Cada
ser humano, ao nascer, traz, no corpo e na alma, um destino, bom ou mau,
traçado por mãos invisíveis.
O
poeta, por exemplo, não é um privilegiado, a quem esteja reservada apenas a
glória. É, muitas vezes, alguém que carrega no âmago, ainda que bordado de
espumas e claridades, um oceano de amargores; alguém que, a um gesto de seus
braços, pode perceber junto de si, projetada pelo sol do poente, a sombra de uma
cruz.
Os
santos cronistas da Vida de Jesus são unânimes em afirmar que Ele, nas ruas e
nas estradas, quando percorria as cidades, as aldeias e os povoados, realizava
maravilhas: os cegos viam, os coxos andavam, os leprosos recuperavam a saúde,
os surdos ouviam, os mortos ressuscitavam. Para o sofrimento dos infortunados que,
suplicantes, o assediavam, Ele teve, sempre, um olhar de misericórdia, uma
palavra de afeto, o lenitivo de uma cura.
Conta-nos
o evangelista São Mateus que, certa vez, "vendo Jesus a multidão, subiu ao
monte, e quando se sentou aproximaram-se d'Ele os discípulos; e, abrindo a
boca, Ele os ensinava".
Chamou
bem-aventurados os pobres em espírito; os que choram; os mansos; os aflitos; os
que têm fome e sede de justiça; os misericordiosos; os limpos de coração; os
que promovem a paz; os que padecem perseguições pela justiça; os injuriados e
perseguidos por Sua causa. (....) Disse que não viera ao mundo para revogar a
Lei e os Profetas. Veio para consumá-los. (....) Recriou os mandamentos da Lei
de Deus. (....) Ensinou a orar, declinando, expressão por expressão, a prece
"Pai Nosso". (....) Pediu a todos: "Não vos inquieteis por vossa
vida sobre o que haveis de comer, nem por vosso corpo sobre o que haveis de
vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestido? Olhai
as aves do céu; não semeiam nem ceifam, nem recolhem em celeiros, e vosso Pai
celeste as alimenta. Não valeis vós mais do que elas? Olhai os lírios do campo
como crescem: não se fadigam, nem fiam. Digo-vos que nem Salomão, em toda glória,
se vestiu como um deles. (....) Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus e a
sua justiça, e tudo isso vos será dado de acréscimo. Pedi e dar-se-vos-á;
buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Como é estreita a porta e como
apertada é a senda que leva à vida, são poucos os que acertam com ela. (....) Guardai-vos
dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelhas, mas por dentro são lobos
vorazes. (....) Não julgueis, para não serdes julgados”...
O
Sermão da Montanha, que Aparício Fernandes transcreve em seu notável livro,
"O Grande Rei", é "a mais sublime e grandiosa expressão moral,
filosófica e religiosa de todos os tempos”.
Jesus
amava os pobres, desprotegidos e enfermos. Parece, entretanto, que dispensava
maior carinho àqueles doentes que passavam pela terrível provação do hoje
chamado "mal de Hansen”. Rememoremos esta página comovente, colhida na mesma
fonte, ou seja, Aparício Fernandes; é a tradução de pequena parte do capítulo
"Jesus e os pobres", da obra "O Nazareno", de Sholem Asch.
—
"Já pelo caminho havíamos encontrado aleijados, cegos e mendigos de rumo
para ali, ajudando-se uns aos outros, numa procissão de miséria humana. E agora
víamo-los aos montes, sentados na lama do quintal. E que alegria brilhou em
suas faces, quantas mãos e vozes não se levantaram, assim que apareceu o rabi
das vestes brancas, acompanhado de seus discípulos! Aquela pobre gente pôs-se a
arrastar-se em sua direção...”
“... Breve
nos chegou a voz do rabi, e não era a que estávamos afeitos a ouvir nas praças
de mercado e pátios do Templo, em censura aos ricos e poderosos. Em vez de enérgica,
era meiga e suave como a música. Era como se cantasse uma dolorosa melodia que
os abrangesse a todos: ao cego que agarrava a fímbria de sua veste e não queria
largá-la; ao coberto de pústulas, cujos andrajos se grudavam, dando-lhe
aparência de leproso. A este o rabi ergueu e abraçou, e sua barba tocou a cabeça
nua do homem. Depois falou, oscilando de um lado e outro:
—"O
sofrimento, meu filho, é a fonte do amor. O sofrimento é a graça, a grande
graça que nosso Pai do céu derrama sobre nós. Porque o sofrimento torna
submissos os corações dos homens. Aquele que não sofre, julga-se colocado sobre
uma alta rocha que ele próprio erigiu. E não vê seu irmão; só vê a si mesmo.
