"Sonetos Curiosos"


Somos sabedores de certos aspectos emprestados ao soneto, fora de sua estrutura clássica e de seus cânones tradicionais.
Não nos referimos às simples e inofensivas demonstrações de virtuosismo, mas a deturpações, extravagâncias e excentricidades, apresentações complicadas de verdadeiros quebra-cabeças, sonetos labirínticos, etc. Muitas deformações que, embora não mereçam, de nossa parte, reprovação total, deixam, todavia, a desejar, se quisermos respeitar as finalidades, principalmente líricas, para que, tudo o indica, foi criado, ou, pelo menos, recriado, esse poema de forma fixa.

Abaixo, oferecemos aos nossos leitores, alguns sonetos curiosos, que põem em evidência a habilidade e o talento dos poetas, sem alterar a disposição normal de sua estrutura e sem ferir a estética, a musicalidade, o ritmo, a beleza artística da composição poética. Referimo-nos a sonetos que ostentam singularidades e caprichos interessantes, sonetos que colocam, em relevo, o gosto por coisas raras e originais, sem agredir o bom senso.

Na parte final, apresentamos tipos de "sonetos raramente publicados", como: um "soneto" absurdo de apenas 14 letras, sonetos de uma, duas, três, quatro, cinco (redondilha menor), seis, sete (este, mais usado, em redondilha maior), oito, nove e onze sílabas. Como se vê, estão ausentes os de dez e os de doze sílabas, os mais comuns na poesia de nossa língua. Como favoritos do Soneto, o decassílabo e o alexandrino. 




CONTA E TEMPO
Laurindo Rabelo

Deus pede estrita conta de meu tempo; 
é forçoso do tempo já dar conta;
mas como dar, sem tempo, tanta conta, 
eu que gastei, sem conta, tanto tempo? 
  
Para ter minha conta feita a tempo,
dado me foi bem tempo e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta;
quero hoje fazer conta, e falta tempo. 
  
Oh vós, que tendes tempo sem ter conta, 
não gasteis vosso tempo em passatempo, 
cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta. 

Ah! Se aqueles que contam com seu tempo
fizessem desse tempo alguma conta,
não choravam, como eu, o não ter tempo...



SESSENTA MUSAS
Rogaciano Leite

Respondam-me, afinal: Nilda, Suzete, 
Nenen, Guiomar, Eulália, Mozarina, 
Célia, Dora. Socorro, Amilcarina, 
Gilca, Norma, Rosália, Dulce, Ivete; 
  
Creusa, Ivone, Ceci, Lourdes, Aríete, 
Nisa, Ofélia, Masé, Lindalva, Nina, 
Lúcia, Rita, Marli, Sônia, Marina, 
Vilma, Zezé, Luci, Neusa, Ivonete; 
  
Clarisse, Adélia, Auri, Zélia, Marleide,
Anita, Zilma, Edi, Laurita, Neide,
Maura, Carmen, Mimi, Olga, lima, Talma; 
  
Denise, Helena, Itália, Hilda, Helenice,
Maristela, Zizi, Beatriz e Alice...
— Que é que vocês fizeram de minha alma? 



MINHA TERRA
Cesídio Ambrogi
(Soneto sem verbos)

Meu vilarejo — um cromo estilizado:
O largo da Matriz. Uma palmeira,
a cadeia sem preso, nem soldado.
Calma em tudo. Silêncio. Pasmaceira.

Andorinhas em bando no ar lavado.
O rio... O campo além de uma porteira.
Um velho casarão acaçapado...
— Nossa casa tranqüila e hospitaleira.

O Cruzeiro lá em cima, em plena serra,
braços erguidos para a minha terra...
E eu criança e feliz. Que bela idade!

Hoje, porém, meu Deus, quanta emoção!
Do meu peito no triste mangueirão,
cavo e soturno, o aboio da saudade!...



SENSAÇÃO
José Rodrigues Pinagé

(Todas as palavras do soneto abaixo são sibilantes. Mas, neste caso, a dissonância é apenas aparente, porque os versos, assim armados de propósito e com habilidade, adquirem expressões sugestivas
 e até agradáveis) 


Sério e saudoso, o sertanejo sente sede
e, senhor da selva, saboreia 
sulco silvestre e suave, que serpeia
sobre o solo, a seguir, serenamente. 
  
