Tentativa de Prefácio


Por João Rangel Coelho, Juiz de Fora, MG, 1897


Ao apreciarmos, a convite do autor, esta obra notável, carregada de densidade crítica, opulentada de conteúdo cultural' e repassada de substância etérea, caímos na conta de nossas limitações intelectuais ante a magnitude da tarefa, que é relevante e primordial. Para correspondermos, porém, à honra que nos foi cometida, ousamos, do fundo de nossa obscuridade, apregoar, alto e bom som, numa tentativa de prefácio, que este livro é o mais completo que nunca se escreveu sobre o Soneto. O mais completo e o mais profundo. Não há em língua portuguesa e, mesmo, em qualquer das línguas novi-latinas, algo que, no assunto, se lhe equipare.

Com impressionante clareza de exposição, proclama a vitalidade do Soneto, esmiuçando-o em todos os sentidos — nas origens, na história, na estrutura, nos imponderáveis arcanos e no lirismo que encerra — dentro de uma colaboração construtiva, que se apoia no equilíbrio, na consonância e no bom gosto.

É mais uma criação do que uma produção. É livro não só realizado, mas, sobretudo, composto, segundo a diferença que Álvaro Lins estabelece, literariamente, entre os dois termos. Elaborado, através de vigorosa penetração crítica, avulta pela linguagem aprimorada, pela cultura e pelo amor à realidade.

Vasco de Castro Lima, com a força interior do seu estilo e a paixão pelo Soneto, faz deste livro o companheiro inseparável das criaturas sensíveis. E, como se não bastasse apenas isso, ao lado das transcendentes aptidões literárias, o estilista de "O Mundo Maravilhoso do Soneto" se destaca, também, como varão de têmpera inquebrantável, que encerra, em si, a consistência monolítica dos homens de bem, dando-nos a lembrar, pela seriedade de historiador e pela austeridade moral, a figura tutelar de Alexandre Herculano.

Como o solitário de Val-de-Lobos, Vasco de Castro Lima é de absoluta fidelidade ao passado. Nos comentários, de fina lucidez e de intenso brilhantismo, esbanja, perdulariamente, turbilhões de argumentos, que convencem, de documentos, que impressionam, de conceitos, que fazem tumultuar, em seu conjunto, todos os frêmitos, todas as vibrações, todas as surpresas, com que a voz da Beleza e da Verdade fala ao espírito deslumbrado do leitor. E o espírito do leitor deslumbrado fica — vaso de cristal finíssimo — todo irisado pelas refrações de tantas maravilhas...

Essas maravilhas, desparze-as quem as hauriu, com o leite materno, nas claras alvoradas da existência, na delícia dos pagos natais, nos dias longínquos que já se foram e que, hoje, se tornaram apenas saudade...
É lá no prado verdejante da infância que as sementes da alegria, da generosidade e da esperança germinam, para rebentar, mais tarde, em frutos de abnegação, de trabalho e de grandeza.
Nabuco dizia que "os primeiros oito anos de vida foram, em certo sentido, os de sua formação, instintiva e moral, definitiva..." 

Perfilhando essa confissão, temos de convir que há tão completa concordância entre Vasco de Castro Lima e sua obra que, para falar de ambos, só os gregos poderiam fazê-lo, com o vocábulo biofonia, que transcende à biografia comum. O vocábulo, revalidando a afirmativa de Nabuco, exige nos reportemos às raízes telúricas do indivíduo. Num rápido exame retrospectivo das virtudes de Vasco de Castro Lima, verificamos que, pela origem, pela formação, pelo ambiente amável em que se desenvolveu, confirma, com este grande livro, aquela definição de Ruskin: "Só urna vida de influências felizes seria capaz de produzir coisas belas".

Como de um expoente do patriciado lusitano disse Augusto de Castro, Vasco de Castro Lima nasceu com todos os privilégios — os do berço, da educação e do talento.
Por ser um príncipe do espírito e uma das mais nobres inteligências do nosso tempo, "fidalgo entre os poetas e poeta entre os fidalgos", possui a graça penetrante de fazer da sua convivência literária um prodígio de percepção do belo e de contágio estético. É um semeador de harmonias. Por onde quer que vá, as suas sementeiras são fecundas.


