Partidários e Depreciadores do Soneto


Admiradores exaltados do soneto, sempre os houve. O escritor, crítico e acadêmico francês Sainte-Beuve (1804-1869), era um ardoroso apreciador de Petrarca: 
"J'irais à Rome à pied pour un sonnet de lui..." 
Herédia gastou dez anos polindo, aprimorando um soneto de sua autoria.
De reis e de homens de Estado, mereceu honras e compensações valiosas. O Cardeal Richelieu (1585-1642), ministro de Luís XIII è fundador da Academia Francesa, premiou o poeta Achillini com três mil libras por um Soneto que celebrava a tomada de La Rochelle"; e Henrique III, da França (ex-duque de Anjou), con-feriu a Philippe Desportes (1546-1606), poeta oficial da corte, por um soneto, "Diane et Hippolyte", um prêmio equivalente a trinta mil libras. 

Transcrevemos palavras do escritor português Mayer Garcão (1872-1930), ao prefaciar sua coletânea "Os Cem Sonetos": — "Espraiando-se nobremente como uma onda sonora, que vem desfazer-se na praia, ou lançando, no espaço, um grito em que eternidades do ideal ou da paixão se concentram na vibração de um minuto, o soneto tem sempre um aspecto definitivo. Educa como uma lição, sensibiliza como um ai, encanta como um sorriso, atrai como um drama, enternece como um idílio, ou preocupa como um problema. Mas, em todo o caso, tudo deixa dito. O certo é que ele nunca mais pereceu, e em todos os tempos, como nas várias latitudes, soube ser o murmúrio do coração, ou a chama da consciência". 
Boileau (1636-1711) escrevera que:
 "Un sonnet sans dèfauts vaut seul un long poème" ("Art Poétique", II, 93 a 96). Aliás, o mesmo Boileau chegou a dizer que "Apolo inventou o soneto para tormento dos poetas". 


Eis o que acrescenta Agostinho de Campos:
"Como prefácio ao "Le livre des Sonnets", editado por Lemerre, de Paris, escreveu Carlos Asselineau uma História do Soneto, e aí conta que Godeau (Antônio Godeau, 1605-1672), bispo de Vence (França) e poeta distinto, ia ainda mais longe que Boileau, na incredulidade de encontrar um soneto que lhe enchesse as medidas. Godeau pretendia que o reino do Soneto não é deste mundo, chegando a negar redondamente que fosse possível compor um soneto perfeito. Era ateu em Soneto, diz, com graça, o prefaciador
francês".

No seu palacete de Paris, a Marquesa de Rambouillet (Roma.
1588 — Paris, 1665) reunia, entre 1620 e 1665, os mais renomados literatos da época. Naquele ambiente, e na corte de Luís XIV, em 1649, os sonetos "Uranie", de Vincent Voiture (1598-1648), e " Job" de Isaac Benserade (1613-1691), causaram grande agitação, chegando seus admiradores a formar dois partidos, cada qual lutando, acir-
radamente, pelo seu soneto preferido. Esse debate ocorreu um ano após a morte de Voiture. Ambos os poetas pertenciam à Academia Francesa.

Uma rápida biografia do imortal poema de forma fixa foi escrita, em soneto, com estilo quase petrarquiano, pelo poeta inglês William Wordsworth (1770-1850). Dessa composição, que é a voz da própria Poesia aliada ao coro geral de louvores ao Soneto, transcrevemos, a seguir, uma tradução livre, quase literal, em prosa, feita pelo poeta português Fernandes Costa, e extraída da obra "Estudos sobre o Soneto", de Agostinho de Campos:

"Crítico, não maldigas do Soneto! Censuraste-o, esquecido dos seus títulos de honra: com essa chave nos abriu Shakespeare o seu coração; a melodia deste pequeno alaúde deu alívio às mágoas de Petrarca; 
mil vezes o fez o Tasso ressoar como avena; com ele suavizou Camões as amarguras do seu desterro. Foi o soneto uma alegre e brilhante folha de mirto entre a rama do cipreste com que Dante coroou a sua fronte de visionário;
clarão de pirilampo, trazido do País das Fadas, deu ânimo ao doce Spenser para atravessar, lutando, os tenebrosos caminhos; e quando as névoas da cegueira desceram em torno de Milton, escurecendo-lhe as veredas da vida, na sua mão transformou-se o Soneto em clarim, donde ele fez ressoar, infelizmente poucas vezes, cantos animadores das almas".

Escreveu Agripino Grieco:
"Pela concisão impressiva, entrecho conceituoso, narração dramática em poucas linhas e facilidade de incrustação mnemônica, é o soneto que decreta e sanciona a celebridade de um artista".

