Espanha

A Alma Errante do Soneto



ESPANHA
  
A exemplo do que aconteceu na Itália e na França, nasceram do latim popular, na península ibérica, muitos dialetos, destacando-se, entre eles, o catalão, o leonês, o aragonês, o castelhano e o galego. Até o século XIII, o galego imperou, mesmo no reino de Castela. O catalão era a língua mais usual no reino de Aragão. Mas, daquela luta entre os diversos dialetos, surgiu, finalmente, o predomínio do castelhano, que, no mesmo século XIII, foi oficializado por Fernando III, o Santo, substituindo o latim. E seu neto Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Castela, acabou por preferir mesmo o castelhano, transformando-o em idioma nacional.


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A literatura espanhola pode ser dividida em três grandes ciclos:

 — o ciclo medieval, que se prolongou por vários séculos e que se caracterizou por uma grande espontaneidade;

— o ciclo designado por "Século de Ouro", que durou, na realidade, mais de um século, do início do Renascimento ao final do barroco, e que valeu pela sua consciência histórico-cultural;

— e, depois de um intervalo bastante longo, o ciclo da literatura moderna, iniciada com a chamada "geração de “98" (1898), o "novo Século de Ouro", e que se distingue pelo seu lirismo.


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O "Cantar de Mio Cid", escrito, até prova em contrário, por um jogral anônimo, em 1140, é o maior monumento da literatura medieval espanhola. É um relato das façanhas de D. Rodrigo Diaz de Bivar, "El Cid" ou "El Campeador", nas lutas travadas contra os muçulmanos pela conquista da península. (Cid, em árabe, quer dizer "senhor").
O poema é composto de 3.730 versos irregulares, predominando o ritmo de 14 sílabas.

Segundo José Maria Valverde, em sua "História da Literatura Espanhola", este poema chegou até nós extraído de um caderno (cópia manuscrita) pertencente ao jogral Per Abad. A cópia foi "estudada e publicada em edição crítica por Menendez Pidal".

Depois (séculos XII e XIII), acentuou-se um influxo provençal, através de poemas breves, narrativos.
Ainda no século XIII, atingiu a Espanha uma outra influência francesa, esta mais nórdica.
A ela mostrou-se muito sensível o primeiro poeta espanhol de quem se sabe o nome: Gonçalo de Berceo (1180-1246), que foi monge de São Millán de Cogolla, e morreu em meados daquele século. Sua melhor obra é "Los Milagros de Nuestra Señora", com a produção poética estimada em doze mil versos.

Nesta altura, podemos lembrar que, como sucedeu na maior parte dos países europeus, as letras espanholas, antes dominadas pela arte provençal, foram intensamente influenciadas pelo Renascimento cultural, surgido na Itália. Dante e Petrarca vieram a ser os modelos mais antigos e mais constantes.

Afonso X, o Sábio, liderou uma literatura jurídica, científica e histórica. Foi ele quem primeiro escreveu, na Espanha, sobre direito: "O Código das Sete Partidas". Escreveu, também, "Libros del saber de Astronomia", e na oportunidade teria dito que, "por mais admiráveis que fossem as esferas celestes, criadas por Deus, se tivesse sido ele encarregado de as fazer, teria realizado coisa mais perfeita". Como historiador apaixonado, exclamou, ao concluir os louvores às riquezas de seu país: — "Ai, Espanha, não há língua nem engenho que possa contar os teus bens".
Em galaico-português escreveu, aproximadamente, 30 cantigas, incluídas nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Afonso X, como poeta lírico, não se limitou à prática do gênero das cantigas-de-amigo, pois escreveu um cancioneiro religioso: as "Cantigas de Santa Maria", em português, com 420 poemas musicados.


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Na história da literatura espanhola, o século XIV se constituiu num período de renovação, no qual se destacou o "Libro de Buen Amor", do arcipreste de Hita, Juan Ruiz (1285-1350), a obra máxima da época. Esse livro foi chamado a "Comédia Humana da Idade Média".


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No século XV se consolidou o gênero das baladas narrativas e líricas.  É o Romanceiro, fenômeno característico da literatura espanhola e que, aliás, chegou até os nossos dias, na memória do povo espanhol, através de fragmentos, dos cantares de gesta. O Romanceiro espanhol não contém apenas gestas espanholas, mas, também, francesas e, raramente, italianas.

José Maria Valverde, ao se referir ao século XV na literatura daquele país, escreve: — "Essa centúria — recordemo-lo — porá fim à Idade Média e à Reconquista. com a expulsão dos muçulmanos, apenas alguns meses antes de se iniciar, por virtude do descobrimento de Colombo, a conquista da América. É como se a tendência bélica dos Espanhóis não pudesse refrear-se por força do impulso adquirido e necessitasse de transferir, imediatamente, para outro continente, a cruzada, até então, apenas de âmbito doméstico".

Aliás, o "canto de cisne" da Idade Média na poesia espa-nhola foram as "Coplas" ("Coplas por la muerte de su padre Maese Don Rodrigo"), de Jorge Manrique (1440-1479), elegia universalmente conhecida e considerada entre as melhores obras da poesia espanhola de todos os tempos. Contém cerca de 500 versos, em sextilhas.

A partir dessa época, a vida da poesia adquiriu uma força ainda não igualada no país.

Em relação à imitação dos temas, a influência italiana, embora desordenada, se fez sentir muito cedo, mas, apenas, veio a se firmar no século seguinte, quando, com grande atraso, os poetas espanhóis iniciaram sua convivência com Dante e Petrarca.

Quanto à forma da poesia, apenas o Marquês de Santillana conseguia, então, assimilá-la e, mesmo assim, sem grande êxito. O rei D. João II foi um protetor de poetas, criando, em seu redor, um ambiente comparável àqueles que haviam existido nas cortes da Provença e da Itália. João de Mena e o Marquês de Santillana se distinguiram naquela oportunidade.

O Marquês de Santillana — Don Iñigo López de Mendoza (1398-1458), guerreiro e escritor, foi, na Península Ibérica, um dos primeiros "modernos" a sentir os novos ventos que sopravam da Itália, através de Petrarca. Introduziu, inclusive, o soneto na Espanha.
Compôs os "Quarenta e dois sonetos feitos ao modo itálico", cronologicamente os primeiros da Península, obra, naturalmente, cheia de vacilações quanto à melodia e à métrica italianas, que para ele constituíam novidades.

No último ano do século XV apareceu "La Celestina" (comédia), cuja autoria é atribuída ao bacharel Fernando de Rojas (1465-1541). É um drama em prosa, extensíssimo, pois tem 24 atos, quase impossível de ser representado.


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Chegou, suntuoso, o século XVI, o denominado "Século de Ouro" da literatura espanhola, marcado, principalmente, pela expansão no sentido da América.

A Juan Boscán de Almogáver (1495-1542) o Renascimento literário espanhol ficou devendo os seus primeiros passos. Aliás, coube-lhe introduzir, na Espanha, a poesia italiana renascentista, como, também, lhe coube a honra de não deixar morrer o soneto naquelas plagas, uma vez que os sonetos de Santillana não tiveram grande ressonância. Passado um ano da morte de Boscán, foram publicados, dele, três livros de poemas inéditos, entre os quais muitos sonetos.

Garcilaso de La Vega (1503-1536), em relação ao Renascimento literário espanhol, foi um continuador da obra de Juan Boscán, de quem era amigo. Escreveu 48 poesias, das quais 38 são sonetos de boa feitura, harmoniosamente construídos. Sonetos belíssimos.
Foi Garcilaso quem, pelo seu maior valor, conseguiu, realmente, "nacionalizar o soneto", segundo José Maria Valverde, que acrescenta: — "O soneto é semelhante a uma estátua, de que os quartetos formassem a figura e os tercetos o pedestal com a inscrição. Desde esta época o soneto passou a ser forma necessária para todo o poeta espanhol; até mesmo, nos nossos tempos, incluindo as escolas revolucionárias, partidárias do hermetismo, o não proscrevem".

