A Origem do Soneto



O Soneto foi, e é, um Sol que surgiu na Idade Média, período-base das literaturas ocidentais, para se projetar pelos séculos afora, tornado, enfim, o único poema de forma fixa que ainda subsiste.

Quase ao término da longa noite medieval — noite em que se ostentaram inúmeras estrelas luminosas — nasceu a maior delas, o Soneto, com um destino de magia, capaz de perenizá-lo, como, incontestavelmente, vem acontecendo.

Nasceu quando já esmaeciam as vozes remotas e incipientes das civilizações primitivas; e quando a prodigiosa Grécia de Homero e Platão, e a extraordinária Roma de Virgílio e Horácio eram, apenas, saudosas e gratas lembranças. Lembranças que, aliás, perduram, mesmo em se considerando o poderio de outras grandes literaturas despontadas a partir da Renascença.


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Discute-se, até hoje, a origem do Soneto, embora esteja sobejamente provado que sua invenção data do século XIII. E já era, então, praticamente dentro do seu nascedouro, um poema de forma fixa, composto de quatorze versos, distribuídos por dois quartetos e dois tercetos: os quartetos somente com duas rimas; e os tercetos contendo, também, duas rimas, diferentes daquelas dos quartetos.

Entraremos em detalhes, a respeito, no decorrer de nossa explanação inicial.

Uns defenderam, ou defendem, a origem provençal do Soneto, enquanto outros, em percentagem quase total, afirmam tratar-se de uma criação italiana.

Vejamos como devem ter ocorrido as coisas, dentro daquilo que conseguimos apurar ou, pelo menos, vislumbrar, em termos de um problema ligeiramente controvertido. Dizemos "ligeiramente controvertido", porque os fatos, os argumentos, as conclusões aqui expostos podem levar os leitores a um conceito bastante próximo da verdade.



A tese francesa


A "Grande Enciclopédia Delta Larousse" assim se manifesta, no verbete "Soneto": — "Os primeiros exemplos, ainda rudimentares, do soneto, encontram-se na poesia dos trovadores provençais. Da Provença, a forma chegou à Sicília (Pier delle Vigne) e foi desenvolvida pelos poetas italianos do "dolce stil nuovo: Guido Cavalcanti, Cecco Angiolieri, Dante, Petrarca".

Segundo o poeta francês Guillaume Colletet (1598-1659), protegido de Richelieu e membro da Academia Francesa, os italianos teriam recebido o soneto dos trovadores da Provença que, por sua vez, já o teriam herdado dos poetas que viveram na corte dos primeiros reis da França. Muito mais tarde, no século XVI — depois de haver florescido na Itália, com Dante e Petrarca — Mellin de Saint-Gelais e Clement Marot o teriam trazido, de novo, para as terras francesas.

De passagem, e a propósito desta opinião de Colletet, vamos dizendo que Thibaud IV, o "Cantador" (1201-1253), Conde de Troyes e de Meaux, e rei de Navarra, é, também, apontado como um dos descobridores do soneto. Suas canções se incluem, talvez, entre as mais belas da poesia cortesã.
Augusto Dorchain (1857-1930), poeta e escritor francês, no seu tratado "L'Art des Vers", também apóia a hipótese da invenção pelos trovadores provençais.

Frederico August Lolliée (n. 1856), literato francês, autor de grande bagagem literária, em seu "Dictionnaire des Ecrivains et des Littératures" (1897), invoca a mesma procedência, citando Girard de Bourneuil (1150-1220) como inventor do soneto.

No Brasil, conferem tal distinção à Provença (na pessoa de Bourneuil): Olavo Bilac e Guimarães Passos, em seu "Tratado de Versificação"; o poeta e antologista Edgard Rezende; o professor e historiador Marques da Cruz, que escreveu uma "História da Literatura"; e Manoel Macedo, autor de "Aprenda a Fazer Versos".