Palavras de Heli Menegale:
"Que Misteriosa forma poética é o soneto! Quando o supúnhamos morto e prestes a enterrar-se, ei-lo que revive com todos os seus atributos e exigências. E a sua resistência não vence apenas o aniquilamento: todas as tentativas feitas através dos séculos para distendê-lo, retraí-lo, ataviá-lo, pervertê-lo, desfigurá-lo, tudo tem sido vão, porque o soneto de todas essas provas sai incólume, no seu molde petrarquiano".

E, mais:

"À poesia moderna repugnariam todas as fórmulas ou formas consagradas, tudo o que limita ou é liberticida. Mas os grandes poetas sempre viveram em liberdade dentro do soneto. Não é essa, por exemplo, a impressão que nos dão os melhores sonetos de Antero como os de Raimundo? Para esses, o soneto não é cárcere, não deforma, não constringe. A quem o sabe compor, o soneto é um quadro pequeno, sim, onde se podem conter, porém, concepções imensas. Tem as limitações do quadrilátero de uma janela que se abre para o infinito dos horizontes".

Silvio Valente, baiano, é o autor deste soneto —  uma enternecida homenagem, não, apenas, à sua Musa, mas ao próprio soneto:

Amo o soneto porque é molde antigo
para dizer as coisas sempre novas;
porque depois de não sei quantas provas
um pudor virginal guarda consigo.

O soneto é mais puro do que as trovas.
Sim, Bem-Amada, eu nele apenas digo
tudo que é nobre em mim, tudo que aprovas
e é meu prêmio na vida, e meu castigo.

É fino e breve, e tem segredos de arte;
uma pureza, enfim, tão cintilante
que, quando um dia desejei cantar-te,

os teus encantos rútilos, diversos,
pus em soneto; e desde aquele instante
só sei rimar-te com quatorze versos.

*
Menotti del Picchia foi um dos introdutores do Modernismo no Brasil. Antes disso, porém, escreveu páginas sublimes de poesia clássica, como este formoso soneto ao Soneto:


Soneto, mal de ti falem perversos,
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta, dentro de ti, a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti, que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça,
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...


Luiz Guimarães Júnior imaginou uma utilidade bastante curiosa para o soneto. Fez, dele, um delicado sapato para calçar os mimosos pés de sua Musa.
E o que vamos ler em "A Borralheira":

Meigos pés, pequeninos, delicados,
como um duplo lilás — se os beija-flores
vos descobrissem entre as outras flores,
que seria de vós, pés adorados?

Como dois gêmeos silfos animados,
vi-vos ontem pairar entre os fulgores
do baile, ariscos, brancos, tentadores,
mas, ai de mim! — como os mais pés calçados!

Calçados como os mais! que desacato!
disse eu — Vou já talhar-lhes um sapato
leve, ideal, fantástico, secreto...

Ei-lo! Resta saber, Anjo faceiro,
se acertou na medida o sapateiro:
— Mimosos pés, calçai este soneto!

Rosemonde Gérard comparou "a arte de fazer sonetos à arte de enfiar pérolas".

Também existiram seus zoilos e difamadores. Fernando Brunetière (1849-1907), ilustre crítico francês, achava-o, pela sua rigidez e brevidade, impróprio para traduzir os grandes pensamentos.
Talvez assim se expressasse por não ter sido poeta.


Théodore de Banville (1823-1891) fez restrições à sua estrutura.
Goethe (1749-1832) criticara o soneto; mas, sexagenário, ao apaixonar-se por uma jovem bonita — Minna Herzlieb — dedicou-lhe 17 boas produções desse tipo, expandindo, veladamente, o seu amor.

Agostinho de Campos assim comentou a atitude contraditória do grande poeta alemão:

"Goethe fez em sonetos a crítica do Soneto, porque os poetas sonetistas são assim muitas vezes: ralham com o Soneto e vão fazendo mais sonetos. Neste sentido poderemos comparar o soneto com as mulheres: os homens acham-nas difíceis, caprichosas, exigentes, talvez como os sonetos — mas não podem passar sem elas... ".
"Mestre Castilho — segundo o mesmo Agostinho de Campos  não amava o Soneto e foi severo com os nossos sonetistas, por grandes que como tais se revelassem".

