Bento Teixeira; "A Escola Baiana"



BENTO TEIXEIRA

Só com Gregório de Matos, como veremos adiante, é que começou a aparecer o sentimento brasileiro.

Antes dele, temos, porém, de registrar a presença de um poeta que refletiu, no Brasil dos primeiros tempos, o pensamento e os processos literários de Portugal: Bento Teixeira (1560-1618).

Anchieta foi o precursor da nossa literatura, mas Teixeira, que escreveu a “Prosopopéia", é, segundo Sílvio Romero, "o mais antigo dos poetas nascidos no Brasil".

Romero e muitos outros historiadores e estudiosos da nossa literatura acham que Bento Teixeira teria vindo à luz do dia em Pernambuco. Esse fato forma como que um consenso. Mas, Rodolfo Garcia, citado por Clóvis Monteiro, levanta, a esse respeito, uma dúvida, admitindo tenha ele nascido em Portugal. Alceu Amoroso Lima também acolhe a dúvida. Nesse caso, teria chegado a Portugal, criança ainda, e estudado no Colégio da Bahia, dedicando-se ao ensino particular.

Como detalhe, registramos a informação de Pero Magalhães Gandavo, para quem havia, então, no Brasil, outros poetas escrevendo melhor do que Bento Teixeira. É o que consta de sua "História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil”, publicada em Lisboa, no ano de 1576.

A princípio lhe era atribuído mais o sobrenome Pinto, porém Francisco Adolfo de Varnhagem, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia apuraram que o poeta era apenas Bento Teixeira.

A "Prosopopéia", sem grande valor literário, é um poema épico bajulatório, de 94 estrofes em oitava rima, todas à maneira camoniana. Não tem separação de cantos. Nessa obra, o poeta elogia os primeiros donatários da Capitania de Pernambuco: Duarte Coelho e D. Brites de Albuquerque, e seus filhos, Jorge de Albuquerque Coelho e Duarte Coelho, além de Jerônimo de Albuquerque.

O livro teve três principais edições: 1601, 1873 e 1923, sendo esta última organizada por Afrânio Peixoto e publicada pela Academia Brasileira de Letras.
Através desse vate ingênuo, surgiram os primeiros passos indecisos do estilo clássico em nossa literatura colonial. Diz Clóvis Monteiro: — "Apenas acabava de se escoar o século XVI, ainda quando a língua dos indígenas era bem aceita pelos próprios colonizadores, e já Bento Teixeira, na "Prosopopéia", imitava os versos heróicos de Camões".




A "ESCOLA BAIANA"

O sentimento nacionalista, muito pequeno e vacilante ainda, no século XVI, começou a criar maior força e maior motivação no século XVII, em decorrência dos conflitos com os conquistadores estrangeiros.
Aquela época se distingue pelas lutas memoráveis que já visavam à conquista de uma pátria nova.

Mesmo omitindo os choques violentos com o fanatismo religioso dos luteranos — ingleses e flamengos — devemos nos lembrar das páginas imorredouras escritas a sangue, aqui mesmo na Colônia, nos combates contra os holandeses, refregas difíceis coroadas pelos triunfos de Guararapes. Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Camarão, Henrique Dias (em suma, portugueses, brasileiros, índios e negros, possuídos de um só pensamento grandioso) foram os principais responsáveis pela manutenção dos ideais da jovem nacionalidade.

Enquanto isso, ao lado dos portugueses, surgiram abastados senhores de engenho, brasileiros, criando os primórdios de uma aristocracia rural. E já estavam presentes os primeiros sucessos dos negócios políticos e econômicos.

Também as letras começaram a chamar a atenção de todos para o seu desenvolvimento. Principiamos a conhecer os poetas do renascimento italiano, espanhol e português.

Ronald de Carvalho lembra que Tasso, Góngora, Lope de Vega, Gabriel de Castro, e outros, eram lidos e imitados. E confirma que, "como nos do Portugal de D. Francisco Manuel de Melo, predominava, entre os nossos letrados, quase todos, aliás, educados em Coimbra, a influência de Góngora e seus discípulos".

Havia, então, muitos cultores da boa latinidade. Podemos citar a chamada "Escola Baiana", que reunia um grupo regular de poetas, cronistas, historiadores e figuras eminentes da eloqüência religiosa.