Cervantes e Lope de Vega "o consideravam o maior poeta espanhol de sua época", segundo Ary de Mesquita.
Ostentou o título de "Príncipe dos Poetas Castelhanos", e ainda hoje é considerado lírico dos mais perfeitos da poesia de Espanha.

Nasceu numa das famílias mais nobres do país (Garcia Suárez de Figueroa de la Vega). Casado, sua paixão poética foi, entretanto, a portuguesa Isabel Freire de Andrade, dama da Imperatriz. Isabel foi, também, paixão poética de Sá de Miranda. E, fato curioso, era parenta de ambos.

Garcilaso, aristocrata e guerreiro, morreu na Itália, no assalto de uma fortaleza em Nizza, na presença do imperador Carlos V, em cuja corte era benquisto.


Frei Luís Ponce de Leon (1527-1591) significa, também, um momento alto da poesia renascentista espanhola. Traduziu diretamente do hebraico para o espanhol o "Cântico dos Cânticos" e o "Livro de Job". Ainda traduziu as odes de Horácio.

Suas poesias foram publicadas por Quevedo, em 1631. "Grande lírico de inspiração horaciana, quanto à forma, e platônica quanto ao fundo", segundo Manuel Bandeira.


Fernando de Herrera (1534-1597), chamado "El Divino", não foi, apenas, poeta, mas, também, crítico de grande talento, tendo escrito um trabalho sério sobre a lírica de Garcilaso de La Vega. Bom sonetista, o tema principal de seus sonetos era a condessa de Gelves (Leonor de Milan), sua ama e alvo de um ardoroso amor platônico. Mais tarde, em 1582, os reuniu sob o título "Versos de Herrera".
Escreveu mais de 300 sonetos.


Baltasar del Alcázar (1530-1606) participou, com Juan Boscán de Almogáver, Garcilaso de La Vega, Diego Hurtado de Mendoza, Gutierre de Cetina, Hernando de Acuña, Frei Luís Ponce de Leon, Francisco de La Torre, Fernando de Herrera e Francisco de Aldana — entre outros — da renovação italianizante inaugurada em Espanha por Boscán.

  
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Ainda nos meados do século XVI, floresceu ativamente a literatura religiosa da Espanha. Os grandes místicos foram Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, ambos da Ordem do Carmelo. Sem dúvida, além de sua contribuição para a poesia, foram os maiores prosadores espanhóis, antes de Miguel de Cervantes.


Santa Teresa de Jesus (1515-1582), batizada Teresa de Cépeda y Ahumada, ingressou no Carmelo, onde professou em 1534, influenciada pela leitura de "As Confissões", de Santo Agostinho. No período de vinte anos, fundou 32 conventos (carmelitas descalças), inspirada na Contra-Reforma católica. Embora de cultura limitada, não sabendo latim, era dotada de grande inteligência organizadora. Escreveu interessante autobiografia ("Libro de su vida"), contendo, principalmente, relatos de seus trabalhos referentes à reforma do Carmelo, e escritos em espanhol. Era de uma humildade comovedora.

Suas produções são consideradas verdadeiros monumentos da literatura religiosa espanhola. Deixou várias obras. No setor da poesia, escreveu: "Exclamações da alma a Deus" e "Que muero porque muero".

Recebeu o título de "Doutora da Igreja" e foi canonizada em 1632.

Não podemos esquecer o célebre soneto "Al Crucificado", geralmente atribuído a ela, embora existam divergências quanto à autoria deste pequeno e, ao mesmo tempo, imenso poemeto, que é um dos mais divulgados e traduzidos da literatura universal. Acreditamos que Santa Teresa de Jesus seja, mesmo, a autora desta jóia incomparável, pelo estilo e pela idéia, que se identificam perfeitamente com o estilo peculiar e a idéia fixa que esmaltam outras composições da santa poetisa.

Deste soneto, estampamos, mais adiante, uma bela tradução de Manuel Bandeira, que, entretanto, ao publicá-la, salientou que o original é "de autor espanhol não identificado".
Bandeira, naturalmente, se baseou na coleção "Las cien mejores poesias (líricas) de la lengua castellana", organizada por Menéndez y Pelayo, editada na Inglaterra e onde aparece, como anônimo, o autor do soneto.

Também transcreveremos, por um dever de honestidade, logo em seguida a essa tradução, outra versão portuguesa, publicada na 1ª edição da "História da Vida do Pe. Francisco de Xavier" e dada como "Soneto de S. Fco. Xavier a Cristo Crucificado" (V. Antol. Port., Lucena, I, pág. XXI).

É o seguinte o soneto original que figura na antologia de Menéndez e Pelayo. É deveras perfeito no seu gênero e para o seu tempo:

No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.

Tu me mueves, Señor; muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido;
muéveme ver tu cuerpo tan herido;
muéveme tus afrentas y tu muerte.

Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera,
que aunque no hubiera cielo, yo te amara
y aunque no hubiera infierno, te temiera.

No me tienes que dar porque te quiera,
pues aunque lo que espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.


São João da Cruz (1542-1591), teólogo, confessor e amigo de Santa Teresa, foi, por ela, apesar de muito mais moço, animado a executar a reforma da Ordem do Carmelo, na parte masculina.


Altamente sedutora a poesia lírica de São João da Cruz. Escreveu dois excelentes poemas, "Noite escura" e "Cântico Espiritual", além de outros poemas menores. Criou imagens de inefável beleza. — "Conseguiu em sua obra poética — comenta o escritor português Alfredo Queirós um realismo tão palpável, concreto e sugestivo, como nunca autor algum espiritual talvez tenha conseguido, o que contrasta admiravelmente com o abstrato do assunto".


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Entre os séculos XVI e XVII, o "Don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) surgiu avassaladoramente (1605), alcançando o pináculo da literatura espanhola. É uma sátira contra o romance de cavalaria, e obra-prima do humor universal. O próprio autor declarou, ao final da obra, que seu objetivo foi "expor ao ridículo as tolas histórias da cavalaria andante".
Cervantes foi, também, poeta e sonetista de méritos.


Veio Lope de Vega (Lope Felix de Vega Carpio) (1562-1635), que levou ao apogeu o teatro espanhol. Penetrando o século XVII, foi, sem dúvida, o escritor mais fecundo já produzido pela humanidade. Afrânio Peixoto dizia que "Lope de Vega, só, é toda uma literatura". Escreveu prodigamente, em prosa e verso, com a força de uma grande personalidade. Admirado e temido, de vida quase lendária, destacou-se como escritor de gênio e poeta de criações realmente bonitas e variadas. Deu-nos cerca de 1.800 comédias e mais 400 autos.

Também cultivou a poesia épica, a lírica sacra e a lírica profana. Deve ter escrito mais de um milhão de versos. E foi, também, excelente sonetista.
Depois de ter sido um grande amoroso, transformou-se, na velhice, num monge franciscano de vida exemplar.

A Espanha se orgulha de ter sido seu berço. Cervantes lhe deu a classificação de "monstro da natureza".

Serviu na "Invencível Armada".  John Macy escreveu, a respeito: "A supremacia política da Espanha estava predestinada a entrar em ocaso em 1588, quando a “Invencível Armada" foi dispersa antes de atingir as costas britânicas. Um dos jovens tripulantes, Lope de Vega, iria ser o fundador do teatro espanhol e o autocrata quase absoluto da literatura espanhola do século".

