São Paulo (1865-1963)
MISÉRIA HUMANA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Vi-o, pobre mendigo, exausto, embriagado,
tonto, quase a cair e, mesmo assim, sorria!
Em seu lânguido olhar tristonho, desvairado,
uma história de amor, qualquer, se traduzia.
Artista e sonhador, talvez. Um fascinado
pela música, o som do piano o seduzia...
E, com alma, arrancou do seio do teclado,
num prelúdio divino — um mundo de harmonia.
E chorou. Brandamente a música soava.
Do pianista infeliz as faces deslizava
o pranto — água lustral que as almas purifica.
Chorei. Gemia o piano ao jeito de um lamento
e, para suavizar do artista o sofrimento,
pela primeira vez eu desejei ser rica!
DOR SUPREMA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
É noite... Chove... A lua, envolta em névoas, sonha
no amplo e deserto céu. Do meu quarto sombrio,
eu, romeira sem fé, na solidão medonha,
o cadáver de um sonho emocional vigio.
Eu!... Quem sou eu? — Não sei! Talvez que me suponha
a turba, um ser demente, um pobre ser doentio...
Porque não sabe a lenda exótica e tristonha
que há nas sombras ferais do meu nublado estio.
E vai a noite a meio... e as folhas, uma a uma,
nos soláos de minh'alma o pensamento exuma,
divagando revel pelas regiões de outr'ora.
E eu quisera, relendo o malfadado poema,
na suprema aflição de minha dor suprema,
livremente chorar, como esta noite chora.
RELÍQUIAS
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Nesta velha caixinha abandonada,
que a mão do tempo fez mudar de cor,
retalhos de minh'alma emocionada
guardei, outr'ora, com carinho e amor...
Relíquias... Eram cantos da alvorada,
e hoje traduzem nostalgia e dor.
Restos mortais de uma ilusão doirada,
vago perfume de sidérea flor.
Ai! Tudo o vento do destino leva!
A luz se apaga e, a divagar em treva,
eram lembranças que doridas são!
Na vida é tudo assim! Tudo envelhece
mas dentro d'alma o sonho não fenece
e o coração... é sempre o coração.
PAINEL
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Manhã. Um raio doirado
do sol, risonho e gentil,
doideja no emaranhado
das trepadeiras de Abril.
Um beija-flor namorado,
fremente, leve, sutil,
sobre a esmeralda do prado,
rufla as asas de oiro e anil.
Abre a corola odorosa
à borboleta mimosa,
vermelha flor do romã:
Canta, no bosque vizinho,
melodioso passarinho
saudando o sol da manhã.
SONHANDO...
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Daquela mesma choça humilde, pequenina,
sombreada por vetusto e pálido chorão,
estranha voz ouvi, mirífica, divina,
cantando a primavera em plena floração.
Sorria-me a esperança — estrela que ilumina
e, para o amor, desperta o humano coração...
O passado... era morto. Eu tinha na retina
um doirado porvir de sonho e ilusão.
Mas, tão cedo acordei! Amanhecia. A aurora
vinha tingindo o céu de rubra cor de amora,
chilreava uma andorinha alegre, no beiral.
Acordei. Quem me dera, à sombra de uma choça
viver, sonhando assim a glória de ser moça
e nunca mais volver à minha vida real!...
EU E A MUSA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Ainda às vezes, a musa carinhosa
que outr'ora me sorriu com afeição,
vem meigamente desfolhando rosa
sobre o esquife de minha inspiração.
E, ao jeito de um clarão de nebulosa,
brilha em minh'alma um pálido clarão
e o som mavioso de uma voz saudosa
canta em minha perene solidão.
Timidamente a lira preludia.
A musa, num transporte de alegria,
rufla as asas de cândido cetim.
Mas... o destino, com desdém, perverso,
unge de fel a taça do meu verso
e a musa vem chorar junto de mim.
DEUS E A NATUREZA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Deus! Quem pode negar sua existência, ouvindo
das entranhas do mar o ruído assustador
À noite, contemplando o céu profundo, infindo,
quem não sente a expressão do teu divino amor?
Dizem do Onipotente o sol risonho e lindo,
o cedro e a hera, a estrela, o verme, o musgo e a flor:
Em contínuo evoluir, a eterna lei cumprindo,
a própria criação revela o Criador.
Do livro universal nas páginas brilhantes,
no poema rosicler de auroras fascinantes
resplandecem Verdade, Inteligência e Luz!
E a natureza — espelho argênteo, cristalino,
reflete o Ser supremo, o Artífice divino,
na maravilha ideal, que sua mão produz.
