O soneto é um conjunto poemático de número determinado de estâncias e seqüência estrófica imutável. Não está, pois, sujeito a alterações em suas bases. Obedece a um critério tradicional de que não se pode afastar, sob pena de desmentir a legitimidade de sua própria criação.
Entretanto,
serviu de cobaia para pseudo-reformadores, ou mesmo açodados exibicionistas que
tentaram, não raras vezes, demolir a sua tranqüila grandeza.
Mello
Nóbrega faz uma pergunta e ele mesmo a responde:
"Qual
o segredo dessa vitalidade que o abuso e o mau uso não conseguiram arrefecer,
senão em crises passageiras, de que o soneto sai sempre incólume e vitorioso,
em sua maciez e brilho antigo? O problema envolve questões de ordem
psicológica, ainda não suficientemente estudadas". (....) "Mas, a
forma sagrada continua alheia às discussões. Nenhum dos poemas de estrutura preestabelecida
conseguiu, como o soneto, sobrepor-se ao gosto do público
e à preferência dos letrados". (....) "Na balada, por exemplo, e no
canto-real, a persistência das rimas e a repetição obrigatória do verso-chave,
no fecho de cada estrofe e da meia estrofe do ofertório, estão a mostrar que a
peça inteira gira em redor de uma frase dominante, em que está a idéia central;
no triolé, no rondei, no rondó e no vilancete, com maior evidência, esse condicionamento
do poema a uma das suas partes, previamente composta, faz-se sentir com
monotonia. Sem extensão nem profundidade, tais gêneros poéticos prestam-se,
apenas, a temas leves e convencionais de amor e cortesanice" (....) “O
soneto, não obstante as regras severas de sua estruturação, oferece amplitude à
manifestação da "vis poética": não obriga à repetição de uma frase
temática; não condiciona a expressão à forma; não impõe rigidez, senão
equilíbrio. Joga com quatro ou cinco rimas, distribuídas por quatorze versos, o
que é, nas línguas de origem latina, farto recurso de consonância". (....)
“Tudo se ajusta em favor da harmonia e da condensação poética, evitando que a
força comunicativa se dilua em derrames verbais".
As
complicações que quiseram atribuir ao soneto limitaram-se, praticamente, à
troca da ordem das estâncias. Porém, mesmo querendo modificá-lo, não deixaram
de conservar, em qualquer hipótese, os quatorze versos do poema. O número
quatorze lhes parecia uma sombra (ou assombração?) que não os abandonava nunca.
Honra
lhes seja feita...
Enid
Hamer, na Inglaterra: como Carlos Lentzner e Guilherme Storck (1829-1905) na
Alemanha, defenderam a prática de se confeccionar o soneto em um só bloco, em
um conjunto cerrado:
quatorze
versos formando uma única estrofe, embora a distribuição das rimas fosse a
tradicional.
Oscar
Schade e Wakernagel (1806-1869), também alemães; além de
Borghini e Mussafia, faziam esta divisão: duas quadras e uma sextilha.
Schelley
escreveu sonetos com quatro tercetos e um dístico.
O poeta
francês Brizeux (Julien Auguste Pelage) (1803-1858), reviveu uma idéia antiga,
apresentando o soneto invertido: dois tercetos e dois quartetos. "Com
manifesto desrespeito às leis de equilíbrio das massas físicas" — lembra
Mello Nóbrega — "Brizeux viu no soneto tradicional uma pirâmide triangular
com o vértice assentado numa base quadrangular". — O nosso Luís Delfino escreveu,
com estas características, o soneto "Luz para o Dia".
Em
época recente, o poeta português Ernani Lencastre escreveu alguns sonetos com
quadras e tercetos alternados, tercetos entre os dois quartetos e até sextilhas
entre os dois quartetos. Apenas excentricidade, naturalmente.
Castilho
mostrava certa simpatia pela fixação do soneto em uma oitava e um sexteto, mas
concordou com a divisão clássica de dois quartetos e dois tercetos. Agostinho
de Campos defendeu o soneto de duas quadras e dois tercetos, mas observou o seguinte:
"Se a "forma lógica" (oitava e sexteto) houvesse sido respeitada
na apresentação gráfica do poema, o padrão clássico se teria conservado
incólume".
