Corpo e Alma do Soneto // O Corpo



O soneto, a exemplo do ser humano, para nos fascinar, terá de existir como um todo homogêneo, composto de corpo e alma.
Somente com a junção desses dois elementos é que o Soneto terá uma vida lúcida e harmônica. Assim imaginava Cruz Filho. Assim pensava o poeta pernambucano (1872-1926) Alf. Castro (Alfredo de Miranda Castro), citado por Cruz Filho. Assim pensamos nós.

O Soneto pode concretizar-se nesta fórmula: "o máximo de perfeição material associado ao máximo de beleza espiritual".

O corpo do Soneto, a nosso ver, é a sua estrutura clássica, sem a qual, simplesmente, não existe. É o requinte material, é a roupagem perfeita, é a contextura plástica.

E a alma é o seu espírito luminoso. Sem ela, haverá, apenas, uma composição depreciada, destituída de qualquer valor literário.
A alma é o pensamento poético, o enlevo da inspiração, a graça da imagem, a riqueza da idéia. É a mensagem transmitida pelo poeta.



O corpo do soneto


Sistema estrófico elevado à mais alta perfeição formal, despontando do brilho das últimas luzes da Idade Média e passando pelos clássicos da Nova Idade e pelas demais escolas literárias que, seguidamente, venceram os séculos, até os nossos dias — o Soneto é constituído por dois quartetos e dois tercetos, perfazendo, assim, quatorze versos. São os "quartettos" e "terzetos" dos italianos.

Ninguém nega serem disciplinadoras as regras do soneto, e aí reside a causa fundamental de sua perenidade. Sob esse aspecto, repetimos palavras acertadas de Paulo Mendes Campos, escritas em "Forma e expressão do Soneto":

"A inteligência se adestra com o difícil, a faculdade de invenção se apura e aparece melhor dentro de condições limitadas; enfim, a convenção da forma excita o prazer de inventar. A liberdade vale mais quando consente a disciplina. Desprezar uma convenção poética é um gesto humano, não é um gesto poético". (....) "A forma é a face visível do conteúdo, como o universo é a face visível do mistério".


Conforme explicamos anteriormente, pelos dois quartetos devem ser distribuídas duas rimas, nada mais que duas rimas, iguais, obrigatórias, podendo variar sua disposição. E, nos dois tercetos, podem ser usadas duas ou três rimas, forçosamente diversas daquelas dos quartetos. Nem seria necessário afirmar-se que não é permitida, em qualquer das estrofes (quadra ou terceto), a utilização de uma só rima. Por exemplo, quatro rimas iguais na primeira quadra, outras quatro rimas iguais na segunda quadra, etc. etc. . . . Jamais, ao que nos conste, se tentou isto, mas, prestigiando o "óbvio ululante" do Nelson Rodrigues, cumprimos o nosso papel de deixar o assunto bem esclarecido. Aliás, o mesmo óbvio nos faz lembrar que a quatorze versos sem rimas, ou mal rimados, não se admite dar o nome de soneto.


As rimas se transportam do primeiro para o segundo quarteto, como também, já mudadas, se transportam do primeiro para o segundo terceto.

Camões escreveu sonetos com quatro e cinco rimas (nos quartetos, claro, apenas duas rimas). Bocage os escreveu com quatro, enquanto Antero, sempre, com cinco. Os parnasianos e simbolistas, em geral, os compunham, também, com cinco rimas. Inclusive Olavo Bilac Petrarca, o poeta italiano que tanto prestígio deu ao soneto, distribuía-lhe as rimas, normalmente, da seguinte maneira:

ABBA ABBA CDC DCD

É, já o registramos, o chamado soneto petrarquiano (o mais clássico).
As rimas, tanto nos quartetos como nos tercetos, aquiescem a variações, desde que obedeçam às formas estruturais consagradas.

Não obstante essas pequenas variações e, até mesmo a despeito de muitas extravagâncias e deformações intentadas contra ele, inutilmente, como apontaremos adiante, "o soneto continua sendo praticado no rigor de suas regras, de sábia disciplina" — diz Mello Nóbrega, que acrescenta:
"O jogo dos consoantes (rimas), mais rígido nos quartetos, e de maior mobilidade nos tercetos, é, na verdade, como que um esqueleto, a estruturar e fixar os lineamentos expressivos. Forma poética fechada, não apenas pelo número de versos, mas pela disposição rímica, em que se fundem os dois períodos correspondentes aos estágios do desenvolvimento temático, o soneto é um milagre de engenho poético. Os mais avançados modernistas ainda compõem sonetos à maneira tradicional; e até os teoristas da renovação do verso, como Lucien Paul Thomas (" Le Vers Moderne", Bruxelas, 1943), abrem exceção reverente para a docte invention italienne".