ESTA É A LEI
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Minh'alma ensaia o vôo aos páramos celestes,
percebo-lhe o rumor das asas de cetim.
Mais um dia, amanhã, talvez... prestes, bem prestes,
da terrena jornada há de chegar ao fim.
E partirá, deixando as desbotadas vestes
— o corpo... E ninguém mais se lembrará de mim.
A matéria pertence à terra, entre os ciprestes,
a alma — à etérea mansão de luz, oiro e marfim.
Cumpra-se a lei fatal. O mundo é hospedaria
onde a felicidade sonho, uma utopia,
o sofrimento é real e soberana é a dor.
Ergue as asas, minh'alma, à célia imensidade,
ao divino esplendor do Templo da Verdade,
onde a luz é poesia e a eternidade é amor.
DOR SECRETA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Se alguém pudesse ler a página sombria
que dentro de minh'alma o fado me traçou,
talvez me compreendesse a intérmina agonia,
a dor, que, rudemente, a vida me enlutou.
Sofrer é meu destino e, se acaso, algum dia
um sorriso glacial aos lábios me assomou,
esse gesto não era a expressão de alegria,
era a ânsia de reerguer o sonho, que tombou!
Vivo longe do mundo, ao mundo indiferente,
tateando a solidão nublada eternamente,
idealizando a luz pulquérrima do Além...
O calvário é tão alto, a cruz é tão pesada!
E nenhum cireneu encontro pela estrada
e surda à minha voz, a morte nunca vem!
A RECOMPENSA
Emiliana Delminda A. Sgueglia
... E eu lutei e venci! (Vencida fosse, embora,
pelo sonhado ideal, que na alma acalentei)
porque, altiva, enfrentei a vida sem aurora,
e, do estrito dever, não transgredi a lei.
Da consciência tranqüila a clara voz sonora,
que faz de um desgraçado um venturoso rei,
traz sempre um galardão — um bem que a dor minora
a quem luta com fé, assim como eu lutei.
Com ânimo arredei as pedras do caminho,
mãos calosas, cabelo em pleno desalinho,
fronte banhada em suor, no cérebro — um vulcão.
Mas, nessa insana lida, a musa me sorria,
eu sentia o roçar das asas da poesia
e o verso a transbordar na taça da emoção.
CEGA?!
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Lateja-me no olhar, a dor que me tortura
e eu tremo ante a sinistra idéia de ser cega!
E, como trilharei, meu Deus, a senda escura
eu, a quem o destino avaro tudo nega?
E como viverei, se a mente não sossega
em torno do ideal, que esplende, que fulgura!
Oh! por que não arranca a vida que me lega,
esse Deus que me envia a taça de amargura?!
Dá-me tua mão divina, ó doce Nazareno,
quando eu sorver da vida, o último veneno,
quando pisar, sem ver, da vida nos abrolhos.
Dá-me a consolação da fé, dá-me esperança
de ver fulgir, no Além, o iris da bonança,
perca embora, na terra, a frouxa luz dos olhos.
MEU ANIVERSÁRIO
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Este há de ser, decerto o derradeiro!
(E nem os quero mais). Setenta e três!
Levou-me uma ilusão cada Janeiro,
trouxe-me um desengano cada mês.
Setenta e três! À sombra de um salgueiro,
prestes, bem prestes, dormirei de vez,
e, em novo mundo lúcido e fagueiro,
feliz minh'alma viverá, talvez!
Na senda pedregosa do Calvário,
hei desfiado a chorar, todo um rosário
de dores, de martírio e de aflição...
Basta meu Deus, o coração padece,
leva minh'alma envolta numa prece,
deixa, em paz, descansar, meu coração!
PASSADO LONGÍNQUO
Emiliana Delminda A. Sgueglia
Saudade! Doce-amargo de infelizes,
delicioso pungir de acerbo espinho...
(Garret)
Há mais de meio século! Eu vivia
à sombra de uma choça pequenina
lá, onde canta alegre a cotovia,
onde soluça a fonte cristalina.
E quando a poeira do luar caía,
doirando os mal-me-queres da campina,
ali — tudo era encanto — era poesia,
tornando a solidão quase divina!
Límpido céu, eterna primavera...
Das nuvens desafiando a sombra austera
brilhava o sol esplêndido e risonho.
E a rosa da Esperança, sempre viva,
despertava minh'alma sensitiva
para a função sentimental do Sonho.
FONTE: Livro "Revivendo Emiliana Delminda", Santos, 1983
FONTE: Livro "Revivendo Emiliana Delminda", Santos, 1983
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