Corria, na sua época, uma paródia da oração religiosa "O Credo", que começava assim: — "Creio em Lope de Vega, o Onipotente, poeta do céu e da terra..." A Inquisição de Toledo proibiu a circulação dessa paródia.


Tirso de Molina (1584-1648) era o pseudônimo usado pelo Frei Gabriel Tellez, da Ordem das Mercês, célebre autor dramático e poeta. Autor de "El condenado por desconfiado", o maior drama teológico da época e obra muito considerada do teatro espanhol. Criou o tipo lendário de "Don Juan" na peça "El Burlador de Sevilla ". Também escreveu "uma peça de intrigas" , chamada "Dom Gil das calças verdes ".

Produziu mais de 300 peças. Tido como o maior dramaturgo da Espanha, depois de Lope de Vega.
Escreveu excelentes sonetos.


Juan Ruiz de Alarcón y Mendoza (1581-1639) , dramaturgo nascido no México, de família nobre espanhola, foi, sempre, um homem amargurado, talvez complexado pelo seu físico disforme, e não contou com a simpatia de Lope de Vega. Sua obra "El tejedor de Segóvia" ("O tecelão de Segóvia") chegou a ser apontada como remotíssima precursora do pré-romantismo.
Acusou Corneille de haver plagiado uma de suas comédias.



Luís de Góngora (D. Luís de Góngora y Argote) — 1561-1627 e Francisco de Quevedo ( D. Francisco Gómez de Quevedo y Villegas) — 1580-1645 — eis, aí, os dois maiores poetas do barroquismo espanhol.

Luís de Góngora é, hoje, considerado um dos maiores poetas espanhóis. Nos últimos decênios, seu nome alcançou expressiva ressonância em todo o mundo. Tornou-se uma bandeira, desde que os simbolistas Verlaine e Mallarmé consagraram o mito de Góngora.

Quando já obtivera renome na poesia, ordenou-se padre, aos 56 anos de idade (1617), para desfrutar, até o ano em que faleceu, as vantagens de um cargo de capelão do rei Felipe III. Foi cônego da Catedral de Córdova.

Em seu tempo, como já frisamos, era criticado pela afetação do estilo, que gerou o "gongorismo" , mas no século XX foi reabilitado. Publicou duas obras-primas da Poesia: "Fábula de Polifemo y Galatea” (1612), e "Soledades" (1613). Também escreveu sonetos muito bons, mais de 200, de grande beleza pictórica, e soube ser simples em seus versos sentimentais ou maliciosos.

Admirador das atrações materiais do mundo, despertou a inveja de Lope de Vega e as iras do moralista Francisco de Quevedo.

Quevedo, nascido de família nobre, estreou como poeta em 1605, datando daí sua longa inimizade com Luís de Góngora.
Contra este, escreveu quinze poemas considerados verdadeiras obras-primas. Escritor polêmico, satírico e filosófico, foi dos maiores valores da literatura espanhola. Como satírico, é o melhor da língua de seu país. Também escreveu bons sonetos.

Morreu no cárcere, com o coração magoado, depois de preso, durante quatro anos, pela Inquisição.

Fez jus ao nome de "o Juvenal espanhol''.

As duas escolas barrocas, fundadas na Espanha por Góngora e Quevedo, tiveram grande repercussão, alcançando o ponto mais alto na obra do dramaturgo D. Pedro Calderon de La Barca (1600-1681), que deixou mais de mil peças escritas.

Ele encerrou o barroco e, também, a continuação do "Século de Ouro" espanhol, já em pleno século XVII. Além disso, foi, talvez, "um precursor do que se poderá chamar a evolução moderna do pensamento filosófico",  segundo José Maria Valverde.

O ponto culminante da arte de Calderon , e talvez de todo o teatro espanhol, é o drama filosófico "La vida es sueño".
Klabund diz que o seu "Mago milagroso"  indubitavelmente exerceu influência no "Fausto" ; e que "quando Goethe lia o "Príncipe constante" tinha que fazer uma pausa e na emoção o livro lhe caía das mãos ".

Depois de Góngora, foi o maior poeta do barroco espanhol e da contra-reforma. Sonetista traduzido por Bilac.


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O ilustre historiador José Maria Valverde diz: — "Através destes dois grandes séculos, a literatura espanhola adquiriu uma fisionomia definitiva, válida também para os tempos modernos".

Veio um período literário pobre, ficando marcado o século XVIII como a época de menor realce de sua poesia. Já nesse século XVIII as novas idéias anunciadoras da escola romântica começaram a se manifestar na Alemanha e na Inglaterra, mas só depois de 1830 é que o verdadeiro romantismo  dominou na Espanha.


Tomás de Iriarte (1750-1791) nasceu em Orotava, Tenerife (a maior das ilhas Canárias) e morreu em Madri. Afeiçoado ao classicismo, exerceu muita influência nos meios literários madrilenos. Escreveu, em 1782, as engenhosas "Fábulas Literárias". Introduziu o "melodrama" na Espanha, com “Guzmán el Bueno". Também compôs sinfonias e, em 1779, um grande "poema musical ", a que deu o nome de "La Música" . Sonetista de mavioso lirismo.


Juan Nicásio Galego (1777-1853), notório literato, crítico, poeta. Sonetista.
  

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Figura ímpar de poeta romântico foi José de Espronceda y Delgado (1808-1842), que apresentava influências byroniana e hugoana. Verdadeiro poeta — poeta nato — escreveu excelentes sonetos, sendo o expoente da primeira geração dos românticos espanhóis. Tinha alma aventureira e índole revolucionária. Esteve exilado, porém voltou à Espanha em 1833, anistiado.

Outro poeta romântico foi Antonio Garcia Gutiérrez (1813-1884), autor do "Trovador", que, inclusive, inspirou a ópera de Verdi (1836). Dramaturgo, sua obra teatral é inspirada no romantismo francês.

Um dos maiores poetas românticos da Espanha foi, entretanto, pela época em que apareceu, mais um pós-romântico: Gustavo Adolfo Bécquer (1836-1870). Segundo José Maria Valverde, Bécquer "pôde ser o mestre de quase todos os poetas espanhóis do século XX, desde os seus conterrâneos Antonio Machado e o próprio Unamuno, até Rafael Alberti, Luís Cernuda e Dámaso Alonso". Inspirado sonetista.


José Zorrilla y Moral (1817-1893), poeta e dramaturgo, é a figura principal da segunda geração do romantismo espanhol.
No século XIX foi o poeta mais popular da Espanha. Na época, eclipsou a fama de Bécquer, preferido pela crítica de nossos dias. Autor de belíssimos sonetos.
Autor, também, de notáveis peças teatrais, destacando-se "Don Juan Tenório" (1844).


Outro poeta de relevo foi Ramon de Campoamor y Campoosorio (1817-1901), simples no pensamento e na forma, o mais popular dos poetas espanhóis modernos. Dono de um grande público, mesmo após sua morte, e além-fronteiras. Criador de um gênero em que se tornou incomparável: uma genial mistura de realismo, de ironia, de pessimismo e, ao mesmo tempo, de propensão lírica. Também, sonetista.


Carolina Coronado (1823-1911), poetisa, umas vezes erótica, outras mística, elogiada por Espronceda nos primeiros tempos de sua bela carreira. Seus versos podem ser apontados como dos melhores do romantismo espanhol. Excelente sonetista.