Shakespeare
(1564-1616), na Inglaterra, adotou a invenção de Thomas Wyatt (1503-1542), ou
de Henry Howard, Conde de Surrey (1517-1547), um dos dois: três quadras de
rimas independentes e um dístico final, rimado. É o chamado "soneto
inglês", ou "shakespeariano". Mas, será admissível, será
justo, será lícito, neste caso, falar-se em soneto? A respeito, há o seguinte
comentário do poeta português José Fernandes Costa (1848-1920): “O soneto
shakespeariano não seria chamado soneto em qualquer outra língua, daquelas onde
a forma petrarquiana prevaleceu. Em Shakespeare, ficou sendo uma composição de leitura
agradável, sob o ponto de vista rítmico; mas não é soneto".
Rigorosamente,
não se pode afirmar que o soneto, inventado na Sicília e usado pelos povos
românicos, teria sofrido uma "transformação" na Inglaterra. A verdade
é outra. A língua inglesa nos brindou com inúmeros sonetos petrarquianos. Mas,
a especificidade, ou seja, a natureza do idioma, como aconteceu com outros também
de origem não latina, principalmente o germânico, forçou essa fuga. Merece o
nosso respeito, mas se trata de uma produção poética diferente, só conhecida
como "soneto", porque foi adotada por um gênio da literatura
universal, Shakespeare.
William
Wordsworth (1770-1850), afastando-se, por vezes, de suas formas habituais (ora
petrarquiana, ora shakespeariana), usou o bloco monostrófico com rimas
estranhas, em ABBAACCADEDEFF.
Ficou,
entretanto, generalizada a forma tetrapartida de Guittone d'Arezzo, que,
afinal, consagrou o poema: duas quadras e dois tercetos. Acabaram por aceitá-la
Dante e Petrarca. Também Boileau. Também os grandes poetas de todos os tempos;
de ontem, de hoje e, por certo, de amanhã. Em sã consciência, ninguém admitiria
outra modalidade estrutural. Valerá, perenemente, a verdadeira tradição do
soneto, cuja sorte está lançada, em definitivo. Os poetas, no seu culto elevado
à Arte, são os intérpretes dos sentimentos
do povo. E a voz, do povo é a voz de Deus.
Não,
apenas, inovações gráficas se processaram no Soneto.
Mello
Nóbrega, evocando, em parte, o testemunho do retórico português Filipe Nunes
(1615), nos lembra, a respeito das deturpações sofridas pelo soneto:
—"Mais
grave que o repúdio periódico é o processo de continuado abastardamento a que
se tem submetido o mais nobre dos poemas de forma fixa: desrespeito à
disposição estrófica; chinesices inconseqüentes, como as apresentações
acrósticas, mesósficas, em losango; em Cruz de Santo André; curiosidades
inexpressivas, tais os sonetos miniaturais, de quatro, três, duas e uma sílaba";
(....) "sonetos terçados, contínuos, retrógrados, repetidos, ecóicos,
encadeados, bilíngües, trilingües e quadrilíngües (Góngora escreveu o soneto
"117" em espanhol, latim, italiano e português) "... "e até
o processo centônico foi aplicado à fúria
sonetifera". (....)
"Um
dos mais complicados de quantos sonetos se escreveram é, sem dúvida, o de Jean
de Schelandre, conservado por Colletet, em sua "Vie des poètes
français", e que Charles Asselineau classificou como "le phénix, le merle
blanc de la poésie difficile". Verdadeiro quebra-cabeças rimado, é, a um
só tempo, caudato, acróstico, mesóstico, em losango e em Cruz de Santo
André".
Mas,
Mello Nóbrega acrescenta:
—"Em
língua portuguesa nenhum soneto conhecemos mais trabalhado e precioso que o
composto, em 1720, por Francisco de Souza Almada, em louvor do Duque de Aveiro,
quebra-cabeças junto do qual o de Schelandre é simples exercício de paciência, modesto
e fácil. A disposição desse poema protéico e labiríntico permite que a leitura
se faça de numerosíssimas maneiras. Bluteau, transcrevendo-o, assim lhe analisa
as particularidades": (....) "Contém este soneto 87.178.291.200
combinações e outros tantos sonetos em que se transfigura, conforme a regra
aritmética combinatória."