Alberto de Oliveira, grande poeta, sonetista emérito, parece que alimentava dúvidas a respeito. Na sua conferência "O Soneto Brasileiro", proferida na Biblioteca Nacional, em 23 de setembro de 1918, disse, sobre o assunto: "Originariamente com o nome de "son d'amour" ou "sonet", aflorara, espontânea e fácil, esta composicão aos lábios de trovadores e "trouvères", nas línguas "d'oc" e "d'oil". Musas de Itália aperfeiçoaram-na, sujeitando-a à travação regular de consoantes e disposição, que lhe conhecemos, levemente modificada, mais tarde, pelos poetas da Plêiade..." Por outro lado, o mesmo Alberto de Oliveira escreveu, em adendo à apresentação que fez, datada de novembro de 1931, de sua antologia "Os Cem Melhores Sonetos Brasileiros": — "Flor medieval, acredita-se abrolhou primeiro na Itália...”

"La Grande Encyclopedie" (Inventaire Raisonné des Sciences, des Lettres et des Arts — Paris), que, como veremos, admite o favoritismo da tese italiana, assinala, em relação à biografia de "Giraud des Borneil" (como o denomina):
"Célebre trovador, nascido em Excideuil (Dordogne), pertenceu a uma família plebéia, mas sem talento poético, que ele fortificou com um estudo incessante, à custa de grandes senhores e reis de seu tempo. Seus principais protetores foram o Rei Ricardo Coração de Leão, que ele acompanhou na 3ª. Cruzada (1189-1192); o príncipe de Antióquia, Bohémond III; o Rei de Castille, Alphonse VIII; o Rei d'Aragon, Pierre II. Em compensação, não obteve quase nada para ficar satisfeito com o Rei de Navarro Sanche le Fort, nem com o seu senhor feudal, o Visconde de Limoges, Gui V. Repartiu seus bens (era celibatário) entre alguns parentes pobres e a igreja de Saint-Gervais, onde fora batizado. Um biógrafo provençal do fim do século XIII disse sobre ele: "É o melhor dos trovadores que viveram antes dele e dos que vieram depois". Foi chamado o mestre dos trovadores. Escreveu 80 poesias, nas quais pode-se dizer que vibram todas as cordas da lira provençal. Suas obras estão dispersas no "Choix des poésies de troubadours", de Raynouard, nas "Gedichte et les Werke der Troubadours", de Mahn, e, enfim, nas "Poésies inédites de troubadours du Périgord", de M. Chabaneau".

Príncipe da trova, imitado por Dante, Girard de Bourneuil viajava pelas cortes e, quando o fazia, levava, a seu serviço, dois jograis.

Nas biografias de Girard de Bourneuil, não só nesta, a mais longa, feita pela própria Enciclopédia Francesa, como em outras, internacionais, que perlustramos, não se encontra qualquer referência à sua participação literária, como inventor do soneto. Seu nome aparece, só e sempre, como trovador.
É verdade que a "langue d'oc", falada na Provença, exerceu, por força da sua divulgação através dos trovadores, uma ascendência muito grande na Europa, a ponto de ser aceita e até praticada em quase todos os países. Na Itália, isto se deu também com menor intensidade na Sicília, como veremos adiante. Difundiam suas canções típicas, nada mais do que isto.

Paralelamente a essa tese (a invenção provençal do soneto), não se pode — a bem da verdade — deixar de esclarecer que os poetas franceses e provençais conferiam ao termo "sonnet" o sen-tido de "pequena canção", ou "cançoneta", ou "pequeno som".
É sabido que o "sonnet" trovadoresco não tinha forma fixa, e variava bastante na quantidade dos versos, na disposição das rimas e, principalmente, na estrutura das estrofes. A palavra "son", ou "sonnet", empregada por Thibaud IV e por Guilherme de Lorris, no século XIII, era aplicada, "indiferentemente, a toda espécie de canto" atribuído aos trovadores, o que Colletet ignorava, segundo reparo de Charles Asselineau, seu patrício (1821-1874).

Nesse caso, aceita a ressalva, não estaria em voga na Provença, nem mesmo em estágio rudimentar, como quer a Delta Larousse, o hoje tão celebrado poema de quatorze versos, chamado soneto. No vocábulo "sonnet" havia, apenas, uma semelhança com a palavra italiana "sonnetto".

