar é pior. Não telefono!
… Alô! Querida! Como vai você?
BRINQUEDOS
BRINQUEDOS
Giuseppe Ghiaroni
As crianças de hoje não têm medo.
Brincam com tudo que a mãozinha alcança.
Tu brincaste comigo, e eu fui brinquedo.
Eu fui o teu brinquedo de criança.
Para ti fui a farsa; o arremedo,
o grotesco jogral que pula e dança.
Para mim foste o sol do meu degredo,
para mim foste a luz de uma esperança.
Todo brinquedo acaba, acaba um dia
abandonado, desprezado e nu.
Eu fui até feliz em demasia.
Houve até gente que se condoeu
de ver uma criança como tu
com um brinquedo usado como eu!
BOA NOITE, POESIA
Giuseppe Ghiaroni
Recebendo a visita da poesia,
o perplexo poeta quarentão
quase nem conheceu a inspiração,
fazia tanto tempo que não via!
Levantou-se (a mulher ainda dormia),
e desceu sem rumor, rumo ao porão
que era a sua pequena redação,
onde ganhava o pão de cada dia.
Já tinha em mente um verso tão suave!
Antes, porém, fechou a porta à chave,
pensando na tenaz cara-metade.
E gemeu com profundo desalento:
— Eis aí o que faz o casamento.
Lança a poesia à clandestinidade!
EQUILÍBRIO
Giuseppe Ghiaroni
Não me faça gostar em demasia,
que eu não posso viver transfigurado
num investigador, desconfiado
de todo aquele a quem você sorria.
Na idade a que cheguei não ficaria
bem andar nas esquinas, disfarçado
como um colegial apaixonado,
vigiando os seus passos noite e dia.
Não me faça gostar mais que o bastante
para ser seu amigo e seu amante,
sem o pavor desta palavra: fim.
Pois este é certo. E se, gostando pouco,
já tenho medo e estou ficando louco,
se eu gostar muito, que será de mim?
DEDICATÓRIA
Giuseppe Ghiaroni
Dou-te os meus versos sem dizer-te nada
e tu estranhas a
maneira fria.
Uma dedicatória é
desejada
e dar livros sem
ela é uma heresia.
Se é questão de prudência exagerada,
resta o recurso da
diplomacia.
Eu diria, em lugar
de "à minha amada",
"a Fulana de
Tal com simpatia".
Mas não sei escrever-te meia linha
sem gritar que sou
teu, que tu és minha,
que ao te perder eu
morrerei de dor!
Que o meu próximo livro, ao fim da história,
será todo ele uma
dedicatória,
uma dedicatória ao
nosso amor!
EXPERIÊNCIA
Giuseppe Ghiaroni
Aos meus quarenta anos de existência,
com toda a
experiência desta idade,
eu pasmo ao
recordar a impunidade
com que traíste a
minha adolescência.
O papel que fiz eu pela cidade!
Que papel! Tão
mocinho e em decadência!
Cheguei a ter
momentos de demência
e até complexo de
inferioridade!
Ah! Se eu pudesse
ver-te à minha frente,
agora, quarentão
experiente,
com as malícias que já sei de cor…
Eu juro por vinte
anos de saudades,
tu farias as mesmas
crueldades
e eu o mesmo papel,
talvez pior!
SURPRESA
Giuseppe Ghiaroni
Foi pouco amor e muito sofrimento,
muita mágoa e pouquíssima alegria.
Nós dois tentando o nosso aquecimento
numa ternura cada vez mais fria.
Eis por que o nosso relacionamento
não cumpriu nada do que prometia.
Não mantivemos seu prolongamento
por sentimento, mas por teimosia.
Quando você gostou de outro sujeito,
achei até que era um final perfeito,
arrancando-se o mal pela raiz.
Não contava, porém, com a saudade
nem que o fim de uma infelicidade
me pudesse tornar mais infeliz!
DAS DESTINATÁRIAS
Giuseppe Ghiaroni
Todo verso que eu fiz foi um recado
rabiscado entre os lances de algum drama
na fúria de quem ama e quem desama,
muito empolgado ou muito despeitado.
Nem por isso logrei ser mais amado
e muito menos fiz fortuna e fama.