A nata do grupo era composta de Gregório de Matos Guerra (1633-1696) e Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) — poetas; Frei Vicente do Salvador (1564-1639) — cronista; padre Eusébio de Matos (1629-1692), irmão de Gregório, e padre Antônio de Sá (1620-1678), o melhor discípulo do padre Antônio Vieira — eloqüência sagrada.

E, em nível muito inferior, outros poetas hoje esquecidos, Domingos Barbosa (1632-1685), Diogo Grasson Tinoco (que viveu no século XVII) e Bernardo Vieira Ravasco (1617-1697), irmão do Padre Antônio Vieira. Diogo Grasson Tinoco publicou, em 1629, uma parte do poema "Descobrimento das Esmeraldas", cantando, antes de Bilac, a determinacão e o estoicismo de Fernão Dias Pais. Infelizmente, do poema, são conhecidas, hoje, não mais do que quatro estâncias em oitava rima, colhidas por Cláudio Manuel da Costa. Na verdade, muito pouca coisa restou das obras desse segundo grupo.

E, a rigor, dentre os poetas da "Escola Baiana", só se salvaram, mesmo, Gregório de Matos e, muito distante, Manuel Botelho de Oliveira.


Gregório de Matos Guerra (1633-1696), segundo Sílvio Romero, "foi o fundador da nossa literatura". Cognominado o "Ovídio brasileiro".

Ronald de Carvalho diz ter sido ele "a voz precursora da fsa independência mental".

Poeta de primorosos méritos, porém de vida desregrada, o mestiço fez muitos inimigos à custa de um desabusado talento satírico, responsável, em grande parte, pela sua nomeada: chamavam-lhe o "Boca do Inferno". Sem contestação, no gênero, o maior poeta daquele tempo, aqui e além-mar; e sua mordacidade não poupou sequer os grandes e poderosos, nobres, e até os “prelados que desonravam a Igreja".

Chefe e único valor de realce da "Escola Baiana", pode ser apontado como um dos maiores poetas da literatura luso-brasileira antes do movimento arcádico. Era um rebelde, um irônico, um impiedoso poeta, mas teve, indubitavelmente, qualidades positivas.
Chegou a ser, também, um místico, e "um pensador sutil e avisado”, como observa Ronald de Carvalho.

Fiel ao estilo barroco, sua obra é mesclada de materialismo e de espiritualismo.

Uma virtude significativa, ninguém poderá negar-lhe: a de ter sido o primeiro poeta a refletir, em  suas produções, a sociedade brasileira da época.

Formou-se em Coimbra, onde recebeu o grau de doutor em leis. Exerceu a advocacia, com êxito, na primeira capital da Colônia; e, em Lisboa, foi causídico e magistrado famoso.

Ocupou os empregos de Vigário Geral da Bahia e Tesoureiro-Mor da Sé, "com murça de cônego", embora fosse, apenas, um "minorista". De qualquer forma, isso nada lhe valeu, pois, em seu redor, continuaram a se avolumar invejas e vinganças.

O arcebispo D. Frei João de Madre de Deus tentou persuadi-lo a tomar ordens sacras, para evitar maiores complicações, recebendo resposta negativa. E o prelado, com o correr dos acontecimentos, retirou-lhe a murça capitular, "com desprezo".

Em 1684, casou-se com Maria de Povos, tendo sido infeliz no casamento, porque não podia adaptar-se a uma tranqüila vida doméstica. Para se manter, voltou a advogar na Bahia, fracassando também financeiramente. A mulher fugiu de casa, como era inevitável.

Retirou-se para o Recôncavo, mas, por intrigas de um poderoso inimigo, foi preso e desterrado para Angola. Protegido pelo Governador angolano, conseguiu voltar, desta vez para Pernambuco, "onde viveu ainda algum tempo, proibido de fazer versos", como diz Ronald de Carvalho.

Velho e doente, faleceu no Recife, em 1696, reconciliado com a Igreja.

Alceu Amoroso Lima classificou-o como "a figura mais pitoresca de toda a nossa literatura colonial".

Suas obras, e mesmo assim em parte, só foram publicadas, pela primeira vez, em 1831; depois, em 1882. A Academia Brasileira de Letras as publicou, completas, em seis volumes (1923-1933).

Sem embargo, é uma figura que ainda está a exigir um estudo aprofundado.