É muito
difícil acreditar-se na matemática de Bluteau, diante de números tão
vertiginosos. Não sabemos qual a fonte de Mello Nóbrega, mas deve tratar-se do
padre (ou Dom) Rafael Bluteau, filho de pais franceses, nascido em Londres e
falecido em Lisboa, aos 96 anos de idade (1638-1734). Orador sacro, eminente
lexicólogo e profundo conhecedor de várias línguas, principalmente a portuguesa.
Autor do famoso "Vocabulário Português e Latinos (1712-1721), em oito
volumes. Também autor de um "Dicionario castellano y portugués",
publicado por iniciativa de D. João V, de Portugal, que nasceu em 1689 e reinou
de 1708 a 1750, quando faleceu.
Existiram
os sonetos labirínticos; os serpentinos; o soneto duplo (inconho ou xifópago),
composto de dois sonetos unidos, formando um só todo monstruoso, com 28 versos
distribuídos por quatro quadras e quatro tercetos.
Fizeram
sonetos com 17 versos (14 normais e um terceto: os sonetos com
"estrambote" em uso na Itália, outrora. Traziam como apêndice o
estrambote (a cauda), rimando o 15º verso com o 14º; e os 16º e 17º entre si. Tal costume foi, há muito, abolido,
deixando apenas, como reminiscência, o adjetivo "estrambótico",
significando esquisito, extravagante. Mas, teimoso e exagerado, o poeta
norte-americano Wilmon Brewer publicou, em 1937, a coletânea "Sonnets and
sestinas", incluindo um soneto com estrambote invertido e inopinado: um
dístico (e não um terceto), antes dos 14 versos.
E houve
e há curiosidades sem conta, como: sonetos de rimas raríssimas; sonetos sem
verbo; sem determinada vogal; ou com predomínio de uma letra; e até a velha
"novidade" dos sonetos sem rimas, feitos pelo próprio Du Bellay.
Por que
"soneto livre"? Quatorze versos sem rimas, agrupados arbitrariamente em quadras e tercetos, não
formam um soneto. Quatorze versos sem a tradicional distribuição estrófica, sem
sentido unitário, sem ritmo e sem rimas, repudiando as suas regras seculares, como alguns "modernistas" querem, não constituem um soneto. Não há soneto, mas uma poesia que nada
tem a ver com esse poema tradicional.
É o
caso, por exemplo, de Augusto Frederico Schmidt.
Dentre
as variedades que mais se afastam do padrão original, cumpre assinalar a
"Coroa de Sonetos" e a "Grinalda de Sonetos ".
A Coroa
de Sonetos" mais credenciada, aquela que, realmente, merece esse título,
pelo seu significado e pelo valor de seu artesanato é a "Coroa Alemã", que compreende uma série de 15 sonetos clássicos, com versos e rimas
comprometidos. O verso final de cada um dos primeiros 13 sonetos deve ser
repetido no do seguinte. Obviamente, o verso final do 14º soneto não participa dessa repetição, mas exercerá um
papel importante no remate do projeto, como se vai ver. E o 15º soneto (a síntese, a coroação do poema), com sentido
completo, é, então, constituído pelos versos finais dos 14 sonetos que o
antecedem.
Trata-se,
pois, de um trabalho preparado habilidosa e gradualmente, antevendo-se sempre a
construção lógica do 15º soneto, que está feito desde o instante
em que o autor, um ourives da arte escreveu o último verso do 14º soneto.
Há
outras formações, mas esta é a preferida para a "Coroa de Sonetos".
Composições
desse tipo, sem rima, não podem, pela sua própria natureza, formar a Coroa de
Sonetos. Sem as rimas, não há valor poético na feitura dessa seqüência de 15
"sonetos", que será, apenas, um poema de caráter moderno, sem compromisso
com a
tradicional e — diga-se a bem da verdade — difícil Coroa de Sonetos. Difícil e,
por isso mesmo, pouco cultivada.
