Farid Félix

Miracema, RJ, 1910
Petrópolis, RJ, 2004


PETRÓPOLIS*
Farid Félix

Moço ainda busquei tuas paragens,
olhos escancarados à beleza
de teus rios e ao verde das folhagens,
com que te engalanou a natureza.

Encantado de tua realeza
e de tuas edênicas paisagens,
louvei em ti, de Deus toda a beleza
a mais bela de todas as miragens.

Aqui, planos tracei, ergui castelos,
Estruturei o meu primeiro verso
e engrinaldei de neve os meus cabelos.

E o meu fervor por ti chegou ao cúmulo:
Se ao nascer, te não tive por meu berço,
que ao menos eu te tenha por meu túmulo.

(*) Os restos mortais de Farid Félix estão sepultados em Petrópolis/RJ, 
onde faleceu em fevereiro de 2004.



VIDA
Farid Félix

Vida, profundo e imenso labirinto
em que ditoso, o meu ideal buscando,
cheio de sonhos, de emoções faminto,
entrei um dia, o coração cantando.

Como Teseu, herói de um tempo extinto,
não tive do novelo o fio brando,
que me guiasse pelo teu recinto
de enganos e mistérios formidando.

E ora me interiorizo e me concentro,
no quanto me quisera e não tivera,
nesse doido vagar por ti adentro,

e sinto, nos teus vórtices medonhos,
que, sem de Ariadne o fio, eu me perdera
no labirinto dos meus próprios sonhos. 



INSCRIÇÃO
Farid Félix

Aqui, sob este chão de aspecto rude,
sem legenda nem cruz, nesta morada,
alguém jaz para sempre em quietude,
a alma de antigas mágoas aliviada.

Foram-se-lhe a esperança malograda
e, vãos, os sonhos bons da juventude.
Sofreu, mas de alma firme e devotada
às belezas da vida e da virtude.

Descansa agora em paz sob este chão,
que, adormecidos nossos desatinos,
veneramos de calmo coração.

Aqui, à tarde, quando o sol se vai,
ao dobre melancólico dos sinos,
de alma ajoelhada vem rezar meu pai!



SERENIDADE
Farid Félix

Não obstante sofrer, não me exaspero,
antes padeço com serenidade,
que nada mais anseio e nada espero
dos meus dias na transitoriedade.

O espírito esfalfei na iniquidade
de vãos desejos, no que de sincero,
de puro e bom busquei na humanidade,
e apenas encontrei o desespero.

Sem mais a que aspirar, me vou, risonho,
da vida pelo vórtice medonho,
angústias amaríssimas calando.

Que a mim me apraz, nos ermos dos meus dias,
embeber-me de sons e de harmonias
e viver entre lágrimas cantando.



PAPAI NOEL
Farid Félix

Papai Noel, eu era inda criança
e a te esperar me punha nesses dias,
tomado da mais dúlcida esperança
de que um lindo brinquedo me trarias.

Como nem tudo que se quer se alcança,
pelo Natal chegavas e partias,
e de mim, alma ingenuamente mansa,
nunca, Papai Noel, te apercebias.

Ah! Como o tempo o passa... Menininho,
eu punha na janela meus tamancos,
que eu não tinha sequer, um sapatinho.

Ainda hoje, como antes, eu me quedo,
a te esperar, cabelos todos brancos
na ilusão de que tragas meu brinquedo.



E DEUS DISSE AO POETA
Farid Félix

Ao poeta disse Deus: "Vai, peregrino,
e cumpre as tuas árduas caminhadas,
e canta e que teu canto seja um hino,
mas de esperança às almas desoladas.

Vai e canta com teu verbo cristalino,
sejam dias de sol, ou de nevadas,
que este é, na vida amarga, o teu destino:
florir de sonho todas as estradas".

Apóstolo do sonho e da esperança,
o poeta partiu, em doce calma,
à mercê de borrascas e bonança.

E cantou, e ainda canta aos sóis dispersos
toda a beleza que lhe brotou n'alma
e jorra em cataratas dos seus versos. 



ELA
Farid Félix

Todo dia ela passa, manhãzinha,
mal radiosa do sol a luz se escoa,
tão logo a passarada desaninha
e asas ao vento a imensidão povoa.