Se eu tivesse passado um telegrama,
quanto papel tinha economizado!
Tanta cartas inúteis e indiscretas.
As mulheres não gostam dos poetas,
embora, às vezes, gostem da poesia.
Nada entenderam as destinatárias,
salvo as que eram universitárias
e acharam erros de ortografia.
POESIA E GENTE
Giuseppe Ghiaroni
Quando às vezes encontro a Poesia,
coisa pouco freqüente ultimamente,
é como se encontrasse algum parente
ou amigo que há séculos não via.
Num abraço de imensa nostalgia,
nos confraternizamos longamente
porque — pensando bem poesia é gente
e — pensando melhor gente é poesia.
Nós paramos num bar ou numa praça
rememorando, enquanto a noite passa,
como a vida passou sem se notar.
E entre as constelações vemos fugir
o que foi o teu jeito de sorrir
e o que foi o meu jeito de sonhar.
OS CORONÉIS
Giuseppe Ghiaroni
Saúdo os coronéis em seus ofícios,
integrados na vida da nação,
seja publicamente, nos comícios,
seja na mais completa solidão.
Sinto orgulho de os ter como patrícios
com o seu abnegado coração
inclinado à renúncia e aos sacrifícios,
sempre estendendo a generosa mão.
Oh, bravos coronéis empertigados,
às vezes vítimas dos debochados,
sempre enfrentando lutas e labutas.
Eu vos entendo, coronéis constantes,
pois eu também, agora como dantes,
sempre gostei de dar dinheiro às putas!
ARREPENDIMENTO
Giuseppe Ghiaroni
À memória de Léo Reisler
Umas vezes tentei ser generoso,
escancarei a bolsa e o coração.
Fui chamado de otário, de vaidoso,
e passei a privar com a ingratidão.
Outras vezes fui parcimonioso,
fechei a bolsa e não abri a mão.
Pão-duro, tive o trato respeitoso
dos sábios que só sabem dizer não.
Hoje eu olho do alto da montanha
de onde tudo se vê, nada se estranha
porque é tarde demais para o futuro.
E do ponto final do itinerário
tenho orgulho de quando fui otário
e vergonha de quando fui pão-duro.
SAUDADE
Giuseppe Ghiaroni
Eu estava sentado na cadeira,
minha velha cadeira de palhinha,
e a saudade chegou tão sorrateira
que eu nem desconfiei quando ela vinha.
Assim que a vi, tão mansa, tão maneira,
entrando pela porta da cozinha,
julguei-a uma lembrança forasteira,
jamais que fosse uma saudade minha.
Só aos pouquinhos a reconheci.
Era tua! eras tu! era de ti,
daquela nossa breve eternidade!
Ficou morando aqui, como ainda mora.
Meu medo agora é que ela vá embora
e me fique a saudade da saudade.
ANÁLISE
Giuseppe Ghiaroni
Hoje eu faço a mim mesmo companhia;
vamos indo eu e eu pelo passeio.
Se é verdade que, às vezes, me chateio,
também me dou momentos de alegria.
Fico olhando as crianças no recreio.
Entro no bar depois do meio-dia.
As seis horas escuto a Ave-Maria,
faço o Pelo Sinal e cambaleio.
Nem por isto me sinto rejeitado:
antes só do que mal acompanhado.
Amor não tenho, amigo já morreu.
Portanto faço análise sozinho.
Nem vou gastar meu rico dinheirinho
com outro mais maluco do que eu.
SONETO A CAMÕES
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Ialmar Pio Schneider
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Majestoso Camões, o teu engenho
aliado ao teu amor e à tua arte,
há de ficar cantando em toda parte
onde ao luso idioma houver empenho !
Eu que versejo humildemente, tenho
em teus sonetos mágico estandarte,
representando o nobre baluarte
que consagrou o teu excelso gênio.
Hoje o verso sem métrica e sem rima
já não levanta da epopéia o mastro,
nem pela forma e suavidade prima;
mas “Os Lusíadas” canta heróico e forte,
o episódio fatal de Inês de Castro:
- a Rainha coroada após a morte !
PÁG. 21 - O TIMONEIRO - CANOAS, 3.8.84