Sempre singelo e sonhador, semeia! 
Seu semblante cismático e silente 
sangra ao Sol... Some a sápida semente
saginada, que o sol seca e saqueia... 
  
Sopro de seca no sertão sibila, 
sacode a selva em sensações supremas,
sinistramente, em súbitos solfejos! 
  
Sobre a serra sem sombra o sol cintila! 
Segue-se o soluçar das seriemas, 
sepultando em saudade os sertanejos!...




GRÉCIA ETERNAL
Pdre. Manoel Albuquerque

Orfeu, Homero, Píndaro, Pitágoras, 
Tales, Platão, Anaximandro, Sócrates, 
Aristóteles, Fídias, Anaxágoras, 
Sólon, Licurgo, Péricles, Demócrates, 

Ésquilo, Esópo, Heródoto, Protágoras, 
Epaminondas, Alexandre, Isócrates, 
Arquimedes, Euclides, Zêuxis, Diágoras, 
Leônidas, Temístocles, Hipócrates, 
  
Helena, Aspásia, Péro, Anacreonte, 
Cleto, Aristarco - o Heliótropo de Samos -,
Demóstenes, Plutarco, Xenofonte...

Estes são nomes de astros em rebrilhos; 
esta é a Grécia Eternal que nós amamos; 
esta é a Pátria na Glória dos seus filhos!




ENTÃO SOMENTE
Guimaraens Passos

(O último verso, de dez sílabas aceitavelmente forçadas,  é constituído de apenas uma palavra)


Viste-me, e eu era solitário e triste, 
os meus dias de sol, órfão, passava; 
e se um sorriso alguma vez pairava 
nos meus lábios, Claés, tu nunca o viste... 
  
Porque, tão passageiro iluminava 
o meu semblante um riso, que se existe 
o gozo, o próprio gozo que fruíste, 
nunca a minha alma viu-se dele escrava. 
  
Amei-te quando tu também, sofreste 
quando me deste amor, e não somente
amor, mas quando o teu pesar me deste. 
  
Quando me deste o pranto teu, veemente; 
quando o teu peito em lágrimas verteste 
misericordiosissimamente.



CANTILENA
Olavo Bilac

(Cada verso - que tem 14 sílabas - é composto de três quadrissílabos, sem elisões; e o poeta repete, nas rimas, quatro vezes, a palavra "esperança". Essas singularidades lembram, de fato, uma cantilena)


Quando as estrelas surgem na tarde, surge a esperança. 
Toda alma triste no seu desgosto sonha um Messias: 
quem sabe? o acaso, na sorte esquiva, traz a mudança
e enche de mundos as existências que eram vazias! 
  
Quando as estrelas brilham mais vivas, brilha a esperança. 
Os olhos fulgem; loucas, ensaiam as asas frias: 
tantos amores há pela terra, que a mão alcança! 
E há tantos astros, com outras vidas, para outros dias! 
  
Mas, de asas fracas, baixando os olhos, o sonho cansa; 
no céu e na alma, cerram-se as brumas, gelam as luzes: 
quando as estrelas tremem de frio, treme a esperança. . 
  
Tempo, o delírio da mocidade não reproduzes! 
Dorme o passado: quantas saudades, e quantas cruzes!
Quando as estrelas morrem na aurora, morre a esperança...



DUPLO SONETO
Humberto Lyrio


Curiosidade: - Lidos até antes das barras, os versos compõem soneto decassílabo. Lidos em sua totalidade, compõem soneto alexandrino. Tanto o decassílabo, como o alexandrino, obedecem a todas as exigências do verdadeiro soneto, inclusive, logicamente, as rimas. É mais, um trabalho de ourivesaria. 


Um decassílabo e outro alexandrino, / agora, 
sonetos recebi pelo Correio; / e como 
o tempo, a bem dizer, me é pequenino, / os somo 
e respondo num só, neste permeio / embora. 
  