Castilho (1800-1875) censurava o abuso que dele se fez e, cometendo grave injustiça, escreveu que "o soneto português (podemos dizer sem exageração), nasceu com Bocage, e com Bocage morreu ". Para ele, um poeta que preza a própria liberdade não se sujeita a escrever "um poema restrito a 154 sílabas, divididas por quatro períodos preestabelecidos, dois de 44 sílabas cada um, e dois de 33 ". Só compreendemos a ojeriza do excelente artista da palavra e grande escritor português pelo soneto, quando nos lembramos de sua adesão, um tanto forçada, ao Romantismo, que foi uma escola refratária a poemas de forma fixa.
Agostinho de Campos atribui a atitude de Castilho à sua provável incapacidade de fazer bons sonetos. E diz mesmo: "Menores dificuldades encontraria ele em compor um soneto do que rebuscar rimas proparoxítonas, para alternar com graves e agudas, a fim de construir o seu belíssimo "Cântico da Noite". Teremos, portanto, de levar a sua aversão ao soneto à conta de outro motivo, semelhante àquele que veda o limoeiro a produzir limas, mas tão-somente limões".
Castilho não era, decerto, poeta de finuras; mas, um pouco pesado...

Júlio Dantas (1876-1962), autor de corretos e belíssimos sonetos, abjurou, tardiamente, o soneto, em sua velhice, quando aderiu ao movimento modernista. Mas, na verdade, o seu nome não seria lembrado pela posteridade, não fossem aqueles 22 " Sonetos " (1916) e a sua " A ceia dos Cardeais ". Se tivesse ficado na coletânea de poesias "Nada" (1896), já estaria esquecido. Ou melhor: jamais seria lembrado pelos pósteros.

A deserção de um sonetista primoroso como Júlio Dantas só pode ser compreendida face à sua idade provecta. E tal propósito se torna mais deplorável, por tê-lo manifestado através de 14 versos brancos (não um soneto), e, ainda, dizendo inverdades, como estas de que o soneto é de origem "florentina" e de que o mesmo soneto foi gerado por Petrarca.
Mas, transcrevamos esses 14 versos em que o autor rebelde não conseguiu esconder, de vez, os últimos vestígios de sua técnica de poeta consagrado:

Ó florentino túmulo de prata!
Ó sepultura de quatorze versos!
Demais vibrou por ti aprisionada,
a asa vibrátil do meu pensamento.

Demais sofri a dura disciplina
do teu chicote de quatorze pontas,
soneto arcaico, inquisidor vermelho,
que Petrarca há seis séculos gerou.

Ó taça antiga de quatorze gomos!
Taça de ouro de Guido Cavalcanti,
bebi por ti, mas atirei-te ao mar.

Não se ouvem mais os címbalos da rima.
Asa liberta, voa em liberdade!
Jaula de bronze, estás aberta enfim.


Cassiano Ricardo (1895-1974), também opositor do soneto no ano de 1939, em plena Academia Brasileira de Letras, num " impetuoso arroubo de retórica ginasiana", indiferente ao "brilhante tirocínio plurissecular do soneto" — disse o seguinte, segundo lembra Cruz Filho:

"... O soneto nasceu em épocas de ritmo sossegado e harmonioso, e o mundo moderno é feito de trepidação e de inquietação".
(....) "Os que hoje dispõem de tempo para fazer um soneto negam a sua época. O soneto seria uma limitação num momento em que venceu o ilimitado. Há uma pororoca moral e ideológica suprimindo fronteiras e o rádio tornou o mundo monstruosamente presente a si mesmo. E haveremos nós de estar com a preocupação do limite material e formal de um soneto, nesta hora de pânico?".


Sobre o soneto, escreveu Paulo Mendes Campos: "Quando um soneto está pronto, isto significa que uma série de complexas operações mentais ocorreram, conseguindo o homem, de uma coisa frágil e ilusória como a palavra, um objeto que resiste à inteligência, à cultura e ao tédio do leitor. Essa peça bem acabada se incorpora à vida de algumas pessoas. A glória de um soneto é ser inesgotável". (....)     "Um soneto deve ser a reunião dos pormenores felizes da poesia: uma fala suave do som para o sentido, imagens exatas, assonâncias, a valorização das palavras e dos sons, uma exaltação de rimas, uma riqueza de cadência e andamento". (....)

"Depois do modernismo, inimigo do soneto, foi Vinicius de Morais que começou a criar gosto pelo soneto de forma regular. Os novos o seguiram, e muitos poetas e não poetas protestaram contra o retorno a esse velho hábito de nossa lírica". (....) "A reação irritada contra o soneto vinha apenas mostrar que este voltava a ter um papel em nossa poesia atual. É possível que amanhã nos cansemos de novo do soneto. Nada disso tem muita importância".








(Das páginas 91 a 97 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)









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