Andanças de um irrequieto

Descendente daquela velha aristocracia dos velhos tempos imperiais, em que a "gentry" rural dos barões e dos viscondes viria a arruinar-se com a abolição do elemento servil — deixou, criança ainda, a sua Lavrinhas natal e foi levado para a estremecida Cruzeiro, onde se lhe deslizou a infância, se lhe emplumaram os primeiros ideais da juventude e recebeu na personalidade os relevos inconfundíveis que a caracterizam. Depois, esporeado talvez pelo bandeirismo dos seus maiores, rumou para  a “Minas do lume e do pão", onde se deixou penetrar daquela gostosa autenticidade mineira, feita de "continuidade, de fidelidade e de sobriedade".

Ali, escolheu a terna companheira, mimosa flor que lhe perfumou de bondade e de beleza a doçura do lar. Sob a influência da importância central com que Minas considera a família (ó, "a tradicional família mineira!"...), e, sob o sortilégio do espírito sideral daquela que elegera no pleito do coração, afeiçoou-se ao habitat mineiro, conciliando-o com o seu paulistismo, a ponto de suporem alguns que, "paulista há quatrocentos anos", se tornou mineiro para a eternidade. Tudo ilusão, tudo engano de observadores superficiais.

Essa eternidade mineira esboroa-se diante de um mundo reminiscente, porque, se "o menino é o pai do homem", como o queria Nabuco, é lá do âmago da sua meninice que lhe sobe essa revoada de sonhos magníficos, cristalizados neste livro sem igual — bíblia sagrada do Soneto.

Seu amor à tradição poética e a sutileza de suas explanações se vinculam à amorável Cruzeiro, que o acalentou no regaço benfazejo e lhe perfumou os dias límpidos da mocidade na caçoula cheia de ilusões.


"Pátria pequena"

Por isso mesmo, ante a Cruzeiro, que se dilui na distância com os murmúrios de seu anseio e de seu regozijo, Vasco de Castro Lima lembra, emocionado, os milagres da fé antiga, os milagres puros e matinais de outros tempos... Tempos que trazem à sua inquietação sentimental um rumor goetheano de verdade e poesia, cheio das ressonâncias mais leves, das ressonâncias remotas, que lhe fazem bimbalhar no íntimo da alma aqueles sinos da "cidade submersa", que Renan evocou com emotiva suavidade.

A vida, na quietude da província, era transparente como uns olhos de criança, desde o encantamento virginal das madrugadas até a rósea miragem dos crepúsculos. Era simples e mansa. Mansa e simples assim, não tinha ambições inconfessáveis — e os corações, repletos de otimismo, despetalavam-se, meigos, naturalmente, como as flores de um jardim.
Em tão lindo cenário de aquarela, o artífice de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", como num sonho de Raul de Leoni, "bem criança ainda e já possuindo a sensibilidade evocadora de um poeta de símbolos diversos", passava a noite em êxtase suspenso, com "os pequeninos olhos deslumbrados, o olhar perdido lá no azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno dos eternos espaços constelados"...
O céu, então, se entornava sobre ele, como o cálice de um lírio, enluarado de alvuras sorridentes.

... Hoje, ainda, distante da doce Cruzeiro, a "pátria pequena" tão querida, sua alma, acicatada por aquele "pungir de acerbo espinho", que é a saudade, se volta toda, em romaria nostálgica, para aqueles tempos povoados de sombras tão amáveis... E lá vai ela, a sua alma, de mãos dadas com a imaginação e com a realidade. E a imaginação é companheira caprichosa que não tem pressa em abandoná-lo no turbilhão da vida — e o leva, pela mão de fada, aos caminhos de outrora, por onde passeia a sua nostalgia...

Ó, a Cruzeiro da sua nostalgia! Sua alma ficou lá longe, na quentura borralheira daqueles casarões de salas imensas, de quartos enormes, com santos veneráveis nas paredes brancas. Ficou lá nas plagas cruzeirenses, nos pomares cercados de muros com cacos de vidro, onde a sombra escorria das árvores fartas com a peso sutil de um fruto fresquinho, cheirando a doçura. Sua alma ficou lá longe, nas moitas de trapoerabas da sua infância, debaixo das ingazeiras à margem do Paraíba, junto às mangueiras de sombras silenciosas, perto dos bambuais, em cujos colmos traçava, a canivete, as iniciais da sua Julieta piraquara. Ficou lá bem longe, "nas festas anuais de Santa Cruz", "nas quermesses joviais da igreja velha", "nas serestas das noites legendárias", "nos dobrados da famosíssima 'União' ", "nas festas de São João na dona Tita". Sua, alma ficou na Cruzeiro de antanho, ficou pregada na distância, nos fordecos de bigode, no cineminha mudo, na aventura do primeiro cigarro, fumado às escondidas, na gandaia dos banhos de rio, na gostosura dos namoros de portão, nos tênues fantasmas da sua meninice, nos gênios alados da sua adolescência, nas quimeras esplêndidas da sua juventude...