Na segunda metade do século XIX imperaram, ainda, elementos de uma geração valorosa, integrada pelo historiador Marcelino Menéndez y Pelayo (1856-1912), criador da moderna historiografia espanhola; e pelos ficcionistas Benito Pérez Galdós (1843-1920), chamado "o Balzac espanhol"; Leopoldo Alas (1852-1901), conhecido pelo pseudônimo de "Clarim"; Pedro Antonio de Alarcon (1833-1891); José Maria de Pereda (1833-1905); e Vicente Blasco Ibañez (1867-1928), escritor impetuoso, autor de notáveis romances, entre os quais "Sangue e Areia" (1908) e "Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse" (1916), grandes sucessos internacionais.


Salvador Rueda (1857-1933), poeta exuberante e dos mais populares da Espanha. Com muito talento e peregrina inspiração, antecipou o modernismo espanhol e hispano-americano. Influenciou Rubén Darío e Juan Ramon Jimenez. Notável sonetista.


Francisco Villaespesa (1879-1936), poeta e dramaturgo. Deixou mais de mil sonetos, muitos dos quais verdadeiras prendas literárias.


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Veio, então, modernamente, a chamada "geração de 98" (1898), constituída por valores importantes, como Miguel de Unamuno (1864-1937), poeta, filólogo, ensaísta, filósofo e panfletário; os irmãos Machado (Antonio Machado (1875-1939) e Manuel Machado (1874-1946), poetas essencialmente líricos); Azorin (1874-1967), pseudônimo de José Martinez Ruiz, notável pela sua simplicidade; Pio Baroja (1872-1956), renovador da prosa espanhola; Ramon del Valle-Inclan (1869-1936) e Ramiro de Maeztu (1875-1936). Bons sonetistas: Unamuno e os irmãos Machado.

Para Unamuno, que cultivou, como se sabe, com êxito, outras formas literárias, a poesia foi benéfica, porque, com ela, superou os dilemas terríveis de suas inquietações.

Ao lado da "geração de 98", na área poética, não podemos deixar de citar o nicaragüense Rubén Darío (1867-1916) que, apesar de sua estima pela poesia francesa, foi, no dizer de José Maria Valverde, "o ponto de partida de duas novas eras poéticas, simultâneas, da língua espanhola, dos dois lados do Oceano".

E acrescenta Valverde: — "Na América, a literatura ganha interesse e personalidade com a sua obra. Em Espanha, dele descendem, direta ou indiretamente, todos os poetas, com exceção de Unamuno, armados com a sua língua rica e com a sua imaginação e técnica profunda".

O papel de Rubén, na poesia espanhola, é comparado pelo historiador Valbuena Prat ao de Garcilaso de la Vega, "introdutor do mundo das formas poéticas italianas no momento renascentista".

Tendo Rubén Darío nascido na Nicarágua, preferimos deixar para transcrever produções suas em outro capítulo, adiante, entre os sonetistas hispano-americanos.


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Depois da "geração de 98", surgiu, na literatura espanhola contemporânea, um grupo brilhante de escritores e poetas. Os pensadores José Ortega y Gasset (1883-1955) e Eugênio D'Ors (1882-1954) são as figuras intelectuais de maior relevo. Também se destacaram Gabriel Miró (1879-1930) e Salvador de Madariaga y Rojo (1886-1978).

Na poesia, emerge o nome aureolado de Juan Ramón Jimenez (1881-1958). Os poemas de seus primeiros livros, de 1901 a 1909, demonstraram a influência do simbolismo francês. Também foi influenciado por Rubén Darío. Mas, a tradição lírica espanhola do Século de Ouro (XVI) voltou a imperar nos seus belíssimos "Sonetos Espirituales" (1914-1915).
As fases seguintes se caracterizaram por uma poesia íntima, sem atavios, cheia de pureza (de 1916 a 1936).

Não tendo querido participar da guerra civil espanhola, foi exilado. Todavia, continuou escrevendo. Conseguiu apurar ainda mais sua poesia, atingindo o misticismo. Faleceu em Porto Rico.

O poeta exerceu notável influência, não só na Espanha, como nos países hispano-americanos.

Pela sua poesia lírica, perfumada de espiritualidade e pureza, obteve o Prêmio Nobel de Literatura, em 1956. Jiménez escreveu cerca de 50 volumes, sempre o mesmo grande lírico, conforme sua própria expressão: "Amor e poesia, todos os dias".

Entre os poetas contemporâneos da Espanha que não se alhearam do parnasianismo e do simbolismo, podemos citar, ainda, J. Fernández de Vilar (1888-1941), José Maria Carajaville (1892-1932; e Francisco Rodriguez Marin (1855-1943), todos excelentes sonetistas. Marin, entre outros livros, escreveu "Cento y un Sonetos".

De 1920 para cá, tem aparecido um grupo de poetas realmente grandes, destacando-se Federico Garcia Lorca (1898-1936), cuja fama é, hoje, universal, e cujo livro "Romancero gitano" (1928) prevalece sobre todos os outros que escreveu. É uma síntese poética da alma espanhola. Foi, outrossim, ótimo sonetista.
No seu teatro, também de grande riqueza lírica, revela-se um dramaturgo de imensos recursos. Na opinião de José Maria Valverde, é ele "a figura mais importante do teatro espanhol depois de Calderón". A peça "Bodas de Sangue" (1933) é bastante co-nhecida e apreciada no Brasil.
Preso em Granada (1936) e "fuzilado por elementos de direita, não identificados".

Desse período de "poesia de vanguarda", devemos, igualmente, mencionar Rafael Alberti (1902), de evidente afinidade com Garcia Lorca; Jorge Guillén (1893), poeta metafísico; Gerardo Diego (1896), cuja obra surpreende pela "simultaneidade com que nela aparecem classicismo e vanguardismo". Rafael Alberti, pintor e poeta, escreveu sonetos de alta categoria. Gerardo Diego, nos sonetos de "Alondra de verdad", oferece uma lírica de forma quase perfeita.

É copiosa a safra de poetas espanhóis das últimas décadas. Além dos já citados, podemos, finalmente, registrar mais os nomes de Pedro Salinas (1892-1951), Vicente Aleixandre (1900), Dámaso Alonso (1898), Luís Cernuda (1902), Miguel Hernández (1910-1942), Dionísio Ridruejo (1912), Rafael Duyos (1906-1983) e Ricardo León (1877-1943), que formam, na verdade, um grupo de poetas neo-românticos.
Todos sonetistas, especialmente Miguel Hernández, Rafael Duyos e Ricardo León.

  
Na formosa língua espanhola, o soneto se adaptou muito bem, e foi sempre apresentado com mestria por inúmeros poetas, no decorrer dos tempos e através de todos os movimentos literários.


Oferecemos, a seguir, alguns deles:




GARCILASO DE LA VEGA (1503-1536)
(Trad. de Delson Tarlé)

Minha terra, além-mar, quanto lamento
tê-la deixado, e tudo o que possuía!
Indo sempre mais longe cada dia,
gentes, costumes, línguas, tudo enfrento.

Esperança em voltar não alimento,
que toda solução é fantasia.
Mais certo de esperar é aquele dia
que há de levar-me a vida e o sofrimento.

De todo mal pudera ter socorro
só de vos ver, senhora. Mas, enfim,
esperar é perder-vos, eu bem sei.

Porque não posso ter-vos é que morro.
Nem morrer é remédio para mim,
pois, morrendo, jamais eu vos terei.



SANTA TERESA DE JESUS (1515-1582)
"A Cristo Crucificado"
(Trad. de Manuel Bandeira)

Não me move, meu Deus, para querer-te,
o céu que me hás um dia prometido:
e nem me move o inferno tão temido
para deixar, por isso, de ofender-te.

Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
cravado nessa cruz e escarnecido.
Move-me no teu corpo tão ferido
ver o suor de agonia que ele verte.

Moves-me ao teu amor de tal maneira,
que a não haver o céu ainda te amara
e a não haver o inferno te temera.

Nada me tens que dar porque te queira;
que, se o que ouso esperar não esperara,
o mesmo que te quero te quisera.

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NOTA: Há quem ache ser este soneto de autoria anônima, como Menéndez y Pelayo, cuja opinião, aliás, é aceita por Bandeira. Também transcrevemos, a seguir, conforme prometemos folhas atrás, uma outra versão portuguesa do mesmo soneto, cuja autoria, desta vez, é atribuída a São Francisco Xavier . A versão está publicada na 1a. edição da "História da Vida do Pe. Francisco de Xavier" e tem o título de "Soneto de S. Fco. Xavier a Cristo Crucificado", não figurando o nome do tradutor:

Não me move, Senhor, para querer-vos,
a Glória que me tendes prometido;
nem me move o Inferno, tão temido,
para deixar, por isso, de ofender-vos.

Moveis-me vós, Senhor, move-me o ver-vos 
pregado nessa cruz e escarnecido;
move-me o vosso corpo tão ferido
e essa morte que vejo padecer-vos.

Minha alma em vos amar tanto se esmera,
que inda a faltar o Céu eu vos amara,
e, não havendo Inferno, vos temera;

nada, por vos amar, de vós, espera;
pois, se o que espero em vós não esperara,
o mesmo que vos quero vos quisera.




FERNANDO. DE HERRERA (1534-1597)
(Trad. de Delson Tarlé)

Eu vi uns belos olhos que renderam,
com doce flecha, um coração coitado
e que, para incender novo cuidado,
contra mim toda a força arremeteram.

Eu vi que muitas vezes prometeram
remédio ao mal que sofro, não cansado,
e que, quando esperei vê-lo acabado,
de pouco as esperanças me valeram.

Eu vejo que se embaça a minha vista
e cresce a minha dor, e levo, ausente,
neste rendido peito, o sangue em jorro.

Eu vejo que não há como resista
toda a recordação do bem presente
e, em cego engano, de esperanças morro.



MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA (1547-1616)
 Soneto extraído do "Dom Quixote de La Mancha" 
(Trad. dos Viscondes de Castilho e de Azevedo)

Da umbrosa noite no silêncio, quando
meigo sono refaz os mais viventes,
só eu vou meus martírios inclementes
aos céus e à minha Chloris numerando.

Quando o dia os seus raios vem mostrando
dentre as rosas da aurora, auriesplendentes,
com suspiros e lástimas ferventes
vou as teimosas queixas renovando.

Se doira o sol a prumo o térreo assento,
não me dissipa as trevas da agonia;
dobra-me o pranto, aumenta-me os gemidos.

Volve a noite, e eu com ela ao meu lamento.
Ai! que sorte! Implorar de noite e dia,
ao céu piedade, e à minha ingrata ouvidos.




LOPE DE VEGA (1562-1635)
... "Que tanto pode uma mulher que chora!"
(Trad. de Raimundo Correia)

Lucinda, a loira, quando a uma ave abria,
certa vez, a gaiola, a prisioneira,
da gaiola escapando-se ligeira,
deixou confusa a moça... E esta dizia:

—"Ave, por que me foges e erradia
voas? Talvez nos bosques, forasteira,
laço, armadilha ou bala traiçoeira
de falaz caçador te aguarde um dia!

Por que ao risco e ao perigo dás a vida?
Por quê?..."— Mas nisto, de queixosa, em pranto
desfez-se toda a pálida senhora...

E a ave à gaiola volta comovida,
comovida por vê-la chorar tanto,
que tanto pode uma mulher que chora!



LOPE DE VEGA (1562-1635)
"Repentinamente"
ou
"Soneto de Violante"
(Trad. de Carlos Maranhão)

Que eu fizesse um soneto quis Violante,
e logo ao seu comando me submeto;
quatorze versos dizem que é soneto,
e enganados os três, vamos adiante.

Jmais pensei achar uma consoante
e na metade estou de outro quarteto;
mas, se caminho já para um terceto,
nas quadras nada vejo que me espante.

No primeiro terceto vou entrando,
e parece que entrei com o pé direito,
porque fim, com este verso, lhe vou dando.

Já no segundo estou, e até suspeito
que vou os treze versos acabando:
conta se são quatorze, e... ei-lo, está feito!



LOPE DE VEGA (1562-1635)
“O Bom Pastor"
(Trad. de Delson Tarlé)

Pastor, que, com teus silvos amorosos,
me ergues do fundo sono de onde venho,
que fizeste cajado desse lenho
em que estendes os braços poderosos;

volve os olhos à minha fé, piedosos,
que és o amado senhor de quanto eu tenho,
pois a palavra de seguir empenho
teus brandos silvos e teus pés formosos.

Se, morrendo de amor, por mim Te feres,
não Te espante o rigor de meus pecados,
pois tanto bem a quem se rende queres.

Espera, pois, e escuta os meus cuidados.
Mas, como hei de dizer-Te que me esperes,
se estás, para esperar, de pés cravados?



LOPE DE VEGA (1562-1635)
(Paráfrase de Atílio Milano)

Eu disse e direi sempre como digo
que ainda a amizade é o maior bem humano.
Mas que espanhol, que grego ou que troiano
nos há de ser esse perfeito amigo?

Porta do céu, que se abre no perigo,
ilha que acolhe o náufrago no oceano,
basta um amigo honesto, justo, lhano,
para enfrentar o exército inimigo!

Um amigo! que bem, que bom, que belo!
Ali está um homem: vamos obrigá-lo
a estimar-nos em paga de estimá-lo?

Mas não! Quero viver sem conhecê-lo,
porque não quero a glória de ganhá-lo
para sofrer o medo de perdê-lo...



LOPE DE VEGA (1562-1635)
"O amor dentro da selva perfumada...
(Trad. de Guimarães Passos)

O amor dentro da selva perfumada
canta o pássaro amante, canta, alheio
ao caçador traiçoeiro que no meio
da selva está de pontaria armada.

Atira-lhe, erra, voa... E a perturbada
Voz — agora mais carme que gorjeio,
volve, e de ramo em ramo, com receio
pára, por não deixar a prenda amada.

Da mesma sorte o amor canta no ninho;
mas quando, um dia, ao seu ouvido ecoa
a voz do ciúme, como o passarinho,

teme, foge, suspeita, inquire, à-toa...
E, até sumir-se o caçador daninho
de pensamento em pensamento voa.




LUÍS DE GÔNGORA (1561-1627)
"Mientras por competir com tu cabello”
(Trad. de Delson Tarlé)

Enquanto, a competir com teu cabelo,
o ouro brunido ao Sol reluz em vão
e, pálido de inveja, quedo ao chão,
perde-se a contemplar-se o lírio belo,

e o rubro de teus lábios deixa em zelo
mais olhos do que o cravo temporão,
e o colo altivo traz um ar loução
como o cristal luzente aspira tê-lo;

goza lábios, cabelo, colo albente,
antes que tudo, em tua idade alada
— ouro, lírio, cristal, cravo rubente

não só se acabe em prata e flor crestada,
mas tu e a tua vida, juntamente,
em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.




D. FRANCISCO DE QUEVEDO (1580-1645)
"A morte"
(Trad. de Delson Tarlé)

Por entre minhas mãos como resvalas,
minha idade, enganosa, fugidia!
Que mudos passos tens, ó Morte fria,
pois com pé silencioso tudo igualas!