Boneca de ouro e mármore caminha,
olhos postos no chão, simples e boa,
lembrando pelo porte uma rainha,
na opulência da graça que a coroa.

E ela passa... inflexivelmente fria,
mas tão linda no seu fulgor, que ensombra
a própria luz do sol, que a acaricia...

E, assim, ela não vê, abstraída e bela,
que é a minha alma, e não a sua sombra,
a sombra que a seus pés se vai com ela! 



INDIFERENTES
Farid Félix

Começou, de um olhar sem pretensão,
nossa história de amor e encantamento.
Tu só tinhas a mim no pensamento.
Eu apenas a ti no coração.

Que pudesse morrer nossa ilusão,
não pensaste, nem eu, um só momento.
E cheios de ânsias e deslumbramento,
a vida a um Éden nos sabia, então.

Felizes, longo tempo nós vivemos,
sem uma altercação, ou rusgazinha
que perigasse o teu afeto e o meu.

Hoje (ninguém diria) se nos vemos:
Nem me parece que já foste minha!
Nem te parece que também fui teu! 



SONETO RETROSPECTIVO
Farid Félix

Ah! Se de outrora, agora recordando,
fatos e coisas recapitulasse,
quanto que em mim viveu tumultuando,
talvez a sensação que me espertasse

fosse a de um rio, que, célere, estuando,
por entre pedras, se despedaçasse,
e que, de novo, manso, deslizando,
em direção ao mar, se desaguasse.

Porque da vida, neste mesmo leito,
em que encontro e em que rolei sujeito
às desesperações de toda sorte,

deslizo e rolo, agora, mansamente,
e como um rio espero tão somente
me desaguar no mar comum da morte.


O RIO
Farid Félix

Morosamente, múrmuro, rolando,
via-se o rio límpido e ondeante,
nas cristalinas águas espelhando
as árvores de em volta e o céu distante.

Transmudado de súbito, inconstante,
num tremendo caudal, espadanando,
tal como o velho mar tonitruante,
ele vai-se a rolar, turbilhonando.

Mas, refeito e em suave movimento,
o rio espelha o azul do firmamento
em suas águas claras e serenas.

Só em minha alma — abnegação e amor —
não se acalma jamais este rumor
de saudades, de mágoas e de penas.



A CIGANA
Farid Félix

Uma cigana, certo dia, olhando
de minhas mãos as linhas, me falou:
— “vais ser muito feliz. Mas como e quando,
não sei. Segue e verás!” — e se calou.

Desde esse dia venho caminhando,
(às vezes esquecido do que sou
amargo, desolado e miserando),
empós do que ela me profetizou.

E caminho ainda, e sempre triste e mudo.,
acorrentado ao meu destino rudo,
à mesma e invariável diretriz.

Levando viva a imagem da cigana
que, vivendo a enganar não desengana
a ilusão, que se tem de ser feliz.



ALHEAMENTO
Farid Félix

Quase não saio mais de casa. Enfim,
para quê? Se com pouco me contento.
Se faz sol, vou andar pelo jardim,
no mais doce e suave alheamento.

Se chove, para meu divertimento,
eu leio a Bíblia, ou passo o tempo assim,
a escrever tudo quanto o pensamento
vai me arrancando do íntimo, de mim.

Razão não tenho para achar odiosa,
ou proclamar a vida mentirosa
porque nada saiu ao meu intento.

E sou feliz, assim, sem desejar,
que ouvir me basta a música do vento,
ou ficar em silêncio olhando o mar.



ETERNA ESPERANÇA
Farid Félix

Ela disse que vinha a qualquer hora,
e, ansioso, eu fiquei a sua espera.
Aves cantavam pelo espaço em fora.
Nem sequer uma nuvem pela esfera.

Mas a ânsia de abraçá-la me exaspera.
De ela não vir, o medo me apavora.
E o céu, de azul suavíssimo que era,
de densas brumas se cobriu agora.

E ela não veio. E só, angustiado,
vejo as horas passarem lentamente
em torno a vida insípida, vazia.

E murmuro comigo, esperançado:
Se ela não pôde vir, possivelmente
há de vir qualquer hora, em qualquer dia.