Lira que, para a empresa, em vão afino, / tomo, 
sem o tom encontrar! - Onde, em bom veio, / aflora 
o ouro da inspiração? Onde o divino / assomo 
ou o humano esplendor? Baldado anseio, / a aurora 
  
já me desdoura a fronte. Em fria prata, / apenas 
se banha o meu cabelo, embora, ardente / e infinda 
a lava do vulcão, que o peito acata / e encenas   

com noite de Natal, quando, no Oriente, / linda 
surge a Estrela do Amor e em luz desata, / plenas, 
as antigas canções que estão na gente / ainda.



DIÁLOGO
 (construído por Lima Filho)

O soneto abaixo é da coleção de sonetos organizada por Nazir Félix. O artesão foi Lima Filho, que,  pacientemente, organizou, em 1921, o "centão" com versos dos seguintes poetas: 1º verso, Hermes Fontes,  "Sonho Morto"; 2º - Rodolfo Barcelos, "Estimulo"; 3º - Almeida Lins, "O Poeta e a Humanidade";  4º Carlos Maul, "Alegria"; 5º - Manoel do Carmo, "De branco"; 6º - Emilio de Menezes, "Única";  7º  - Goulart de Andrade, "Região Maldita"; 8º - Olavo Bilac, "Estâncias III"; 9º - Antonio Tôrres,  "Aspirações IV"; 10º - Alphonsus de Guimaraens, "Supremus Dolor"; 11º - Alberto de Oliveira, "Só";  12º - Cassiano Ricardo, "Camélia"; 13º - Lindolfo Xavier, "Visões do Mar"; 14º - Augusto de Lima, "O laranjal":



Morte Libertadora, é assim que te suponho: 
com um sorriso a brincar na face envelhecida.
Nas batalhas letais, nas cizânias da vida, 
deixando-te viver no milagre de um sonho!   

Quando tu vens de branco, assim, toda vestida, 
agora que a teus pés todo o meu ser deponho... 
Nesta mudez eterna, em silêncio medonho, 
hão de o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida!   

Que seja sempre o Amor versátil não profundo, 
alheio ao mundo, alheio a tudo quanto existe, 
sem o incômodo olhar dos homens e do mundo...  

Vejo-te com a visão ensombrada de um triste,
e, como dois troféus do mais alto valor,
juntos, teu nome e o meu, num só nome de Amor!





Sonetos de silabação incomum
— Autores Diversos —



"SONETO" DE 14 LETRAS 
(Jacy Pacheco)

 A 
ó
  s   


a
 v 
 ó 
 s  


ó
  s   


s
ó
s.






Jacy Pacheco
("Soneto" de 1 sílaba) 

Sem 
chão
nem 
 grão,   


quem 
não 
tem
pão 


é
 o 
Jó: 


pé 
no
pó.





PRECE
Jacy Pacheco
("Soneto" de 2 sílabas) 

Tão grave
tão pia, 
suave
cicia   

a Ave
Maria 
na nave 
vazia...  

E tece
a prece 
em véu.

E mansa 
alcança
o céu.





MARGARIDA
Fernando Lial
("Soneto" de 3 sílabas)
  
Margarida!
Teu Jesus
nessa cruz
ressequida

traz perdida
toda luz
que reluz
luz da vida.

Ouve-me isto:
deixa Cristo
deixa a dor;

és formosa, 
vive e goza,
crê no amor.



FONTE
Leonardo Henke
("Soneto" de 4 sílabas) 

Do alto do monte,
em borborinho,
desliza a fonte,
num torvelinho.

Vem de mansinho
e ali defronte,
por sob a ponte
corta o caminho

Fonte! Ai de mim!
Quem dera, assim
poder cantar!...

Cantar na serra
de minha terra...
Morrer no mar!



"SONETO" SEM FÉ
Miguel Russowsky
("Soneto" de 5 sílabas) 

Já não me envergonho, 
são outros costumes, 
quem vive de sonho 
recolhe azedumes; 

vegeto, tristonho, 
não amo por ciúmes,
 e afogo — suponho —
meus ais e meus lumes. 

Duvido de tudo. 
O empenho me falha,
 mas não me transmudo.   

Se Parca trabalha
sem preces, ajudo;
fabrico a mortalha.