Irada, o muro de ilusões escalas
a que, risonho, o jovem se confia;
já pressentes, minha alma, o último dia:
se asas não tens, não poderás alçá-las.

É duro ser mortal, certo do fim!
Já não posso viver meu amanhã
sem a sombra da Morte sobre mim!

Cada instante que vivo, neste afã,
é nova execução, que mostra, assim,
quanto é mísera a Vida, quanto é vã!




TIRSO DE MOLINA (1584-1648)
"Solilóquio de Martha, la piadosa"
(Trad. de Guimarães Passos)

A robusta cerviz que o suor inunda,
quando expira o trabalho o boi levanta,
e o que tem o cutelo na garganta
em alguma esperança a vida funda.

Bonança espera, quanto mais se afunda,
o navio que o mar bate e quebranta...
Somente o inferno causa pena tanta,
porque dele a esperança não redunda.

É comum este bem entre os humanos,
porque aquele que alcança mais espera,
e, às vezes, o que espera sempre alcança.

Mas a aspereza dos meus desenganos
de tal modo me aflige e desespera
que não posso esperar nem a esperança.




CALDERÓN DE LA BARCA (1600-1681)
Soneto
(Trad. de Olavo Bilac)

Laura! dizes que Fábio anda ofendido
e, apesar de ofendido, enamorado,
buscando a extinta chama do passado
nas cinzas frias avivar do olvido.

Vá que o faça, e que o faça por perdido
de amor... Creio que o faz por despeitado:
porque o amor, uma vez abandonado,
não torna a ser o que já tinha sido.

Não lhe creias nos olhos nem na boca,
inda mesmo que os vejas, como pensas,
mentir carícias, desmentir tristezas...

Porque finezas sobre arrufos, louca,
finezas podem ser; mas, sobre ofensas,
mais parecem vinganças que finezas.




TOMÁS DE IRIARTE (1750-1791)
"A uma dama muito abrigada"
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Enquanto, suave, a primavera passa,
teu decote é zeloso, na abertura,
mas ao verão ardente, sem censura,
ele entremostra toda a tua graça!

Depois o outono chega e tudo embaça...
Então, vai se fechando, te enclausura,
e ao vir o duro inverno, com usura
ciumento, ao teu pescoço ele se enlaça.

Renego este tempinho madrilenho
de longo inverno e de tão longos xales...
(Sou ilhéu! meu protesto não contenho!)

Mas socorrer-me está em tua mão:
mesmo em novembro, espero, me regales
com o presente de um dia de verão!




JUAN NICASIO GALEGO (1777-1853)
"A Judas"
(Trad. de Delson Tarlé)

Quando o horror de traição tão baixa e fria
do apóstolo falaz turbou a mente
e, da árvore fatídica pendente,
com rudes contorções estremecia,

comprazido na mísera agonia,
o Demônio mirava-o, frente a frente,
até que, já do término impaciente,
feroz, de ambos os pés se suspendia.

Ao perceber, enfim, no rosto mesto,
que a convulsão cessara e a morte viera,
na certeza do término funesto,

com gargalhada tresloucada e fera,
seus lábios pôs naquele horrível gesto
e o beijo lhe voltou que a Cristo dera.




JOSÉ DE ESPRONCEDA (1808-1842)
Soneto
(Trad. de Carlos Maranhão)

Fresca, louçã, viçosa e delicada,
— adorno e orgulho da mansão florida —
uma rosa — arte e mimo — ali nascida,
perfuma os ares pela madrugada.

Mas, quando o sol, na rútila jornada,
surge, radiante, iluminando a vida,
tonta de luz, sem força, emurchecida,
ela tomba, por fim, despetalada...

Também na asa do amor, um só momento,
floriu minha ventura; em pensamento,
sonhei viver na paz das coisas mansas!

Mas, ai! o bem tornou-se-me amargura!
E, desfolhada pela desventura,
morreu a flor das minhas esperanças!...




JOSÉ DE ESPRONCEDA (1808-1842)
Soneto
(Trad. de Mello Nóbrega)

Canta de noite, canta de manhã,
rouxinol, na floresta, teus amores;
canta, que há de chorar, quando tu chores,
a madrugada, sobre a flor louçã.

Tinto o céu, de amaranto e de romã, 
a brisa vesperal, por entre as flores,
suspirará também por tuas dores,
de triste amor, essa esperança vã.

E na noite serena, aos raios frios
da lua silenciosa, teus cantares
pelo bosque sombrio ecoarão,

e vertendo os seus doces amavios,
como bálsamo suave, em meus penares,
teus cantos minha dor adoçarão.




JOSÉ DE ESPRONCEDA (1808-1842)
Soneto
(Trad. de Carlos Maranhão)

Quisera ser a luz do teu polido espelho
e a perfumada flor que trazes presa à boca;
o zéfiro sutil que esses teus risos touca,
a aurora que te envolve em seu clarão vermelho;

o livro amigo ao qual tu pedes um conselho,
a espuma que a teus pés em pérolas espoca,
o sol que vem beijar teu corpo em ânsia louca,
o mendigo a quem dás, esfarrapado e velho:

Ser Deus e ter na mão todo o poder divino
para tudo te dar e, enfim, feliz fazer-te!
Ser o árbitro fiel do meu e teu destino!

Volver à juventude e, de alegria, em pranto,
sentir que me quisesses muito e, então, querer-te,
 como quero que te ame a quem tu queres tanto!...


_____

Verso 13 — O tradutor, aliás excelente, descuidou-se nesse verso, em relação à cesura necessária para formar os dois hemistíquios.




GUSTAVO ADOLFO BÉCQUER (1836-1870)
"Ao zéfiro"
(Trad. de Mello Nóbrega)

Zéfiro doce que, vagando alado,
por entre as frescas, purpurinas flores,
com suave beijo furta seus odores
para espalhá-los pelo verde prado;

queixas de meu amor e meu cuidado
leva à que, só de olhar, mata de amores,
pede-lhe que alivie as minhas dores
e me console o coração magoado.

Não! Não vás, não... Porque, se acaso a achares,
e o de seus lábios cálido perfume
pelo de um cravo enganador tomares,

provando-o, como é bem de teu costume,
embora pondo fim aos meus penares,
eu iria de ti sentir ciúme.




JOSÉ ZORRILLA Y MORAL (1817-1893)
Soneto
(Trad. de Raimundo Correia)

Mulher! Leva essa taça; outra que venha
maior; que dessa o vinho as bordas passa...
Leva-a, e traze outra já; venha uma taça
grande, e que todo esse licor contenha!

Lá fora o vento as árvores desgrenha,
estala o raio, o temporal esvoaça...
Anda! se à porta o viajor que passa
se detiver, deixa que se detenha!

Deixa que espere ou desespere fora!
Deixa, enfim, que ele siga o seu caminho,
que em torrentes a chuva inunda agora!

Que com água viaje ele, o mesquinho,
eu quero o vinho, dá-mo sem demora,
porque eu não posso viajar sem vinho.




CAMPOAMOR (1817-1901)
(Trad. de Aristêo Seixas)

Prazer e dor com que a existência elejo,
quero crer-te e a minha alma desconfia.
E o teu amor, tão claro como o dia,
de nuvens some em lúgubre cortejo.

Quando a suspeita nos teus olhos vejo,
afirmo que, por mim, te mataria.
Que desespero sinto na alegria,
se o bem que adoro aborrecer desejo.

Santa virtude, animador olvido,
dai-me a graça de ver, como ente honrado,
que honradamente sou correspondido!

E extingue, Amor, a dúvida em que eu nado,
 porque, mais que não crer, sendo querido,
eu quisera ter fé, sendo enganado...