NÓS, OS SONHADORES
Farid Félix

E vamo-nos assim: almas ardendo em ânsia...
De manhã ao frescor das róseas alvoradas;
o olhar a se perder no azul da distância
de harmonias e sons enflorando as estradas.

Exultantes de nós, das flores à fragrância,
vamos esplandecer as ilusões douradas,
dos sonhos a fulgir a misteriosa estância,
e, mais perto de nós, as metas desejadas.

E voltamos assim: mortas as fantasias,
da noite, na algidez, as pobres mãos vazias
e em névoa o nosso olhar, onde a luz fulgurou.

E da flórea aventura, entre laivos de dor,
só nos fica a saudade — o remoto esplendor —
de tudo o que se quis e nunca se alcançou.



CASA DE MINHA INFÂNCIA
Farid Félix

A casa eu quis rever de minha infância
já quase meio século passado.
E parti. Coração ardendo em ânsia,
o corpo, pelos anos alquebrado.

Não cuidei, em nenhuma circunstância,
revê-la como a havia então deixado
naquela flórea e prazerosa estância,
mas um simples casebre abandonado.

E revi, comovido, a casa amada,
ora uma rica e esplêndida morada,
tão diversa da que antes conheci.

Ah! Que estranho destino nos tocara:
Ela, através do tempo, remoçara!
Eu, através do tempo, envelheci!



A ÁRVORE
Farid Félix

Um dia, já fui árvore frondosa,
onde, à sombra, o viajor se refazia
da sua lide amarga e afadigosa,
para seguir, de novo, noutro dia.

Agora, desfolhada e carunchosa,
sem nada que me abrigue à ventania,
ou à soalheira brava e tormentosa,
expio, sem rancor, minha agonia.

E sinto os galhos já se desprenderem
do meu tronco mirrado e carcomido
à serena inconstância dos minutos.

Ah! Que tristeza das árvores morrerem,
depois de haverem, pródigas, vivido,
carregadas de flores e de frutos.



BALÕES
Farid Félix

Na minha ingênua e doce fantasia,
também eu, em as noites de São João,
um após outro, os meus balões, um dia,
soltei, do céu na etérea vastidão.

Escorraçados pela ventania,
nem um só se manteve na amplidão.
E, à proporção que cada qual caía,
em cinzas desfaziam-se no chão.

Agora, tantos anos decorridos,
os olhos volto àqueles tempos idos,
em que forjei as minhas ilusões.

E dói-me o coração em dor sepulto,
que elas, também, da vida no tumulto,
se desfizeram como os meus balões.



CONDENADO
Farid Félix

Sempre que vejo um pássaro, medito.
E, desejos eu tenho, no momento,
de voar, de subir ao firmamento
e embriagar-me de ar e de infinito;

de evadir-me a esse mundo, em que me agito,
e a falsos preconceitos me acorrento,
e ser livre, tal como o mar e o vento,
longe da humana forma e humano grito.

Mas — ai de mim! — no espaço limitado
da prisão em que vivo condenado
a estas mágoas cruéis, que me consomem,

eu sinto, na ânsia de ascender a espaços,
como um grilhão a me prender os braços,
a racional consciência de ser homem!



A COLHEITA
Farid Félix

De novo, entre suores trabalhada,
de outras searas deslembrando os danos, 
semeei de sonhos e sutis enganos,
a terra tantas vezes semeada.

E feliz, a cantar, entre os humanos,
a espera me deixei, de alma enlevada,
pela colheita, eterna desejada,
com as mesmas esperanças de outros anos.

Mas, se falhar de novo a semeadura,
embora a lida porfiosa e dura,
a que tenho a minha alma, pois, sujeita,

que Deus me dê saúde e força, para,
mais uma vez, plantar outra seara
e, sereno, aguardar outra colheita.



NO MUNDO DOS SONHOS
Farid Félix

Assim quero encontrar-te: os teus olhos fechados,
como num sono bom numa noite de frio.
Os meus lábios nos teus, docemente pousados,
e, em torno de nós dois, o silêncio, o vazio.

Nas minhas tuas mãos, dedos entrelaçados.
Ambos o olhar sem ver, muitas horas a fio,
havemos de ficar, como traumatizados
ao supremo esplendor desse doce amavio.

Que manso role o mar, ou se encrespe medonho!
Que se anuvie o céu, ou esplenda-se em luares!
Que se acoberte o chão de flores ou granizo!