... E já que a onipresente Cruzeiro, com aquele "barro do município", de que falava Ribeiro Couto, está no seu sangue, na sua carne, na sua inteligência, nas recordações mais risonhas da sua vida, é natural que o "O Mundo Maravilhoso do Soneto" seja, antes de tudo, a expressão desse "barro do município".
Assim, o autor, com o gosto sensual da forma, impregnado da poesia haurida na "pátria pequena", dá largas aos devaneios, abordoando, porém, seus julgamentos na veracidade histórica e na mais cerrada documentação que o Soneto poderia encontrar entre os que lhe devotam verdadeiro culto.


O enamorado do Soneto

Vasco de Castro Lima, alma cortada de relâmpagos poéticos, depois de se tornar impecável burilador de sonetos, olhou para o gênero, em que é mestre, com olhos de pesquisador e nos deu, num trabalho de comovida ternura, de rigorosa precisão crítica, de preciosidade encantadora, "o resultado de sua paciente e demorada pesquisa". São observações de excepcional valor, ofertadas com o encanto que faz do livro um missal de singelezas e maviosidades. 

Enternecido, leva sua nau garbosa pelos mares da Harmonia e da Perfeição e, estudando o “Soneto ilustrado por sonetos”, descerra aos nossos olhos fascinados as obras-primas dos grandes sonetistas de todas as literaturas, numa explosão de formas luminosas. Desde a primeira página — e seguindo uma esteira de deslumbramentos —, sempre resguardando a dignificação da consagrada forma poética, estuda-a nos seus múltiplos aspectos, examinando-lhe “o corpo e a alma”,  profundando-lhe o sentido, perquirindo-lhe os símbolos. perlustrando-lhe a rima — "sangue vivo da Poesia” — e conseguindo, numa auscultação crítica, que é a própria poesia perfumada de legendas, brindar-nos com um soberbo e riquíssimo painel de sonetos primorosos. 

Intemerato cavaleiro da Poesia, tornou-se, assim,  o arauto do Soneto. E, através do Tempo e do Espaço, no-lo apresenta, desde a sua invenção, na "fase anteclássica", ou “medieval" (a primeira das literaturas ocidentais"). Mostra-o imperando no Classicismo moderno, imbuído do espírito greco-romano: também nas Academias dos séculos XVII e XVIII: e, ainda, no Arcadismo, que, entre nós. culminou em Minas, para, afinal, exibi-lo no Romantismo, no Parnasianismo, no Simbolismo e no Modernismo — como expressão eterna e culminante de uma Poesia culminante e eterna.
Sentindo a inoperâncla de transcrever sonetos estrangeiros na própria língua em que foram escritos, consegue mais este milagre: publica-os, utilizando traduções tão exatas, tão perfeitas, que em nada ficam a dever aos originais. 


A origem e a finalidade deste livro

O Soneto é imortal. E foi atraído por essa imoralidade, referta de magnetismo interior. repassada de musica inefável e transbordante de fascinação, que Vasco de Castro Lima resolveu empreender sua viagem pelo "mundo maravilhoso do Soneto", realizando esta obra que é, a um só tempo, livro de excelente valor intelectual, de estética aplicada, de investigação histórica, de crítica literária, de antologia escolhidíssima e de um notável estudo, dificilmente suplantado em qualquer literatura.
Para tornar mais atraente sua viagem tão cheia de imprevistos, o autor, embora acima, por convicção pessoal, da melancólica escravidão das escolas, aprofunda-se no espírito dos que souberam engrandecer o Soneto, focalizando-os, examinando-os, com olhos de ver.

