Maria Thereza Cunha de Giacomo

São Paulo (1928-2002)


I 
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Meu pai que me engendrou, por onde tinha andado?
Por que borda do mar, na manhã desse dia?
E minha mãe depois, com que terá fiado
em tecido de espuma a minha alma e alegria?

E a madrinha terá, com que sonho e cuidado,
Sonhado o meu batismo e o sal sobre a bacia?
Meu irmão, minha irmã, que terão desejado
àquela que a manhã, molhada, lhes trazia?

As parteiras terão cantado ao mar que terço?
Com que concha do mar alguém me fez o berço?
Que bruma de alto mar foi cortinado à infanta?

De que areias herdei meu sonho e meu destino?
Que ressaca chorou na boda e foi meu sino?
Que mar, branco de sal, minha agonia canta?



II
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Desenho na memória meus gramados
verdes, tão verdes que me sinto cega!
E o verde dos meus dedos escorrega
encharcando meus chãos encapelados...

Meus campos ondulantes são bordados
de luz nas bordas, onde a luz se esfrega!
E a voz, que longe canta, não se nega
aos meus ouvidos surdos e cansados.

Nos gramados dos campos verdejando
Deixei soluços vagos se afogando
e a minha voz aos ventos a chamar...

E os campos que eu supunha ter perdido
flutuam neste grito enlouquecido
que vem do verde que deixei no mar!



XXIV
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Cada vestido novo, quando escolho,
penso em meu vulto nele destacado;
desnudo-me, se nele me recolho
e o vestido se faz quase pecado...

E do vestido as cores todas colho
nas flores que tivemos no passado...
Quero o vestido em flor desabrochado
no olhar, espelho em que jamais me acolho.

Faço o vestido. Visto-o. Sai da moda:
hoje é longo; ontem, teve imensa roda...
Amanhã será de ouro? Algas? Talvez!...

Vão-se os trapos, as sedas, os retalhos;
exibo-os nas estradas, nos atalhos...
Os vestidos que dispo e que não vês!



XXV
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Quando vibro e palpito toda inteira
no frêmito do amor que me domina
choro minha pureza de menina,
choro a vestal, choro a noviça, a freira.

Amo sem ter amor. Como rameira,
sou mulher toda inteira. E é minha sina
no prazer que me abrasa e me fascina
me sentir mentirosa e verdadeira...

O meu corpo me trai a alma distante,
e, sucumbindo, em chama delirante,
faz-me ser duas, por me dividir...

Pois é tempo demais para amar tanto
e viver só de sonho e desencanto
sem deixar minha carne te trair!



XXXVI
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Esta vida irreal que sonho mas não tenho
Me faz perambular entre sombras estranhas...
E cumpro sem saber... Porque me chamam, venho,
Afastando, ao passar, vagas teias de aranhas.

Pois não sei onde estou. E quanto mais me empenho
em ser real, não sou. Sou rosto e vãs entranhas.
E repito-me e esqueço e lembro-me e me abstenho
e sigo rumo ao sol que vem de outras montanhas.

Não sei o que fazer para me atar à vida;
vivo a vida irreal que me deixa perdida
e me faz não saber... Vivo o sono profundo... 

— Acordem-me! Pedi... Ninguém me escuta o grito;
talvez ele se perca e vá pelo infinito
e me deixe a sonhar, desligada do mundo!



XXXIX
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Cimento armado e bruma e chuva fina
e vento, e sons que nunca reconheço
e a noite longa e o dia sem começo
embuçado nos restos da neblina...

Paisagem sempre igual que na retina
recolho e guardo e é tudo o que mereço,
esta eterna paisagem, paga ao preço
de ter sido fiel desde menina...

A bruma deste exílio voluntário
que faz pano de fundo, faz cenário,
para a vida esgarçada em bruma e chuva...

E nós duas, a natureza e a morta,
que procuram neste ar que as desconforta
a razão destes véus de morta e viúva!



XL
Maria Thereza Cunha de Giacomo

E a mão que treme tanto? Se a pousasse
na tua, firme ela se tornaria.
mas resta-me a tremer, minha mão fria,
a tatear, como se procurasse...

Borboleta na flor, no desenlace,
quando se desprendeu da que a queria,
minha trêmula mão já percebia
que nunca mais — quem sabe? — se firmasse...

Palpitam-me asas? Mãos? Outras se estendem
firmes e aos gestos trêmulos atendem
e, atônitas, perguntam: que razão?...

Sorrio. Fico quieta e estendo o braço
e vejo, em meu tristíssimo cansaço
como treme, vazia, a minha mão...



XLI
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Sou duas. A que eu tenho e a que eu queria...
Há entre as duas um profundo abismo:
uma, sou a que faz; outra, a que cismo;
uma que tece; outra que sonhos fia...

Nos meus olhos se esconde a fantasia
que uma canta e a outra cala, em seu mutismo.
Numa se escondem gestos de lirismo...
A outra constrói meu pobre dia a dia...