Nada perturbará nosso mundo de sonho.
E, quando os olhos teus, de novo, os descerrares,
teremos, até nós, trazido o paraíso.



FICA!
Farid Félix

— “... Enfim, urge que eu parta. Já lá fora,
do dia a luz aclara a imensidade.
A manhã surge rútila e sonora.
É o dia na estridente claridade.”  —

— Não. Não é o dia esta luz, agora
mesmo, há pouco, se fez escuridade.
É noite ainda, não te vás embora,
gozemos, meu amor, a mocidade.

Fica! Que importa a nós, assim amando,
que o dia nasça e encontre-nos a sós, 
ainda abraçados, lânguidos, beijando? 

O amor é belo — amemo-nos, querida,
que não tarda baixar, por sobre nós,
o sombrio crepúsculo da vida.



ASPIRAÇÃO
Farid Félix

Possa eu morrer assim... tu, a meu lado
e, ao longe, os céus azuis resplandecendo.
As árvores aromas recendendo
e o sol dourando o imenso descampado.

Nos teus braços me esvair de todo, e vendo
o teu olhar tristonho em mim pousado,
como a dizer que me amas, e eu, calado,
lívido, exausto, em êxtase, morrendo...

Sem uma frase, um gesto, um só gemido,
no teu colo a cabeça repousada,
sentir-me, para sempre, sucumbido.

Assim, cumprisse o meu destino rudo:
Os lábios meus — sem te dizerem nada!
Os olhos meus — a te dizerem tudo!



A DOR DE MARIA
Farid Félix

Meigo Jesus, pregado à cruz, jazia,
sem um gemido, sem um só lamento:
mudo, no horror do seu martírio lento,
que sem dúvida à morte O levaria.

Súbito, um temporal se prenuncia,
e treme a terra num tremor violento,
e rasga-se em clarões o firmamento!
Jesus, naquele instante, perecia.

De joelhos a seus pés, nívea de espanto,
Maria, de mãos postas, recolhida,
murmura os olhos úmidos de pranto:

— “Meu filho, como é adversa a minha sorte,
de Deus eu recebi a tua vida,
e dos homens recebo a tua morte!” —



VELHINHOS
Farid Félix

Quando eu ficar velhinho e tu, querida,
também velhinha fores, finalmente,
assim, de braços dados, pela vida
iremos, sós e prazerosamente.

E lembraremos a passada lida,
olhos nos olhos, enlevadamente,
de alma a sorrir, embora envelhecida,
e envelhecido o coração da gente.

E ambos assim, ditosos, sem cuidados,
como nos tempos bons de namorados,
trilharemos, aos trancos e barrancos,

Os antigos caminhos percorridos,
tu e eu, por este amor inda aquecidos
e engrinaldados de cabelos brancos.



SONETO
Farid Félix

Brilhai, ó sóis, auroras e luares,
incendiai de fogo o firmamento.
E exulte a terra em vida e em movimento
ao resplendor das luzes estelares.

E vós, mares, rolai vosso lamento,
aves, cantai também vossos cantares
que se ascendem e rolam pelos ares
num dilúvio de sons e encantamento.

Ela voltou ao meu amor proscrito,
ela, a mulher por quem vivi de rastros,
a deusa do meu sonho e do meu rito.

E eu possa, à vossa luz e aos sons divinos,
dar-lhe minha alma estilhaçada em astros,
meu coração arrebentado em hinos!



A UM TRISTE
Farid Félix

Não maldigas a vida, todavia,
nem que percas os bens, toda a ventura
que acaso imaginaste de alma pura
como o pranto nos olhos de Maria.

Não ensombres, jamais, tua alegria,
pelo teu mal de amor que te amargura,
pois que o mal, como o bem, tão pouco dura,
também a noite se transmuda em dia.

Vai cantando e gemendo em tua lira,
erguido, bem no alto, o pensamento,
por mais e tão mais fundo a dor te fira.

E não te cuide o teu pesar profundo,
és livre como o mar e como o vento,
e a liberdade é o bem maior do mundo!

(Poemas constantes do livro "Lua do Meu Rio", 1987, 2ª. edição, Editora Pirilampo, Petrópolis/RJ)


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