Analisa todos os fatos com leveza e penetração — e as suas análises unem ao original da acuidade crítica um estilo gracioso, vazado na mais escorreita vernaculidade. Por isto mesmo, este “O Mundo Maravilhoso do Soneto" é dotado de aguda transcendência, onde o cromatismo e a exatidão defluem, ora com a languidez das fontes murmurosas, ora com a impetuosidade das cachoeiras da serra. São páginas encantadoras, através das quais o Soneto paira, como um deus, e em torno dele tudo arde e vibra e clama, sob o sortilégio do seu filtro mágico.
Que grande livro!

Urdido com a inteligência, fecundado com o coração e escrito com o sangue, é uma ânfora de emotividades e sutilezas, um escrínio de apoteoses e ternuras, contendo o Soneto em todo o seu esplendor.
Demonstra que o Soneto é gênero poético de vibração perene, porque é a cristalização do sonho — e o sonho arrebata, enternece e, ao mesmo tempo, transfigura. O Soneto é a alma visível da poesia.
De seus quatorze versos brotam o lirismo, que é sentimento, e a música, que é mistério revelado. Dá-nos o fascínio da arte e a aspiração de asas prestes a voar... No infinito universo da poesia, fulgura, o Soneto, com irradiação permanente, numa pletora de luzes e de sons, em que se mesclam todos os cambiantes, se fundem todas as melodias, se casam todas as suavidades, espargindo sobre os espíritos apurados um dolente e comovido conjunto de acordes celestiais.
É que no Soneto, como na hóstia o corpo do Senhor, se concentra "a alma errante" da poesia, numa perpetuidade de fascinação e de deslumbramento.

Nada mais corriqueiro que fazer quatorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, rimados. cantantes, mas vazios, sem estruturação adequada, sem aquela indispensável purificação imaterial da cadência, a que chamam, pomposamente, de soneto. Nada mais sublime que fazer um bom soneto. Os remadores vulgares enxameiam por aí. Os sonetistas de prol, esses são menos encontradiços e constituem a aristocracia da espiritualidade. Relembra-nos isto, muito bem, Vasco de Castro Lima, com este livro, que atinge, por inteiro, a sua finalidade principal.



Os apedrejadores do Soneto

Apologista exaltado do Soneto, mas sereno historiador de tão surpreendente luzeiro de quatorze versos, Vasco de Castro Lima, para ser fiel a esse culto. não se corre de nos recordar que o Soneto teve os seus denegridores -- e os aponta, com certa dose de melancolia.

É compreensível a atitude desses iconoclastas: complexo de inferioridade. Despeja impropérios contra o Soneto somente quem não possui o dom de o compor, com arte e substância imaginativa.
Cassiano Ricardo, por exemplo, que se tornou um dos agentes do libelo contra esse invencível gênero poético, foi, como todos o reconhecemos, emérito poeta, detentor de invejável opulência lírica, artista de poemas admiráveis, como esse nacionalíssimo "Martim Cererê", mas não conseguiu produzir sonetos dignos da reverência crítica.

Para ser diferente desses denegridores e para evidenciar a sua isenção de analista imparcial e sem reproche, Vasco de Castro Lima reproduz, nesta obra memorável, em capítulo próprio, cerca de 70 sonetos de poetas modernistas brasileiros, muitos dos quais podem ser considerados modelares.
É que a sua imparcialidade e o seu bom gosto estão acima, muito acima, dessas mesquinhas rivalidades literárias...


Grandezas e misérias do Modernismo

As páginas dedicadas ao advento do Modernismo são lapidares. O autor não perfilha o movimento: procura compreendê-lo e, indulgentemente, o explica. Embora infenso a esse desrespeito às grandezas imutáveis, não assume, diante da subversão vandálica, atitudes de polemista, certamente por pensar, com Bernanos, que "o polemista é divertido até os 21 anos, tolerável até os 30, maçante por volta dos 50 e obsceno, a partir daí"... Ademais, não há esconder que os arreganhos escandalosos do Modernismo não são para condenados num livro de tanta serenidade, como este, nem para denegridos por um literato que, nas suas andanças pelo "mundo maravilhoso do Soneto", sempre timbrou, como bom fidalgo, em usar punhos de renda. Não quis polemizar, porque a natureza do livro lho defendia.

Todo fenômeno artístico tem indisfarçável ligação com o meio social. É isso uma afirmativa quase acaciana. Sendo a literatura produto artístico da imaginação criadora, é, por isso mesmo, uma forma de arte que, manifestando-se pela palavra, tem por objetivo primacial despertar o prazer estético. Não se pode, porém, transformar a literatura em mero instrumento das situações e transações sociais. Seria resvalar para o engajamento, incompatível com a arte.