Leodegário A. de Azevedo Filho escreveu: — "A obra poética de Gregório de Matos representa o ponto mais alto da estética barroca em nossa poesia do século XVII, ao lado de outros poetas menores, que a tradição já esqueceu ou vai esquecendo. Nela se reflete, plenamente, o estilo daquela época, através do vocabulário, da sintaxe e das habilidades métricas". (....) "Influências de Góngora e Quevedo, mestres do Barroco espanhol, são bastante sensíveis e muito maiores que as possíveis influências de qualquer autor português".

João Ribeiro manifestou opinião semelhante, pois o acusou. no livro "Fabordão", de ser "às vezes servil imitador de Góngora e de Quevedo", acrescentando que "algumas poesias mesmas de Gregório de Matos não merecem mais que o nome de paráfrases".

Ainda hoje há dúvidas sobre a autenticidade integral de sua obra, tendo sofrido também acusações de plagiário.

De certa forma, porém, o Professor Segismundo Spina, da Universidade de São Paulo, o absolve de tais acusações, alegando que “essas adaptações poéticas, justamente com poesias que granjearam larga popularidade, não constituem uma artimanha que implica em desonestidade, mas uma faceta por onde fulge o espírito brincalhão e satírico do poeta baiano".

Eis como era o físico de Gregório, na palavra de Araripe Junior: "Boa estatura, seco de corpo, membros delicados, poucos cabelos e crespos,  testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, olhos garços, nariz aquilino, boca pequena e engraçada, e barba sem demasia — o retrato de um fauno".

Gregório de Matos foi o primeiro brasileiro a "escrever", a 'produzir" sonetos. E excelentes, como este:


TEMPESTADE
Gregório de Matos

Na confusão do mais horrendo dia,
painel da noite, em tempestade brava,
de fogo e ar o ser se embaraçava,
de terra e ar o ser se confundia.

Bramava o mar, o vento embravecia,
a noite em dia, enfim, se equivocava;
e com estrondo horrível se assombrava
a terra; e se abalava, e estremecia...

Desde os altos aos côncavos rochedos,
desde o centro aos mais altos obeliscos,
houve temor nas nuvens e penedos;

pois dava o céu, ameaçando riscos;
com assombros, com pasmos e com medos, 
relâmpagos, trovões, raios, coriscos...


Não obstante sua reputação de poeta satírico irresistível, Gregório de Matos também escreveu versos líricos, eróticos e até religiosos, como os seguintes, ungidos de fé e contrição, do seguinte soneto:

“A Jesus Cristo Nosso Senhor"
Gregório de Matos

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
da vossa Alta Clemência me despido;
porque, quanto mais tenho delinqüido,
vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
a abrandar-vos sobeja um só gemido:
que a mesma culpa, que vos há ofendido,
vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
glória tal e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História,

eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada;
cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
perder na vossa ovelha a vossa glória.

________
Verso 2 — despido = despeço: conjugado regularmente, 
como se usava naquela época.


Gregório de Matos não tinha no lirismo o ponto alto de sua obra. Não se deixava levar muito pelos encantos da poesia sentimental.
Eis, porém, um dos sonetos líricos:


Ardor em firme coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
incêndio em mares de água disfarçado;
rio de neve em fogo convertido:

tu, que em ímpeto abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo, em cristais aprisionado;
quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,
se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
como quis que aqui fosse a neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.




O poeta observa a instabilidade das cousas do mundo:

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia;
depois da Luz se segue a noite escura;
em tristes sombras morre a formosura,
em contínuas tristezas, a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto, da pena assim se fia?

Mas no Sol e na Luz, falte a firmeza,
na formosura, não se dê constância,
e na alegria, sinta-se a tristeza.

Comece o mundo, enfim, pela ignorância;
pois tem qualquer dos bens, por natureza,
a firmeza somente na inconstância.
_______
Verso 5 — "Nascia", por "nasce", é mera imposição da rima.
                      (Péricles Eugênio da Silva Ramos)


Vamos transcrever aqui um dos sonetos satíricos, em que o irreverente poeta "descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia:

A cada canto um grande Conselheiro,
que nos quer governar cabana e vinha:
não sabem governar sua cozinha,
e querem governar o Mundo inteiro!