CAMPOAMOR (1817-1901)
(Trad. de Aristêo Seixas)

Mais do que a luz da inteligência humana,
adoro a escuridão do meu desejo;
sobre a verdade, pois, do quanto vejo,
quero o erro da esperança que me engana.

Tendes razão, formosa Soberana,
que em duvidar e crer muito sobejo:
se hoje da crença o vasto império rejo,
amanhã sofro a dúvida tirana. 

Entre crer e não crer, passo, indeciso,
pela vida, perpétua no quebranto,
que anda a ceifar e foge de improviso.

O duvidar e o crer confundo-os tanto,
que umas vezes meu pranto acaba em riso,
e outras vezes meu riso acaba em pranto...




CAROLINA CORONADO (1823-1911)
"Ó como te amo! Como à luz do dia!"
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Ó como te amo! Como à luz do dia!
Teu nome invoco, apaixonada e triste,
e quando a noite veio, e tu partiste,
minha alma em ânsias ainda te pedia!

És para mim o tempo que me guia,
a idéia que ao meu pensamento assiste,
porque em ti se concentra quanto existe:
a esperança, a paixão, minha poesia.

Não há canto que iguale em pensamento
o teu amor, se sonhas e deliras
num doce instante de arrebatamento...

Tremo ao te ouvir. Se me olhas tu me inspiras!
E quisera exalar o último alento
abrasada ao calor do ar que respiras.




SALVADOR RUEDA (1857-1933)
"O sino"
(Trad. de Humberto de Campos)

Quisera ser um sino ressonante
para dizer, quando rompesse o Dia:
ao que vive entre lágrimas: — "Confia!"
e ao sorridente e valoroso: — "Adiante!"

Para lançar meu cântico vibrante,
que desperta venturas e energia,
e afugentar a lúgubre agonia
que entenebrece o coração do amante:

Para à Mulher ir segredar: — "Redime!
ao Pecador: — "Vai reparar teu crime!"
ao Velho: — "Pensa na passada história!"

Para, afinal, reconfortar o Atleta,
e, ébrio de sons, quando morresse um Poeta,
rachar meu bronze repicando à Glória!




SALVADOR RUEDA (1857-1933)
"O rosário de minha mãe"
(Trad. de Carlos Maranhão)

Do nada que a tua herança se reveste
só quis, ó mãe querida, o teu rosário:
suas contas parecem-me o Calvário
que em tua vida amarga recorreste,

onde os teus dedos, ao rezar, puseste,
como quem reza a Deus, ante o sacrário,
e em meus dias de errante solitário
ponho, um por um, os beijos que me deste.

Os seus cristais, prismáticos e escuros,
colar de contas e de beijos puros
inundam-me, ao dormir, de um suave brilho!

E no meu leito, entre os lençóis de linho,
julgo ver-te, comigo, a orar baixinho,
pela felicidade de teu filho!




SALVADOR RUEDA (1857-1933)
"Grito"
(Trad. de Humberto de Campos)

Ao sondar minha Dor, qual se chorara,
pedi: — "Cristãos, vede meu mal traiçoeiro!"
Mas os homens sem fé, no mundo inteiro,
ver não quiseram minha sorte amara.

Cheio de nojo, procurei uma ara,
e implorei: — "Homens de honra, a mim, primeiro!"
 E, de tanto fingido cavaleiro,
nenhum, para me ouvir, volveu a cara.

— "Filantropos — clamei — predicadores,
 moralistas, filósofos, doutores,
consolai o meu íntimo desgosto!"

Não se ouviu meu gemido suplicante...
Gritei: — "Canalhas!" e, no mesmo instante,
todo mundo me olhou, voltando o rosto!




VILLAESPESA (1879-1936)
"O cisne"
(Trad. de Osório Dutra)

O cisne aproximou-se... Álgida, Leda
põe a mão sobre a neve da plumagem,
e adormece envolvida na paisagem
de um violáceo crepúsculo de seda.

A onda azul, ao morrer, suspira queda;
gorjeia um rouxinol entre a ramagem,
e um touro, ébrio de amor, muge selvagem
na sombra merencória da alameda.

Contempla o cisne a alvura do seu colo,
e, desdobrando as asas, impudico,
beija-lhe o seio, alcatifando o solo.

Leda assusta-se... Esconde-se, extasiada!
E o cisne ergue, afinal, vermelho, o bico,
como triunfal insígnia ensangüentada.




VILLAESPESA (1879-1936)
"O poema do deserto"
(Trad. de José Augusto Cesar Salgado)

— Dá-me a beber, que a sede me agonia —
pedi ajoelhado e balbuciante...
E deixei em tua ânfora vazia
saciado o meu desejo alucinante.

E seguiste... No teu olhar havia
da luz que morre, o lucilar cambiante...
Cantavas ao partir... Tua voz trazia
um líquido frescor de água distante.

Nunca mais eu te vi... E em qual estrada,
de tuas mãos beberei, ó minha amada?
Do meu lábio febril, o ardor mataste;

mas agora, ao redor de que cisterna,
conseguirei saciar esta ânsia eterna,
que no fundo do peito me deixaste?




GARCIA LORCA (1898-1936)
"A Mercedes em seu Vôo"
(Trad. de Oscar Mendes)

Uma viola de luz, hirta e gelada
já eras pelas rochas lá da altura.
Uma voz sem garganta, voz escura
que soa em tudo sem soar em nada.

Teu pensamento é neve resvalada
na infindável glória da brancura.
Teu perfil é perene queimadura,
teu coração é pomba desatada.

Canta já pelo ar, livre e serena,
a matinal flagrante melodia,
monte de luz e chaga de açucena.

Que nós outros aqui de noite e dia
teceremos no ângulo da pena
uma grinalda de melancolia.




MIGUEL DE UNAMUNO (1864-1937)
"A união com Deus"
(Trad. de Delson Tarlé)

Queria, ó Deus, querer o que não quero,
fundir-me em Ti, perder minha pessoa;
este Eu vil, pelo qual me desespero,
que meu mundo, ao redor, todo enodoa.

Se me deixa tua mão divina e boa,
qual será minha sorte? Serei mero
servo do próprio Eu. Não me perdoa
o nada de onde vim, e nada espero.

"Cumpra-se o teu desejo, Pai!" repito
ao levantar-se e ao recolher-se o dia,
buscando conformar-me a teu mandato.

Mas dentro em mim ressoa aquele grito
do implacável Luzbel, que pretendia
ser, na verdade, fero desacato!




MANUEL MACHADO (1874-1946)
"Alfa e Omega"
(Trad. de Delson Tarlé)

A vida inteira cabe num soneto
começado com verso distraído
e que imita, no espaço de um gemido,
a infância, tão fugaz como um quarteto.

A juventude chega com secreto
ar de vida, que passa inadvertido,
que vai também, já foi, sonho vivido,
antes de entrar no próximo terceto.

Já maduros, pelo ontem suspiramos
e, curtindo a incerteza do amanhã,
este breve terceto malgastamos.

E, quando no terceto último entramos,
é para ver, com experiência vã,
que se acaba o soneto... e que nos vamos.




JUAN RAMÓN IIMÉNEZ (1881-1958)
"Outubro"
(Trad. de Delson Tarlé)

Deitei-me a descansar na terra, em frente
dos infinitos campos de Castela,
que o outono revestia da amarela
suavidade do seu claro sol-poente.

Moroso, o arado, paralelamente,
abria a terra escurá, e a mão singela
escondia a semente dentro dela,
em sua entranha aberta honradamente.