O Movimento Modernista de 1922, como adverte Tristão de Ataíde, "não se processou alheio às influências universais, por mais que a nota nacional, e mesmo nacionalista, que já se manifestara na fase imediatamente anterior, tenha marcado, profundamente, as instituições e as obras da primeira geração modernista".

Não nos iludamos. O Modernismo, entre nós (e Almir de Oliveira o expôs em trabalho de arrojada crítica), resultou do fatigante esvaziamento das fórmulas então vigentes e, sobretudo, dos emergentes problemas suscitados pela Primeira Guerra Mundial. As escolas literárias extenuavam-se em repetições estéreis, em artifícios destituídos de cor local e de atualidade, em medíocres arranjos supostamente literários e mais ou menos harmoniosos — tudo denunciando aquele esgotamento próprio das épocas de decadência, incompatíveis com as, aspirações dos tempos novos.

A Primeira Guerra Mundial concorreu, até mesmo, para precipitar o movimento, que já surgira na Alemanha, no primeiro decênio do século, com o expressionismo, depois que Schonberg lançou a música atonal, com as suas "Três peças para piano"; e o cubismo, de Mondrian, emergiu em Paris, como "um movimento consciente e coerente", segundo a expressiva observação de Almir de Oliveira, apoiado em Geoffrey Benaclough. O comunismo e o fascismo, por sua vez, solapavam, irremediavelmente, o liberalismo econômico. O autoritarismo estatal anulava os parlamentos. Expandia-se o trabalhismo. A imprensa e todas as fontes de informação tornavam-se propriedade dos grupos econômicos. As multinacionais multiplicavam os seus tentáculos sobre a nossa economia e se tornavam soberanas dentro da nossa soberania. Tudo se transformava no mais repelente dos despotismos.

Nesse clima de inquietações e de conflitos imprevisíveis, surgiram as forças criadoras do espírito, que plasmaram, em novas fórmulas, não apenas as ciências, as pedagogias e as técnicas, mas, igualmente, as artes em geral, inclusive a literária. Entre nós, esse rompimento com a rotina embolorada do passadismo, indo ao arrepio do conselho latino "novi veteribus non opponendi; sed quoad fieri potest perpetua jungendi faedere" — foi iniciado em São Paulo e teve, nas letras, encarniçados lutadores, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti dei Picchia, Plínio Salgado e Guilherme de Almeida, enquanto, no Rio de Janeiro, se alistava, aderindo a esses bravos paladinos, uma falange lúcida e destemida, onde avultavam — além do velho-moço Graça Aranha — Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira.

O movimento, por sua imprevista ruptura com as fórmulas radicalmente consagradas, escandalizou, de alto a baixo, a opinião conservadora, que não lograva compreender a poesia sem metro, sem rima, sem pontuação, sem gramática, sem sentido e vazada, quase sempre, num caçanje esotérico, só entendido pelos "grandes iniciados", que oficiavam nas igrejinhas renovadoras. Para os espíritos ilustres, forrados de estudos humanísticos e embebidos de cultura greco-romana, o movimento era tão estarrecedor que Monteiro Lobato, num rasgo de indignação, não hesitou em capitulá-lo entre a simulação e a paranóia.

O certo, porém, é que essa insubmissão contra as velhas fórmulas, já gastas e cansadas, foi, indiscutivelmente, necessária ao renascimento da expressão artística. O soneto, por exemplo, estava, não raras vezes, descambando para lamentável maneirismo. Era apenas, nesses casos, um pretexto para que os medíocres na arte de versejar se acastelassem nas "rimas ricas" e nas "chaves de ouro" bem arranjadinhas, a fim de desovarem quatorze versos, destituídos de poesia e tresandando, serodiamente, a esmeradas bilaquices ou a um alphonsismo de carregação, cheio de litanias e de lausperenes, que davam tédio até em beatas e coroinhas... O soneto, assim manipulado, além de barato artifício, era de técnica primária, constituindo, senão hibridismo indefensável, pelo menos fatigante anacronismo.