Em cada porta um bem freqüente Olheiro;
que a vida do Vizinho e da Vizinha
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
para o levar à Praça e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés aos Homens nobres;
posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados:
todos os que não furtam, muito pobres
eis aqui a cidade da Bahia.



Gregório de Matos morreu minado pelo álcool e pela miséria. Sentindo que estava próximo seu fim, pediu um confessor. Foi atendê-lo o Frei Francisco de Lima, que encontrou, ao lado do moribundo, o último soneto escrito pelo poeta, com letra trêmula:

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
em cuja Fé protesto de viver,
em cuja Santa Lei quero morrer,
animoso, constante, firme e inteiro:

neste lance, por ser o derradeiro,
pois vejo a minha vida anoitecer,
é, meu Jesus, a hora de se ver
a brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito;
porém pode ter fim todo o pecar,
e não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
que, por mais que pequei, neste conflito,
espero em vosso amor de me salvar.

_______
Verso 4 — Inteiro: resoluto.
Verso 13 — Conflito: aflição, luta interior.
           (Segismundo Spina)




Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) nasceu na Bahia, formou-se pela Universidade de Coimbra, onde era companheiro de estudos de Gregório de Matos; advogou na terra natal, fez-se político, teve excelente instrução das línguas latina, castelhana e italiana, além da portuguesa. Poeta, sonetista.

Em Coimbra, hauriu largos conhecimentos gongóricos, vindo a ser, no Brasil, o mais credenciado representante do culteranismo. Inferior, em talento, a Gregório de Matos — talvez por isso mesmo Botelho abusou do estilo barroco.

Em 1705, quando tinha quase 70 anos, publicou, em Lisboa, um livro de versos: “Música do Parnaso", escrito nas quatro línguas que conhecia. No prólogo do livro, explicou que assim procedeu "para que se entenda que pode uma só Musa cantar com diversas vozes".

Composto de sonetos, madrigais e canções, é um livro de valor apenas razoável. Englobando, inclusive, 42 sonetos, o título todo da obra é: "Música do Parnaso, dividida em quatro coros de rimas, Portuguesas, Castelhanas, Italianas e Latinas, com seu descante cômico reduzido em duas comédias”.

Enquanto isso, a obra de Gregório de Matos só veio a ser publicada no séc. XIX, fato que não tira a Gregório o privilégio de ter sido, cronologicamente, o primeiro poeta e sonetista brasileiro.

O próprio Manuel Botelho de Oliveira, louvado e quase glorificado em vida, sabia que não era o poeta mais antigo, mas apenas o primeiro a ver  "impressas" suas produções. "Música do Parnaso" foi, na expressão de Péricles Eugênio da Silva Ramos, "a primeira poética de autor brasileiro que recebeu o benefício do prelo”.

Na dedicatória do livro, feita a D. Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque do Cadaval, escreveu, em meio a exageradíssimos elogios ao homegeado, o seguinte:
— Ao meu entendimento, posto que inferior aos de que é e tão fértil este país, ditaram as Musas as presentes rimas, que me resolvi expor à publicidade de todos, para ao menos ser o primeiro filho do Brasil, que faça pública a suavidade do metro, já que o não sou em merecer outros maiores créditos na Poesia".

De qualquer forma, queremos prestar uma homenagem a Manuel Botelho de Oliveira, transcrevendo aqui o seu soneto "Rosa, e Anarda” (Soneto XX), em cujas imagens não se pode deixar de reconhecer algum valor:

Rasa da formosura, Anarda bela
igualmente se ostenta como a rosa;
Anarda mais que as flores é formosa,
mais formosa que as flores brilha aquela.

A rosa com espinhos se desvela,
arma-se Anarda espinhos de impiedosa;
na fronte Anarda tem púrpura airosa,
a  rosa é dos jardins purpúrea estrela.

Brota o carmim da rosa doce alento,
respira olor de Anarda o carmim breve,
ambas dos olhos são contentamento:

mas esta diferença Anarda teve:
que a rosa deve ao sol seu luzimento,
o sol seu luzimento a Anarda deve.

_______
Versos 9 e 10 — O carmim da rosa produz perfume, e assim também 
o breve carmim (boca) de Anarda.                    
             (Péricles Eugênio da Silva Ramos). 




(Das páginas 517 a 525 de “O Mundo Maravilhoso
do Soneto”, de Vasco de Castro Lima)

 






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