Mello Nóbrega enfatiza que, "rimando à maneira tradicional, mas adoçando-lhe, inteligentemente, os rigores, Paul Valéry (1871-1945) apresenta suas frases em achados de aliciante e sugestiva melodia que, freqüentemente, se sobrepõe à consonância final, chegando, por vezes, a disfarçar-lhe a presença".


Não há regra determinando o número de sílabas dos versos de um soneto. Mas há uma espécie de acordo tácito, principalmente nas literaturas italiana, espanhola, francesa, portuguesa e brasileira. 'Em geral, os autores dessa composição preferem o decassílabo ou o alexandrino. São os versos que mais se prestam para esse tipo de poesia. Cada um deles está sujeito a exigências e concessões, que vão alinhadas em um capítulo especial deste livro.


Ressalte-se que o decassílabo, na poesia clássica portuguesa, é o verso mais apropriado para o soneto. Com certeza, o mais belo; e Guittone d'Arezzo, estruturador desse poema, já fizera tal recomendação. 

Também, é evidente, fazem-se sonetos com qualquer outro número de sílabas, até mesmo, por extravagância, de uma sílaba apenas (monossílabo). Entretanto, excetuados os de 10 e de 12 sílabas, são mais comuns os de 7 sílabas (heptassílabos).

Chama-se "sonetilho" o soneto cujos versos têm pequeno número de sílabas. O sonetilho que mais se usa é, como se disse, o de heptassílabos, de que foi mestre o poeta B. Lopes, com seus deliciosos cromos. É um verso muito sonoro, utilizado nas canções populares, sendo, também, o verso exclusivo da trova atual. Tem grande maleabilidade, inclusive pela sua acentuação incerta, que enseja maravilhosa variedade de ritmos.

Não obstante ter, muitas vezes, sua mensagem voltada para outros gêneros poéticos, o soneto é, repetimos, uma composição lírica por excelência.
Quem diz lirismo, diz amor; quem fala sobre o amor, engrandece a mulher. E Diderot aconselhava: — "Quem escrever a respeito de mulheres, deve molhar a pena nas cores do arco-íris e secar-lhe a tinta com a poeira doirada das borboletas".

A denominação "lírica" explica-se e justifica-se porque as peças do gênero, na Grécia, eram cantadas e acompanhadas pelo som da lira. Isto não invalida a verdade indiscutível de que, antes da civilização grega, já era exercitado esse estilo de poesia.
Muitos apontam o soneto como a mais difícil das formas de poesia. Não se pode ir tão longe. Um soneto perfeito, isto sim, é, de fato, muito difícil de se conseguir.

O poeta, naturalmente, aspira a perfeição, e esse desejo inflamado, esse sonho impossível, ninguém o cobiçou mais do que Olavo Bilac, o maior expoente do Soneto brasileiro:


PERFEIÇÃO

Nunca entrarei jamais o teu recinto:
na sedução e no fulgor que exalas,
ficas vedada, num radiante cinto
de riquezas, de gozos e de galas.

Amo-te, cobiçando-te... E, faminto,
adivinho o esplendor das tuas salas,
e todo o aroma dos teus parques sinto,
e ouço a música e o sonho em que te embalas.

Eternamente ao meu olhar pompeias,
e olho-te em vão, maravilhosa e bela,
adarvada de altíssimas ameias.

E à noite, à luz dos astros, a horas mortas,
rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!
como um bárbaro uivando às tuas portas!


A arte poética vale mais pelo seu conteúdo, mas tem muito do trabalho paciente do artesão.
Horácio queria que os poetas colocassem na bigorna os versos defeituosos, para limá-los.

Dizia Vitor Hugo:
"Le poète est ciseleur,
le ciseleur est poète... 

Théophile Gautier, com o seu culto da "arte pela arte", pregou:
"Sculpte, lime, cisèle...