Ora, a farândola modernista, implacável na destruição, teve outros focos para a sua irrupção e, salteadamente, explodiu alhures, com o futurismo, o dadaísmo, o imagismo, o surrealismo e o ultraísmo, enquanto, dentro das nossas fronteiras, vagia, timidamente, através do concretismo, para o qual, segundo um dos seus mais trêfegos profetas, Haroldo de Campos, "a melodia na música, a figura na pintura, o discursivo-conteudístico-sentimental na poesia são fósseis gustativos que nada mais dizem à mente criativa contemporânea".
Pelo que se vê, no fluxo da linguagem rebarbativa do seu profeta, esse movimento, em vez de concretismo, deveria chamar-se concretinismo...

Como quer que seja, o fato é que o Modernismo, por seus vários esgalhamentos, pretendendo acabar com os gêneros de poesia consagrados pelo tempo, logrou extirpar, definitivamente, das nossas letras, fórmulas já caducas, como as baladas, os madrigais, as odes, os rondós, os vilancetes, as glosas, os motes e outras tetéias dos moldes tradicionais, mas não conseguiu fazer o mínimo arranhão no soneto, propriamente dito, que continua vivo, brilhante, atual, invencível e  digamo-lo, sem rebuços  eterno.
Tão evidente é essa eternidade que, mesmo após o advento do Modernismo, em 1922, continuou a ser cultivado na sua pujança dominadora, na sua fragrância peregrina, na sua força misteriosa, como nos atesta a coletânea, em que, ao final desta obra, o tratadista enfileira mais de duzentos sonetos quase impecáveis.


Humildade de um grande sonetista

Vasco de Castro Lima se firmou, desde a adolescência, espevitado por Cardillo Filho, como fervoroso oficiante no culto da Poesia. Esse grande Poeta, com inconcebível poder de criação, proclamado, hoje, como um dos maiores sonetistas do Brasil, tem o pudor tão requintado, a humildade tão franciscana que, ao contrário de Afrânio Peixoto, em "Panorama da literatura brasileira", não se incluiu na extensa galeria de sonetistas, com que ornamentou o seu harmonioso livro. E foi pena. Foi pena, porque muitos de seus sonetos são dos mais belos que já se escreveram na mesma língua em que sonetearam Camões, Bocage, Alphonsus e Bilac. Seu último livro, "A Estrada do Sonho", é uma prova incontestável de nossa afirmação.

Seus sonetos!
Há neles a imaculada pureza, a canora espontaneidade, o melodioso misticismo dos engenhos perfeitos — tocados daquele fiat divino, próprio dos criadores da Harmonia e da Beleza.
Gostaríamos de contrariar a modéstia desse sublime intérprete dos deuses, ilustrando nossas linhas com, pelo menos, um dos sonetos que escreveu. Atendendo, porém, a pedido que nos fez, deixamos, lamentavelmente, de repetir, aqui, qualquer produção da sua lavra.


Grande poeta e prosador lapidar

Sem dúvida, a sua poesia tem esta particularidade singularíssima: falando diretamente à alma dos simples, mercê da inspiração temática, deslumbra, por igual, os  espíritos letrados, mercê da forma e da expressão conceitual. O que há nela de frisante é a limpidez, o sereno equilíbrio da medida helênica; o entusiasmo diante do móbil espetáculo do universo; o estremunhado, o infantil espanto em face do cosmorama da vida; a facilidade de captar os enigmas da natureza e de mergulhar no mundo mágico da criação. Não fora assim — e este livro não seria o tesouro que nos maravilha pelas imagens, pelo conteúdo, pelos símbolos e pela densidade.
Graças a tamanha refulgência poética, é um livro que lembra, às vezes, na prosa musicalíssima, a sonoridade de um chilrear de pássaros nas clareiras da mata ou clarins que clarinassem ao clarão da aurora...

Há unidade perfeita entre Vasco de Castro Lima, poeta, e Vasco de Castro Lima, prosador de "O Mundo Maravilhoso do Soneto".
Seus carmes, repassados de subjetivismo poético, revelam ilustração e profundeza, qualidades que não se encontram com freqüência na maioria dos nossos poetas, os quais, com honrosas exceções, se assemelham às patativas e aos sabiás: são maviosos, mas não sabem ler...