Quis arrancar o coração, deixá-lo
pleno do meu sentir, alto e profundo,
ao sulco amplo do chão bondoso e terno;

a ver se, com rompê-lo e com semeá-lo,
a primavera, então, mostrava ao mundo
a árvore pura de um amor eterno.




JUAN RAMÓN JIMÉNEZ (1881-1958)
"A minha alma"
(Trad. de Delson Tarlé)

Sempre tens uma rama preparada,
aguardando o frescor da rosa certa.
À porta do teu corpo, o ouvido alerta,
cálido, ausculta a flecha inesperada.

Não passa onda sutil, não passa um nada,
sem que leve de tua sombra aberta
a luz melhor. De noite, estás desperta,
em tua estrela, à vida desvelada.

Signo indelével pões nas coisas. Gozas
a Glória em ti. Reviverás, um dia,
nas coisas, por assim tanto vivê-las.

Tua rosa será norma das rosas;
da Luz, teu pensamento; da Harmonia,
teu ouvido; teus olhos, das estrelas.




J. FERNÁNDEZ DEL VILLAR (1888-1941)
"Sonho galante"
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Quisera ser teu pajem favorito
para estreitar-te as mãos espirituais,
e converter em flor de madrigais
teu coração tão duro, de granito.

Em meu escudo eu levaria escrito
teu nome, para a inveja dos rivais,
e teus lábios em flor, rubros, sensuais,
seriam mel, para o meu beijo aflito.

Em tua honra eu terçaria lanças
para alcançar favores e esperanças,
vencendo prélios, superando escolhos,

e tendo o teu orgulho dominado,
quisera ver-me sempre retratado
nessas claras safiras dos teus olhos.




JOSÉ MARIA CARAJAVILLE (1892-1932)
"Pombas mensageiras"
(Trad. de Carlos Maranhão)

Essa paz campesina em que me abismo,
tem tal doçura, generosa e estranha,
que nessa calma o espírito se banha
qual num Jordão sereno de mutismo.

Dormem as inquietudes do lirismo
e uma suave indolência me acompanha.
Meu pensamento — caprichosa aranha —
vai tecendo outros fios de idealismo!

Recordando passadas desventuras
— cativas dos encantos desta calma
e ao sonho redivivo das ternuras —

voam estas estrofes prisioneiras
sobre as líricas asas da minha alma,
como um bando de pombas mensageiras...




FRANCISCO RODRIGUEZ MARIN (1855-1943)
"Anseios"
(Adaptado por J. G. de Araújo Jorge)

Água eu quisera ser — pela alegria
de te dar a beber meu próprio Ser,
por tua sede, que eu não mataria,
para molhar teus lábios, por prazer...

Vento eu quisera ser — e à noite, iria
adormecida, te surpreender
ressonando em teu leito, e então seria
o ar que precisas pra poder viver!

Fogo eu quisera ser — e em rubras chamas
num delírio de amor, toda, abrasar-te,
para ter a certeza de que me amas...

Depois, para possuir-te, de verdade,
— terra eu quisera ser! E disputar-te
ciumento, à morte, pela eternidade!

______
NOTA: J . G. de Araújo Jorge lembra que o tema do soneto ("Anhelos") se baseia na "velha concepção de Empédocles, filósofo grego da Escola de Mileto, que afirmava ser o Universo constituído de quatro elementos fundamentais: a água, o ar, o fogo e a terra".




FRANCISCO RODRIGUEZ MARIN (1855-1943)
"A um bem efêmero"
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Ó, inesperado bem que a mim chegaste
como em meu coração te recolheste,
e em eflúvios celestes o inundaste
e num mar de delícias o envolveste?

Pois que ao teu fogo o meu amor ardeste
por que ao partir, ardendo, o abandonaste?
Para durar tão pouco por que vieste?
E se quiseste vir, por que o deixaste?

Relâmpago fugaz, ó bem — meteoro
que no céu cintilou! Nem sei se vi
na noite, a tua luz. Mal pude ver-te!

Mas a sorte bendigo e não deploro,
pois perdendo-te assim, enfim perdi
essa angústia e esse medo de perder-te.



GERARDO DIEGO (1896)
"Insônia"
(Trad. de Delson Tarlé)

Desnudo sonho, o teu. Suspiros suaves.
Sem mim teu sonho e em ti o meu desvelo.
E dormes, incapaz de percebê-lo,
tu em teu sonho e pelo mar as naves.

Em cárceres de espaço, aéreas chaves
separam-te de mim. Lá fora, o gelo,
cristal de ar em mil folhas. Sinto o apelo
de voar a ti com asas de mil aves.

Não posso. E dormes, calma como o céu,
tão perto de meus braços manietados,
tão perto... e tão segura, anjo risonho.

Que pavorosa escravidão de ilhéu!
Eu, louco, insone, preso a meus cuidados,
as naves pelo mar, tu em teu sonho.




RAFAEL ALBERTI (1902)
"À paleta"
(Trad. de Xavier Placer)

A ti, infinita face, chão semeado
onde ceifa o pincel, resume, amassa
e onde entre cor, luzes e sombras, passa
de mar radioso a um tempo então nublado.

A ti, poço e coberta, onde assomado
medita, vem e vai, mede, compassa;
fronte na mão pousada que ultrapassa
teu ver de Polifemo enamorado.

A ti, asa redonda, leque, escudo,
espelho que ao vestir queda desnudo
a superfície novamente pura.

Em ti a visão se apura assim que nasce.
Teu firmamento o arco-íris pasce.
A ti, leito e cadinho da Pintura.




MIGUEL HERNÁNDEZ (1910-1942)
"O touro"
(Trad. de Delson Tarlé)

Como o touro, nascido para o luto
e a dor, eu, como o touro, estou marcado
por um ferro infernal em meu costado,
a alma em fogo, no ardor de um corpo bruto.

Como o do touro, fica diminuto
todo o meu coração desmesurado,
e, do teu beijo sempre enamorado,
eu, como o touro, teu amor disputo.

Avulto, como o touro, ante o castigo.
No coração, na boca ensangüentada,
na cerviz, há trovões reboando em coro.

Como o touro, te sigo e te persigo,
e deixas meu desejo numa espada,
e eu, trôpego, agonizo, como o touro.




RAFAEL DUYOS (1906-1983)
"Soneto II"
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Que hei de fazer, amor, sem teu cuidado
quando novembro chegue às minhas veias?
Já não trarei as mãos, como hoje, cheias
de açucenas, do teu jardim velado.

Porém, desse jardim por mim guardado
entre estas folhas de sonetos cheias,
restará a saudade — e em suas peias
um perfume de amor, de amor calado.

E quando perguntarem: e isto, que era?
Por que uma tal lembrança murcha e rota
no teu velho caderno de poesias?

Eu lhes direi que foi a primavera!
O sumo dos teus lábios, gota a gota,
semeando as ilusões mais fugidias.




RICARDO LEÓN (1877-1943)
(Trad. de J. G. de Araújo Jorge)

Do instante em que vos vi, minha Senhora,
fiquei cativo à vossa formosura,
e nas entranhas dessa noite escura
que é à minha vida — amanheceu a aurora!

Piedade! pois minha alma vos adora
prisioneira em dulcíssima loucura,
e amor eterno nestes versos jura
com essa ternura que em meu peito chora!

Não vos ofenda, pois, o meu carinho,
que os vossos claros olhos, possa tê-los
como luz a guiar o meu caminho...

Foi minha doce perdição mirá-los
pois se a amá-los cheguei, tão só por vê-los
certo, Senhora, hei de morrer, de amá-los!








 (Das páginas 313 a 346 de “O Mundo Maravilhoso
do Soneto, de Vasco de Castro Lima)

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