Passamos
a relacionar alguns poetas que escreveram Coroas de Sonetos dignas de menção, e
cujas obras temos em nosso poder:
Jacy
Pacheco — "Os tempos são chegados...” (10 sílabas)
Humberto
Lyrio da Silva — "Passionário" (10 sílabas)
Leonardo
Henke — "A Júlia Galeno" (10 sílabas)
Mário
Newton Filho — "Sonetos de Coroa" (10 sílabas)
Severino
Uchoa — "Coroa de Espinhos" (10 sílabas)
Severino
Uchoa — "Coroa Brasileira de Sonetos" (10 sílabas)
Manoel
Fernandes Filho — "Lira da Saudade" (11 sílabas)
Alcy
Ribeiro Souto Maior — "A poesia e o poeta" (10 sílabas)
José
Geraldo Pires de Mello — "Chama de Amor" (12 sílabas)
José
Geraldo Pires de Mello — "De braços dados" (10 sílabas)
Mário
Cabral — "Juízo Final" (10
sílabas)
Evandro
Moreira —"Lições da Vida e da Alma" (10 sílabas)
"Ao
Soneto Luso-Brasileiro" (10 sílabas) — Elaborado por 14 poetas (cada poeta
um soneto) : Domingos Carvalho da Silva; Stella Leonardos; Êdison Moreira;
Mauro Mota; Idelma Ribeiro de Faria; Afrânio Zuccolotto; Gilberto Mendonça
Teles; Waldemar Lopes; Odylo Costa, filho; Domingos Paolielio; Anderson Braga
Horta; José Paulo Paes; Alphonsus de Guimaraens Filho;e Renata Pallottini.
A
"Grinalda de Sonetos" é uma coletânea de sonetos, geralmente do mesmo
autor, abordando o mesmo tema.
A
rigor, não há limite para o número de sonetos de uma "grinalda", que
muitos confundem com a "coroa".
Alphonsus
de Guimaraens fez uma "grinalda" com 49 sonetos, em sete grupos de
sete sonetos, sendo cada grupo consagrado a uma das Sete Dores de Maria.
Castro
Alves escreveu "Oito Sombras", oito sonetos oferecidos a figuras
femininas.
Fernando
Pessoa escreveu uma "grinalda" de 14 sonetos, "Passos da
Cruz". Antero de Quental as fazia de seis e oito sonetos.
Há a
"grinalda elegíaca", destinada a prantear alguém. Pedro Vergara
escreveu uma, de 21 sonetos.
Não
vamos ao cúmulo de admitir a "grinalda" com número muito grande de
sonetos. Seria, então, o caso de citarmos o poeta italiano Degli Azzi, que
traduziu todo o "Gênesis" em sonetos.
Ou o
caso de Renato Travassos, que escreveu todo um livro de 102 sonetos com o mesmo
tema: "Meus Filhos"; e outro livro com 152 sonetos sobre "A Vida
de Jesus". Ou, ainda, o caso de Benedito Lopes, que publicou um volume de
50 sonetos sobre Jesus, Madalena e Judas".
Na gama
inumerável de variações do soneto, podemos, ainda, incluir os polêmicos, os
belicosos, os patéticos, os satíricos, os irônicos, os burlescos, os
louvaminheiros, os rogatórios, os fesceninos e até os de propaganda comercial.
Todas
essas extravagâncias, todas essas demonstrações de virtuosismo, muitas vezes
frutos de habilidade e de talento, não conseguiram, entretanto, desviar o
soneto de sua verdadeira finalidade, que é servir de porta-voz do lirismo.
E quem
o apreciar sinceramente, não se esquecerá de que ele há de ser, sempre, uma
pequena canção amorosa.
Foi
criado assim, e assim continuará, arrostando, com bravura e com nobreza, as
desfigurações que lhe querem impor e os crimes de lesa-poesia que rondam sua
vida e seu destino.
(Das páginas 175 a 180 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)
UM ENCONTRO PASSADO
ResponderExcluirMário Scherer
Noite de luar, num bar eu passo o tempo,
Quando adentra irreverente o Passado
Sem se anunciar, sujo, amarrotado,
Junto a mim ele vem tomar assento.
Nos seus olhos gelados dança o vento
De quimeras mortas que ao seu lado
Renascem num bando e no bando alado
Antigas lembranças e velhos tormentos.
Chamo o garçom, e já impaciente
Pago a conta e logo vou embora
Sem despedir-me do impertinente.
O Remorso que me espreitava fora
Faz-me um convite... Volto penitente,
Os três frente a frente, e o Passado chora.