Como estudioso do Soneto, Vasco de Castro Lima patenteia uma seriedade de pensamento, um descortino de várias literaturas e, de maneira especial, uma forma sóbria e precisa, própria, somente, dos escritores já tarimbados pela vida.
De fato reservando-se para escrever esta obra definitiva na idade madura, quando tudo são experiências de dias idos e vividos, pôs no livro uma participação direta, firmada na vivência dos acontecimentos, alicerçada na cultura adquirida e lastreada de altitude e de profundidade.

Para levantar este monumento que é "O Mundo Maravilhoso do Soneto", o artista se exauriu em pesquisas minuciosas, perquiriu documentos impressentidos, consultou bibliotecas, vasculhou antigualhas, exumou jornais, sondou autores, auscultou especialistas, farejou manuscritos e, ao cabo, deu à publicidade este volume que — é preciso se apregoe — talvez nos faça conhecer a maior obra já escrita sobre o Soneto.

É que esse aglutinador de matizes esparsos, como poeta, não tem fronteiras na imaginação e, como crítico-historiador, se arrima apenas na realidade.
Daí ser o livro bem tecido, bem realizado, bem composto. Tem valor literário, valor documental, valor humano e é um panorama de tonalidades imprevistas.

Partes marcantes da obra

A poesia mana de suas expressões, mesmo quando trata de sonetos apenas "curiosos", que se destacam pela extravagância. Comentando-os, o crítico não se derrama em gabos excessivos: tem a compreensão que nasce da indulgência diante da idéia fixa de originalidade. Tais sonetos, como é óbvio, denotam certa habilidade na arte de fazer versos, mas, em geral, não são modelos a seguir.
Como o seu pesquisador dá a entender, não se destinam à durabilidade na memória dos pósteros. Não, não alcançarão a longevidade secular, mas merecem exibidos, para que se conheçam as concepções do gênero, mesmo na sua forma menos expressiva e, principalmente, porque "ostentam singularidades e caprichos interessantes, sem agredir o bom senso".

Em presença dos sonetistas "ocasionais", daqueles a que Manuel Bandeira chamava bissextos e que aparecem no livro com singular realce, encanta-nos ver a perfeição afetiva de Constâncio Alves, que conhecíamos apenas como prosador erudito, e a de Milton Campos, o saudoso, o incomparável homem público, dando-se a conhecer como artista de finas letras e sonetista de alcandorada elevação.

Além disso, é com discernimento seguro que discorre sobre os "sonetos mais populares" do Brasil e no-los transmite, "correntios, cheios de extrema simplicidade, ritmados pelas batidas do coração, tocados pela graça plena, ungidos de luz espiritual". São sonetos guardados na memória anônima do povo, que os tem como verdadeiro condomínio poético. Estão consagrados. Serão repetidos por séculos fora, como o são, ainda hoje, os de Camões e de Petrarca.


Outras partes marcantes da obra

Após apresentar, com sutileza, os mais apropriados esclarecimentos sobre os múltiplos aspectos do Soneto, o autor traça páginas de fina observação a respeito dos "Ministros de Deus na Catedral da Poesia", ou seja, dos representantes da Santa Madre Igreja que renderam, através do Soneto, homenagem à Beleza, que está acima, muito acima, do sagrado e do profano!

Nesse propósito divulgador, de par com produções razoáveis, transcreve sonetos imperecíveis, magistrais, definitivos, de sacerdotes que, por serem poetas autênticos, souberam servir, com a mesma devoção, ao Deus da sua crença e às Musas da sua sensibilidade. Referimo-nos, particularmente, aos padres Antônio Tomás e Manuel Albuquerque.

Por outro lado, as enternecedoras páginas sobre as "Melodias da noite sem fim" e sobre a "Poesia, felicidade dos infelizes", confrangem e, ao mesmo tempo, maravilham.
É que nos entreabrem o cenário em que padecem os sofredores sublimes, os mártires ultra-sensíveis — poetas imersos em trevas pela fatalidade da cegueira; e poetas corroídos pela hanseníase, as caras horripilantes, as orelhas edemaciadas, as mãos que se deformam, os dedos em garras, carcomidos.
Como isso nos constrange!

Como, porém, nos surpreende saber que, mergulhados em perpétua escuridão, mas transfigurados pelo encantamento da poesia, os cegos caminham, em magnificência interior, por clareiras feericamente iluminadas, e "enxergam", com admirável nitidez, as douradas chamas da fantasia, derramando-se, felizes, na graça musical dos sonetos — ao mesmo passo em que os hansenianos, também dotados do condão poético, se sentem repassados de infinita pureza e, belos, sadios, incontaminados, como gênios benfazejos, semeiam o mago encanto dos sonetos imortais!
Almas que sofrem são de si mesmo sonoras e, como dizia João Ribeiro, "as dores, que o espírito tornou mudas para os profanos, não emudecem: em seu recolhimento, espalham, pelo cristal da alma, as suas ressonâncias".