IRACEMA
Leonardo Henke
("Soneto" de 6 sílabas)

Silencioso, na augusta 
clareira de um atalho, 
o índio, junto a um pau-d'alho,
a flecha do arco ajusta.  

Súbito, estala um galho. 
O pássaro se assusta,
e, atenta, a cobra susta 
os guizos do chocalho.  

Esvoaça a juriti, 
e, à meia-luz do ambiente,
como no antigo poema, 

aos olhos de Poti 
surge, festivamente,
o vulto de Iracema.



O GATO
 Maranhão Sobrinho
("Soneto" de 7 sílabas) 

Enquanto mamãe Chiquinha
no quarto o caçula embala 
com os contos da Carochinha, 
os dois namoram na sala. 

— "Tu não te zangas, Corinha, 
se eu te beijar? Anda, fala!" 
— "Não sei, não," diz-lhe a priminha 
e um beijo bem longo estala.  

A mãe, que, ao menor ruído, 
se assusta, pergunta: - "Cora, 
que foi isto?" e atenta o ouvido.  

Diz-lhe a filha que a escutou: 
— "Não foi nada, não, senhora, 
foi o gato que espirrou!"



CONFORMISMO
Jacy Pacheco
("Soneto" de 8 sílabas)

Lembrar é bom... Já não me abraso
ao suscitar recordações: 
glórias colhidas ao acaso 
e as mágoas, Vida, que me impões! 

Uns me trataram com descaso, 
ungiram-me outros de atenções. 
E mergulhei no meu ocaso 
de frios sonhos e paixões...   

Lembrar, após longa jornada... 
Sustar um pouco a caminhada. 
revendo a etapa percorrida... 

Lembrar é bom.., deixando em paz
glórias e mágoas para trás,
para aceitar melhor a vida.



O ATEU
Jacy Pacheco
("Soneto" de 9 sílabas) 

Era médico e jovem. Dizia
impropérios ao Deus que adoramos: 
— Terra e mar, sol e sal, penedia, 
vales, rios, e peixes, e ramos,  

são produtos do acaso. Eu queria
defrontá-lo onde está, onde estamos.
Se existisse, por certo O veria.
Ora, Deus! Na ciência creiámos!   

Mas, um dia, se viu a tratar
de seu filho... Que esforço gigante! 
Tudo fez na aflição de o salvar!  

E, prevendo-lhe o último adeus, 
o doutor, a buscar céu distante,
suplicou: — Ajudai-me, meu Deus! 



LIRA DA SAUDADE
Manoel Fernandes Filho
(Soneto de 11 sílabas)

Desejo, na lira saudosa, cantar
os nomes e os manes, por mim, venerados;
o lume caseiro, mais puro, a brilhar;
os marcos da Estirpe, em meu peito gravados! 

Que possa esta frauta, esta avena, lembrar
da mãe extremosa, a vigília e os cuidados;
do pai, o comando e os encantos do lar;
irmãos, tios, primos, sobrinhos, cunhados!

Movido, tão só, pelo amor e a saudade,
espero, fiel, toda rusticidade
na tela, pintar, com sonora emoção!

Aspiro à pureza e à verdade atingir,
narrando, qual sonho, este meu existir,
abrindo a vós todos o meu coração!








(Das páginas 831 a 842 de "O Maravilhoso Mundo do Soneto", de Vasco de Castro Lima)



3 comentários:

  1. Muito bom ! Maravilhoso trabalho o seu, de disponibilizar essas verdadeiras preciosidades da excelente obra de Vasco de Castro Nunes. Parabéns ! ! ! !

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  2. Simplesmente m-a-r-a-v-i-l-h-a-d-a!!!!

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  3. SONETO DE AGRADECIMENTO


    Não sou
    Poeta
    mas sei que a
    Poesia existe
    *
    Ela é eterna e imortal
    porque é Amor
    e quando há Amor
    há Poesia
    *
    Ela vive na beleza do olhar de quem a escreve
    e no olhar de quem a lê e a sente
    também está presente nessa humilde tentativa de escrever um Soneto
    *
    Apenas para agradecer-te
    por esse sublime trabalho
    de exaltar e divulgar a Poesia!

    (Michelle Vieira)

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