Não crê
em ninguém; só crê em sua própria força". (....) “Mas, o homem a quem o
Senhor deu o sofrimento, esse descobrirá que suas dores são cordas que o atam
ao Pai do céu. Seu coração está sempre
desperto para sentir a dor de seu irmão. Manda-vos o Senhor aflições, e vos faz
pequenos na terra, para que sejais grandes no céu".
"O
rabi ergueu as mãos e manteve-as sobre as cabeças daqueles deserdados da sorte;
ali, a seus pés, como um mar de imundície, e falou:
—"Bem-aventurados
os esmoídos pela doença e a miséria, porque pagam os seus pecados nesta vida.
Mas que brilhante será a parte deles no outro mundo, na vida eterna!"
*
A
Poesia não tem o poder de Deus, mas possui uma força recôndita que faz, pelo
menos, minorar o sofrimento. Ela escolhe seus eleitos, não raro, entre aqueles
que mais sofrem e que são capazes, pelo espírito, de transformar em beleza
tranqüila as agruras de uma solitude dolorosa.
A
Poesia é, muitas vezes, a felicidade dos infelizes.
*
O paraense Antônio Tavenard (1908-1936)
figura com destaque entre os poetas que, no Brasil, viram-se atingidos pela
tragédia da lepra. Aos 16 anos começou a sentir a doença, que não pôde mais
encobrir a partir dos 18.
Além de
poeta inspirado, possuído de uma heróica resignação, foi, também, um excelente
prosador.
Seu
pobre pai, desolado e em pranto, mandou fazer, no fundo do quintal da
residência da família, uma casinha, para que, ao menos, a vida espiritual e
artística do filho pudesse ser mantida.
Foi ali
que o poeta morreu.
Leiamos
este soneto seu, "Marcado pela dor":
MARCADO PELA DOR
Antônio Tavernard
Um ser que já nasceu predestinado
para encontrar a Dor em seu caminho;
que passou pela vida tão sozinho,
chorando sempre e sempre torturado;
num silêncio de angústia sufocado,
tendo no coração acúleo espinho;
sem nunca se vingar; cardo maninho
pelo sol das desgraças causticado...
Esse que passa e que nos sonhos leva
tanta luz a brilhar e tanta treva,
qual a noite mais hórrida de breu...
Esse ser, essa sombra, essa saudade
(dicionário que exclui "Felicidade")
sou eu... Sou eu... Unicamente eu!...
"Versos
passados" é um soneto que retrata bem o que ia dentro de seu coração
sofredor:
VERSOS PASSADOS
Antônio Tavernard
Aqueles versos que escrevi sorrindo;
aqueles versos que escrevi chorando;
alguns — doces verdades sussurrando,
outros — dizeres falsos rementindo.
Foram-se todos, um a um, partindo
para não mais voltar... E, soluçando,
eu, louco sonhador, fico esperando,
a minha ansiedade inda iludindo...
Desfolharam-se, assim, quais malmequeres,
por sobre o amor de todas as mulheres
que amei... Mas quando, agora, relembrando,
os vou, pausadamente, repetindo,
faz-me sorrir o que escrevi chorando,
faz-me chorar o que escrevi sorrindo...
faz-me chorar o que escrevi sorrindo...
"Rosa
Humana", Antônio Tavenard ofereceu a sua prima Maria Helena Frazão, com a
seguinte dedicatória:
"Teu
retrato inspirou-me este soneto... Como
certas alvoradas inspiram, às vezes, pássaros velhos que já não sabem cantar.
Mas o cântico nunca é tão belo como a alvorada":
ROSA HUMANA
Antônio Tavernard
(à sua prima Maria Helena Frazão)
Há qualquer coisa de beleza antiga
nessa beleza moça do teu rosto...
Alguma coisa como, prima amiga,
em sol-nascente uns brilhos do sol-posto...
Há quem pense ao passares, há quem diga:
— "Esses olhos são causa de desgosto
para as estrelas do Senhor!..." — Intriga
entre os astros do Céu e os do teu rosto!...
Rosa com alma, rosa humana, rosa
com um nome de mulher maravilhosa,
com um corpo de mulher a adolescer,
Maria Helena — minha Prima-Flor —
que Deus escolha com cuidado e amor
a mão do noivo que te flor colher!...
Outro
poeta que morreu leproso foi Ernani
Vieira (1897-1940). Ele nasceu no
Amazonas, mas exerceu, no Pará, quase toda a sua vida literária.
Tinha a
tristeza natural de quem é portador daquela doença, mas não foi um desesperado.
Faleceu num Leprosário, em Belém.