Revividas essas regiões dantescas, em que os desventurados sentem, na terra, todo o horror dos círculos do Inferno, com que miraculoso poder de sugestão Vasco de Castro Lima evoca os poetas que cantaram as rosas, em sonetos, e como esses sonetos são de extasiante simplicidade!
Lendo-os, temos a impressão de que as rosas são madonas que se fizeram flores, são expressões puríssimas do maravilhamento da natureza, as emissárias da perfeição celeste nos jardins da terra.
Vestidas de luar, como um sonho de noivado, ou rubras, como o pejo das virgens recatadas, alçam-se sobre os cravos e petúnias, verbenas e jasmins, junquilhos e violetas e camélias, purificando tudo e tudo perfumando, apesar dos espinhos que lhes vão nos caules. Suas pétalas têm a languidez das parábolas coloridas, ora num cendal de sangue, ora num amarelo pálido-desmaiado, ora numa cor indefinida, que é a saudade de todas as cores, ou, então, brancas, virginalmente brancas, dessa brancura imaculada, que lembra a alma branca, sem refolhos e sem véus, daquela que foi a própria rosa nos jardins da terra e alveja agora — Rosa Mística —, nos jardins do Céu, junto a Deus e toda a perfumá-LO      — Santa Teresinha de Jesus.


O livro e a pena que o escreveu

Depois de tantas cintilações, diante dessa viagem embaladora pelo "mundo maravilhoso do Soneto", urge pingarmos o ponto final em nossa tentativa de prefácio. Nada mais temos que dizer senão felicitar as letras nacionais pelo aparecimento desta obra incomensurável, que é um ponto destacado na história da nossa literatura.

No livro, que aí está, avulta, com singular relevância, a figura completa de Vasco de Castro Lima. É o grande Poeta consolidando o grande Prosador. No seu livro perpassam, em ciranda luminosa, todas as vozes longínquas da alegria, do desejo, da esperança e da saudade. A aurora do Soneto, o seu prestígio triunfal, a sua inegável perenidade emergem, radiosamente, banhados de evocações exuberantes.

Que construção monumental!
No seu arcabouço majestoso, a invencível forma poética de quatorze versos, esse clarão de música, de magia e de glória, adquire novos contornos e se embebe todo num brilho indizível de configurações esplêndidas.

O livro aí está. Nele, não admiramos apenas o historiador, o crítico, o exegeta e o ensaísta. Admiramos, também, o fascínio envolvente, a força harmoniosa e as mensagens triunfais que sempre estiveram ensolarando o longo percurso do Soneto, desde as suas origens sicilianas até os nossos dias, por mais de sete séculos.
Louvamos os artistas que o amaram e praticaram e que, dentro das suas épocas, sublimaram os célebres quatorze versos, as quatorze pérolas do colar encantado, os quatorze milagres da taumaturgia lírica.
É que no segredo de tão nobre gênero poético se condensa a infinita sonoridade de todas as almas sensíveis que verteram na urna sagrada dos quatorze versos o sangue de suas dores incomportáveis, o fel de suas terríveis inquietações, o néctar de suas alegrias inefáveis e a ternura de seus sonhos mais fagueiros.

Por tudo isso e por fazer da pena a enternecida semeadora de pensamentos, de idéias e de harmonias infinitas, Vasco de Castro Lima se alteia, hoje, como um dos grandes nomes da literatura brasileira. A sua pena é lira e é escopro. Vibra e cinzela. Todas as melodias da verdade e da beleza cantam e lampejam nessa abençoada pena, que se embebe nas tintas da arte e na luz inapagável da crítica construtiva. Toda a fabulosa história do Soneto, nos seus mistérios líricos e eternos, escorre dessa pena fulgurante que, graças à sacralidade do tema, escreve o evangelho do Sonho e da Poesia, pondo na sensibilidade dos leitores um sentimento de doçura estranha.
Rangel Coelho
Rio, 11-06-82

Nenhum comentário:

Postar um comentário