Bilac imitou-o:
"Torce, aprimora, alteia, lima
a frase: e, enfim,
no verso de ouro engasta a rima,
como um rubim".


E Martins Fontes, repisando Bilac:
"Realça os contornos, aprimora e lima...

A perfeição é impossível, não só no soneto, mas em tudo, na vida. Perfeito, só Deus!
O próprio Bilac, o inimitável Bilac, reconhece isto, no soneto transcrito linhas atrás.

Felizmente, encontramos, a cada passo, belíssimos sonetos. E isto já é um bálsamo para os espíritos que vivem no clima do sentimento.

Ao contrário do que muitos pensam, o soneto bem manejado não é, pois, excessivamente rígido; e, se apresenta dificuldades, não são elas intransponíveis. Não é impraticável, nem anacrônico, senão para os falsos poetas. Estes, sim, são os piores inimigos do soneto, porque, despidos de conhecimentos relativos às suas regras, acabam por desfigurá-lo, reduzindo-o à mediocridade.

O soneto pode ser, quando muito, no dizer de Gonçalves Crespo, um "animal bravio" que um bom domador, realmente poeta, pode perfeitamente "domesticar". Basta que se tenha longa e íntima convivência com suas normas.


Um soneto bem composto tem medidas geométricas, regulares. Mas, os cristais, igualmente, as têm. 
Ele exige um trabalho artesanal habilidoso. Contudo, a forma não prende o pensamento, assim como a rigidez não impede o equilíbrio, se houver inteligência na confecção do soneto. Nesse caso, o poeta tem muitos recursos para contornar as dificuldades.

Pelos preceitos firmados na tradição, o soneto deve manter fiel e severa obediência à sua disciplina estrutural: duas rimas nos quartetos; a pausa, logo após; duas ou três rimas nos tercetos; o ritmo perfeito; música, beleza e harmonia nos versos, sem qualquer laivo de insipidez; a concatenação das idéias, que faz vibrar as imagens; a síntese necessária, que valoriza o poema; a força de comunicação da mensagem; a vocação do poeta, sem a qual não conseguirá um poema instantâneo, imaginoso, penetrante; e um final feliz, fazendo, entretanto, com que a chamada "chave de ouro" (décimo-quarto verso) não seja um exagero, a ponto de parecer antecipadamente arquitetado. Sobre a "chave de ouro", nos estenderemos logo adiante.

A estrutura do soneto lembra uma construção artística. Existe para dar unidade ao poema, como expressão intelectual. Na feitura do projeto, realiza-se uma ascensão dramática de caráter subjetivo.
Os oito primeiros versos expõem a idéia: e a parte estática. Os seis restantes constituem o desfecho: é a parte dinâmica. As próprias rimas, iguais nos quartetos e iguais nos tercetos, mas diferentes entre si, concorrem para essa progressão, sem prejudicar a integração dos pensamentos e a beleza do ritmo. O gosto estético do metrificador se assemelha ao do estatuário e do ourives.

José Maria de Herédia, parnasiano, foi, segundo consenso, o mais perfeito sonetista de todos os tempos. Escreveu um único livro de poesias, "Os Troféus", incluindo nele 122 poemas, dos quais 118 sonetos.

Ao analisar, esmiuçadamente, a morfologia e a psicologia de um dos grandes sonetos desse poeta, "Sur l'Othrys" ("aliás, inspirado nos últimos hexâmetros da primeira Écloga de Virgílio"), o grande poeta e tratadista francês Augusto Dorchain escreveu:

"Nos dois quartetos, trata-se de fazer nascer e crescer a expectativa; no primeiro terceto, de ligar a expectativa à marcha para a solução, que se sente aproximar; no último terceto, de dar à expectativa desfecho que, ao mesmo tempo, dê prazer ao espírito e lhe proporcione satisfação pela lógica e surpresa pelo imprevisto". 
A reflexão de Dorchain, em relação à técnica e à mensagem maravilhosa desse soneto, está muito bem retratada por Cruz Filho, em seu ensaio "O Soneto" (1961), e por Severino Montenegro, em artigo publicado no " Jornal do Brasil", edição de 10 de outubro de 1965, sob o título "O Soneto — Poema Dramático".