Vejamos
esta belíssima "Página íntima":
PÁGINA ÍNTIMA
Ernani Vieira
Meus pobres barcos de papel... Um dia
eu deixei de os fazer... Um velho sino
— no meio ambiente em lágrimas — dizia
do "Resquiescat in Pace" de um Destino...
Era defunta minha Mãe... Menino,
inconsciente da dor que me feria,
eu sofri na canção do velho sino,
não sabendo, entretanto, o que sofria...
Hoje, Homem-Poeta, gôndola sem Norte,
sofro o Inverno, ora ríspido, ora brando,
e me ponho a pensar naquela morte...
Minha Mãe! E do Inverno na investida,
do Céu adoro as lágrimas — chorando
minha Mãe... meus barquinhos... minha vida!...
Seu
"amazonismo" era ardente. E o coração não raro explodia pelas coisas
do Amazonas, como neste grande soneto "Tapuia":
TAPUIA
Ernani Vieira
Eis-me, brandindo, alígero, o tacape,
por defender-te dos Aventureiros,
sem que haja um só, por mais revel, que escape
dos meus botes fatais como certeiros.
Eis-me, Tapuia! E por que a clave empape
no sangue dos cobardes, dos traiçoeiros,
nem mesmo encontre aquele que desguape
este porte que é bem dos Brasileiros...
Que, pois, a vida e o teu amor percorram
meu sangue heróico, dos Barés oriundo,
e todos quantos te desejam — morram!
Porque, Tapuia, no final conluio
do teu afeto, afrontarei o Mundo
com a força e a graça do Varão Tapuio!...
____________
Verso 7 - Aurélio não registra "desguapar",
mas "desguampar": — Bras.RS. Tirar as guampas
ou cornos de (a rês), serrando-os ou usando
de outro meio, para lhe permitir maior
desenvolvimento físico.
______________
______________
Ernani
Vieira é considerado um perfeito imitador do estilo científico de Augusto dos
Anjos, como se pode aquilatar pelos seus dois fortes sonetos que passamos a
transcrever.
O
primeiro é "Dentro da Cidade da Lepra":
DENTRO DA CIDADE DA LEPRA
Ernani Vieira
Chagas e chagas... Pestilência... Sangue...
Homens, mulheres, crianças... Meus irmãos...
E, sobretudo, a circunstância exangue
de todos — todos! — terem sido sãos!
Uns, com o rosto disforme... Outros, sem mãos...
Muitos, sem pés ou sem nariz... E, langue,
vagos vislumbres de vigores vãos,
no escapamento atro e fatal do sangue...
E a Ciência é vaga... E a Medicina é vaga,
diante da solução desse Problema
da cicatrização de tanta chaga!
E em meio a mudos desesperos e ais,
vibra a Promiscuidade como esquema,
— e os "menos" doentes vão ficando "mais"!...
E o
segundo é "Dona Tuberculosa":
DONA TUBERCULOSA
Ernani Vieira
Surge, esgalga e serena, e vai, de par em par,
com a sua Tosse — (o seu Presente e o seu Porvir!) —,
— os brônquios a tossir, cansados de sangrar...
— a garganta a sangrar, cansada de tossir!
É tão calma, entretanto, e linda, e singular,
(Messalina do Nada à espera de um Vizir),
que seus olhos, assim, não cansam de sonhar,
que seus lábios, assim, não cansam de sorrir!...
Tão nova! E tem no peito a Velhice Precoce,
que é de quem filosofa e sabe não ter queixa,
— pela Resinação da Lógica da Tosse...
Dona Tuberculosa!... E lá prossegue, louca,
em procura da Vida — a mesma que ela deixa
para trás —, que lhe foge... aos poucos... pela boca...
O Pará deu outro poeta excelente, com o
mesmo destino sofredor de Antônio Tavenard e Ernani Vieira.
Foi Firmo Antônio de Oliveira da Paz
(1880-1927), nascido em Santarém e falecido em Campinas, Estado de São
Paulo.
É dele
este formoso soneto "A semente":
A SEMENTE
Firmo Antônio de Oliveira da Paz
Eu te lanço na terra, ó pequena semente!
Germina! Surge à vida! Eleva-te do chão!
Aguardo o teu nascer com o mesmo anseio ardente
de um pai que espera um filho ainda em gestação!
Se desde este momento o meu carinho sente
prazer em te criar, que mais seria, então,
se te pudesse ver em árvore potente,
no longínquo futuro abrindo a floração!
Hás de ser o triunfal adorno da paisagem!
— Sem nada receber, darás ameno abrigo
a quem te procurar, na sombra ou na ramagem!
Cumprirás com justeza o divino preceito
do Bem — fazendo o Bem a amigo e ao inimigo,
resgatando por mim o mal que eu tenho feito!...
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