E assim, a um tempo abstrata e consciente,
vou levando esta vida calma e ardente
de estar aqui e me perder, lá fora...

Uma é tua — a que em  mim fica escondida, —
a outra soluça, me arrastando a vida...
E em ambas estou morta, viva embora!



XLIV
Maria Thereza Cunha de Giacomo

 Eu, que vivi de sal e que sonhei meu porto,
depois de navegar por oceanos e mares,
encontro o velho cais batido, e em verdes morto
de limos e de lodo e sal de outros lugares...

Mas não posso atracar! E alguém, de terra, absorto,
diz que eu faça outra volta, a esperar preamares!
“Não era hoje, mulher, o dia de voltares!...”
E é nova travessia e é novo desconforto.

Aceno ao porto adeus e em troca tenho apenas
a lucidez da luz de lâmpadas serenas
que levo — meus faróis — no verde oceano amargo.

— Como a âncora me pesa em meu peito cravada!
Tentei lançá-la aqui, por sobre esta amurada;
meu calado me impede o pouso e põe-me ao largo!



LXV
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Quero lembrar, como tesouro estranho,
tudo o que tive, tudo o que perdi:
Cartas, retrato, anel, cofre de estanho.
Livros: os teus; o que te ofereci.

O sorriso, os vestidos e o castanho
Cacho. Eas verdades que jamais menti...
E, em páginas inúteis, o rebanho
Dos versos, que no aprisco recolhi.

O frasco de perfume, já vazio!
O xale dado — mas contra que frio?... —
... Roxa orquídea, a florir chaga, em meu peito.

— Oh! Meus sonhos e tão poucos objetos
Dos dias tão vazios, tão repletos,
De que faço o inventário insatisfeito!



LXVI
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Eu quero um filho teu!
                Entranhas, cantas?
Alarga-te, dilata-te, na espera...
Tendo este filho, que me dilacera,
Dá-me sofrer o estigma das mais santas!

E, sendo virgem  — lúcida quimera!  —
Quero as dilatações todas e tantas
Com que meu corpo rijo inda acalantas
Na florada da tua primavera!

Sem tua ser, te dar o que pareça
Em tudo com teu ser. Corpo, cabeça,
Alma, coração forte, mente fria...

Quero te oferecer, calma, o fecundo
Fruto que inda te falta neste mundo
E que, no mundo, me completaria!



LXX
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Amo-te em flor, madura! E me transmuto!
Amo-te! E sou a mesma. E sou deposta...
Da minha juventude de um minuto?
Eis: toda a minha vida por resposta!

Em mim me debruçando inda te escuto
A voz; e vejo o vulto, inda que oposta...
São tuas minhas flores, teu meu fruto
E minha mão na tua resta posta...

Sou tua na madura idade augusta
Que custou minha vida! E que me custa
Tempo inútil de sonho e de saudade...

Viesses, pelo tempo mal passado,
E desabrocharias, meu amado,
A floração da tarda mocidade!



LXXVI
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Onde estou que não sei dos caminhos e atalhos
e não sei decifrar as  vozes e os intentos?
Por que não sinto a dor de alheios sofrimentos
e não creio no som de vãos desejos falhos?

Que trajes encontrei, que prefiro os retalhos?
Na azáfama, por que tenho os gestos tão lentos?
Há música... Por que prefiro a voz dos ventos?
Por que prefiro a chuva ao cristal dos orvalhos?...

Quem sou eu que não sou e fico assim perdida?
Quem me fez e deixou ficar, desconhecida?
Se não quero fazer, que vou fazer agora?

E que mal ou que bem meu coração não ganha?
A quem posso sorrir, se sou de todo estranha?
Como permanecer, se prefiro ir-me embora?



LXXVII
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Verde que amo nas verdes samambaias
Que inda cultivo em meu jardim fechado,
Reverberais nas folhas e nas praias
E és minha cor do mar e és cor do amado...

Verde que em prata e chumbo te desmaias
Quando o dia se acaba desmaiado...
Verde dos tafetás das longas saias
Tecidas do impossível do noivado... 

— Verde do verde de esmeraldas verdes
Que não me destes vós, só por não terdes
Nada a me dar, além desta amizade...

Verde das esmeraldas no meu dedo,
Símbolo e brilho verdes do segredo
De um sonho, de um amor, de uma saudade!



LXXX
Maria Thereza Cunha de Giacomo

Como dura este ardor que me consome
Na carne que meu tempo não desfaz!
Oh! minha eterna e desmedida fome
De amor, que teu amor tardo não traz.

Que teu olhar me tome toda e tome
A que eu era no tempo olhado atrás!
O gelo cresce e a mão fenece e some
Aquela que já fui, que não sou mais...

No entanto existo na melancolia
Da que, sem ter porque, dia após dia,
                       Ama-te!                                              
 ... Mas, que força é teu segredo?!...

Propondo-te amizade sou sincera...
Mas como desabrocha a primavera!
E, neste outono, como tenho medo!...




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