Francisco Freire, português, em suas "Lições Elementares de Poética Nacional", completa o pensamento de Dorchain, em relação aos quartetos: ... "a cada uma das quatro estâncias do soneto deve corresponder uma divisão sensível, do pensamento, e tanto melhor se ela se manifestar igualmente de dois em dois versos do quarteto".

Rojas Garrido, colombiano, viu, nas quatro estrofes de um soneto, a juventude, a idade adulta, a velhice e a morte. Manuel Machado, espanhol, nelas divisou a infância, a mocidade, a madureza e a velhice.

Manuel Bandeira, que cedo abandonou o soneto, para abraçar formas poéticas menos rígidas, não lhe moveu, entretanto, uma guerra aberta, nem mesmo uma guerra surda. Ao contrário, teve sempre para com ele carinho e respeito. Escreveu: 
 “Síntese harmoniosa da quadra, estrofe popular, e do terceto, estrofe culta, forma que lembra, em suas duas quadras e seus dois tercetos, a estrutura do coração humano com as suas duas aurículas e os seus dois ventrículos — o soneto é, nos grandes modelos, uma forma eminentemente subjetiva".


Palavras de Amadeu Amaral em "Um soneto de Bilac" (São Paulo, 1920):
"Há muita gente que ainda supõe que o poeta tortura as idéias na grelha dos versos. Tal coisa só se dá com os maus poetas.
E acrescentemos que nada se perde com isso, pois só tortura as suas idéias... quem não as tem. O verdadeiro poeta, longe de torturá-las, desenvolve-as e apura-as admiravelmente na maravilhosa retorta da forma. Foi o que fez Bilac".

Lembra Agostinho de Campos:
"Como toda a arte, assim também é a arte do Soneto. As regras são para o verdadeiro artista pontos de partida. O ponto de chegada chama-se obra-prima".

O soneto que classificaríamos de "excelente" (já não dizemos perfeito) não está ao alcance de todos os que procuram fazê-lo, tanto que, dentre os milhões ou bilhões deles, perpetrados em toda parte, apenas alguns centos podem ser considerados obras-primas do gênero. Ao artista não basta conhecer a mecânica do poema. Precisa ter talento. Precisa ter capacidade.

O soneto não deve ser, simplesmente, uma obra maquinal. Por isso, merece censura o método que teria sido adotado, algumas vezes, pelo próprio Herédia. Conta-se que, entre os seus papéis, foi encontrado um documento que o colocou em má situação: um rascunho do soneto "L'autodafé", em que apareciam os tercetos já compostos e as quadras ainda por fazer, mas tendo escritas as palavras — rimas.

O erudito francês Padre Gilles Ménage (1613-1692), gracejando ou não, dizia que seu contemporâneo Dulot (poeta que inventou ou, pelo menos, pôs em moda as rimas emparelhadas) gabava-se de haver preparado todas as rimas para mais de 300 sonetos. Assim, seria, depois, no seu entender, mais fácil escrever os versos.

Positivamente, não pode ser este o melhor método para se escrever um soneto, muito embora qualquer método seja válido, desde que o poeta possua arte, inspiração, argúcia e, sobretudo, faculdade inventiva.







 (Das páginas 101 a 107 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)

7 comentários:

  1. NÃO TENHO PALAVRAS PARA AGRADECER O QUANTO ESSE EXCERTO ME AJUDOU! DE TODO O MEU SER EU AGRADEÇO POR ESSE TEXTO! ETERNAMENTE GRATO!

    Helder D'Araújo (escritor)

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  2. por favor, me adicione em seu Facebook. meu endereço: https://www.facebook.com/profile.php?id=100011484306451

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  3. Amei esse texto pois sou um adepto do soneto que pena que tenho vários e não tenho condição de publicá-lo.

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    1. Fale comigo que te ajudo a publicar. Sou representante de uma editora.

      E-mail: aces4r@gmail.com

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  4. Que texto esplêndido! o autor está de parabéns não só pelo texto, mas pela página inteira. Tudo aqui, muito agradável, explicativo e entusiástico. Represento um grupo de Sonetistas Clássicos e costumo, desde sempre, ir à busca de "algo" sobre soneto, versificação, ritmos no verso e conexos, que possa acrescentar no meu aprendizado, pela fulgurante e infinita estrada do Conhecimento. Mais uma vez, minhas sinceras congratulações pelo empolgante trabalho! - RICARDO CAMACHO - Contato: rscamachorc@gmail.com

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