Chegou o momento em que devemos falar sobre a estrutura e os
primeiros passos do soneto.
Além do que, em seguida, apresentamos, não deve existir
muita coisa a pesquisar, a analisar. Nosso trabalho lembra, por assim dizer,
uma colcha de retalhos, elaborada por uma costureira paciente e caprichosa que
fosse, após a confecção de cada peça de roupa, guardando o pedacinho mais
bonito, para depois unir, num conjunto variegado, os minúsculos retângulos e
triângulos de tecido. Retângulos que poderiam ser comparados aos quartetos, e
triângulos que recordariam os tercetos de um soneto.
*
Encontramos, no limiar de nossas pesquisas, algumas divergências em torno da maneira pela qual se conseguiu a formação do soneto. Mas, vimos logo, não foi necessário sairmos à procura de um denominador comum que resultasse de cálculos matemáticos de difícil manejo, uma vez que, lá mesmo, nas torres enluaradas do castelo da escola siciliana, a evidência cristalina se impôs, com naturalidade e precisão. Prevaleceram a conscientização lógica e a coerência de raciocínio que inspiraram aquele, ou aqueles, a quem coube o privilégio de alcançar um ideal tão elevado.
Os poetas da corte de Frederico II conheciam e produziam a canção, melhor dizendo, o "strambotto", ou "canzuna", o feitio de canto lírico popular mais antigo e mais disseminado em toda a Itália. Principalmente na Sicília e em Toscana: Sicília, o seu berço; Toscana, sua terra de adoção. O "strambotto" mais comum era composto de oito hendecassílabos (decassílabos para nós, porque não contamos a sílaba que se segue à décima, a mais forte do verso, em qualquer circunstância).
Tinha rimas alternadas, assim:
AB AB AB AB
Eram, portanto, quatro dísticos, que também podiam ser
escritos seguidamente, sem qualquer alteração na ordem das rimas, formando um
canto monostrófico:
ABABABAB
Mas, nem tudo eram rosas... Os poetas da corte siciliana, evidentemente mais instruídos que os trovadores populares, achavam-se insatisfeitos com a repetição tediosa do mesmo tipo de poesia musicada. Afinal de contas, era uma canção breve, limitada, fútil, que contava, no mínimo, dois séculos de existência. Tornava-se cansativa e, pior, era um poeminha considerado imperfeito, quase medíocre.
Sentiram-se, então, encorajados para criar algo diferente, mais completo, mais profundo, que pudesse aperfeiçoar a poesia, dando-lhe cores mais fortes, ou uma qualidade literária mais expressiva.
Estabelecidas as premissas (obter uma composição poéiica
mais extensa e mais significativa), partiram para a conclusão.
Os poetas cultos aceitavam o "strambotto", que
poderia formar a primeira parte do projeto. Faltava a segunda. Não seria o caso
de se fazer, simplesmente, a união de dois "strambottos", sicilianos,
mesmo empregando, como complemento, digamos, o de seis versos, que também se
usava, pois, no fundo, permaneceria o mesmo defeito, isto é, a soma de duas
canções populares.
Em conseqüência, veio a idéia de se adicionar, ao
strambotto" de oito versos, alguns outros, de rimas diferentes e também
decassílabos, em nível mais alto, visando, para o novo modelo de poema, à conquista
de um conjunto, ao mesmo tempo, intenso, altissonante, aparatoso e comovedor.
Teria de ser, necessariamente, a fusão da poesia popular com a poesia de arte
maior.
O meio de superar a dificuldade viria com a justaposição de
uma estância independente da canção em voga.
Assim foi feito, e surgiu a segunda parte, mais requintada, que não era senão o acréscimo de dois tercetos decassílabos. Os tercetos já existiam, não só na Sicília, como no sul e no centro da Itália, com o nome antigo de "mute". Assim, CDC DCD, ou CDCDCD.
Neste último caso, unificados, para a formação, preferida
por muitos, de um canto monostrófico de seis versos.
Percebe-se, com isto, o mesmo cuidado de disposição das
rimas alternadas, na segunda parte, a exemplo do que acontecia na primeira. A
novidade consistia em serem diferentes as rimas das duas partes.
A Enciclopédia Italiana atribui a Giacomo da Lentini a escolha da seguinte forma originária, muito provável, do novo poema:
AB AB AB AB CDC DCD, ou
ABABABAB CDCDCD
Estava inventado o "sonetto", diminutivo italiano de "suono" (som, breve melodia), do latim "sonus".
Naquela indecisão primitiva, surgiram, na época, variações
como:
AB AB AB AB CDE CDE
ABABABAB CDECDE
De qualquer modo, entretanto, era sempre obedecida a sua estrutura interna, no que se referia às rimas: na primeira parte (quatro dísticos ou uma oitava) havia apenas duas rimas; e na segunda parte (dois tercetos ou um sexteto) duas e até três rimas.
Mario Praz, crítico e ensaísta literário italiano (Roma, 1896), assim se exprime, muito acertadamente: "O soneto originário tinha um princípio par, o da oitava, na qual se reconhecia uma forma siciliana popular, o "strambotto", seguido por um princípio ímpar, o dos tercetos. A causa dessa variação era que a melodia mudava na segunda parte".
O soneto teve imediata e larga repercussão em todo o país.
Nos primeiros tempos, foram compostos, sob o signo da escola
nascente, na Sicília e na Itália centro-meridional, cerca de mil sonetos.
Dentre eles, são atribuídos aos poetas da ilha 27, dos quais
25 teriam sido escritos por Giacomo da Lentini, segundo a Enciclopédia
Italiana. Além dos poetas da corte de Palermo, cultivaram, pois, o soneto,
naquela época anterior a Dante e Petrarca, inúmeros outros italianos,
distinguindo-se o bolonhês Guido Guinizelli, e os toscanos Chiaro Davanzeti,
Rustico de Filippo, Cecco Angiolieri, Guido Cavalcanti, Buonaggiunta degli
Orbiccíani, Folcacchiero dei Folcacchieri, Dante de Maiano e Guittone d'Arezzo,
este o mais famoso de todos.
(Das páginas 80 a 82 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)
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