É oportuno recordar, aqui, uma observação interessante de L. Etienne, autor da "Histoire de la Littérature Italienne" (Paris, 1875). Contraditando, embora de maneira indireta, a Colletet, esse historiador afirma que os italianos adotaram apenas uma imagem da poesia dos provençais, e não uma representação fiel; e que "a sextina, espécie de balada curta e muito complicada, foi a única composição que, de nome e de fato, passou dos trovadores aos poetas italianos". João André Scartazzini (1837-1901), literato suíço e comentador da "Divina Comédia", chama-lhe "la complicatissima e difficile".

A sextina, célebre no seu tempo, foi inventada pelo poeta provençal Arnaud Daniel (1150-1189), a quem Dante se refere no "Purgatório" (Canto XXVI, v. 118-120 e 140-147). Segundo a filóloga portuguesa de origem alemã, Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), a sextina foi modificada por Guillen Peire e, mais tarde, adotada e aperfeiçoada por Petrarca. Este escreveu ser Arnaud Daniel "gran maestro d'amor". Não é, aqui, lugar apropriado para se explicar a estrutura da sextina, mas registramos que a usaram muitos outros poetas, dentre os quais Dante, Gaspara Stampa, Camões, Bernardim Ribeiro, Diogo Bernardes.

Se o soneto tivesse sido, realmente, inventado na Provença, por Girard de Bourneuil (1150-1220), ou outro qualquer trovador, os países europeus, principalmente os mais vizinhos, Espanha e Portugal, haveriam de conhecê-lo de pronto, e não muito depois, como se verificou. O Marquês de Santillana (1398-1458) o introduziu na Espanha; e Francisco de Sá de Miranda (1495-1558) o levou para Portugal em 1526, quando regressou de sua viagem à Itália.

Olhando para o outro lado, a Alemanha, pode-se contemplar o mesmo panorama.

Vamos relembrar palavras de Fritz Martini, autor da "História da Literatura Alemã", quando fala no "Minnesang" (canção geralmente romântica), a poesia propriamente germânica, que teve sua fase áurea a partir de 1190:
"Do Norte da França, onde se propagara a lírica dos trovadores provençais, que, por sua vez, a tinham recebido de fontes hispânicas e árabes, vieram os primeiros modelos, prontamente imitados, sobretudo na Alemanha ocidental e nas margens do Reno" (....) "Foi a arte dos trovadores franceses que influenciou decisivamente a lírica do Minnesang. As suas melodias e formas métricas de rimas complexas e sonoras agradaram aos cavaleiros alemães. Estes aprenderam com os trovadores a arte provençal, que depois adaptaram à sua índole, conseguindo combinar as sugestões da lírica importada com os elementos da canção popular nacional, o que sucedeu, inclusive e principalmente, na Áustria".

E diz, mais, Fritz Martini:
"O Minnesang, que fizera parceria com canções francesas, permaneceu com vida razoavelmente longa, mas, afinal, passou a arrastar-se melancolicamente, sempre com os mesmos motivos, os mesmos temas, até se extinguir. Não conseguiu, jamais, executar senão as mesmas cantigas de amor, a epopéia heróica, a poesia épica, as alegorias, as lendas, os hinos de cultura palaciana, os assuntos históricos, a abstração, a erudição teológica, as vozes dos mestres cantores, etc. Todos esses temas eram interessantes, mas a poesia não mudava nos seus ritmos e belezas repetitivas".

Neidhart von Reuenthal (1180-1250), poeta alemão de origem austríaca, marcou a decadência do "Minnesang".

Na Alemanha, o soneto foi introduzido por Johann Fischart (1546-1590). Dali passou para outras literaturas de países de língua germânica, e também para povos eslavos: poloneses e tchecoslovacos (eslavos ocidentais); búlgaros, servo-croatas e eslovenos (eslavos meridionais); russos e ucranianos (eslavos orientais).

Geoffray Chaucer (1340-1400) levou o soneto petrarquiano para a Inglaterra, em 1372, recém-chegado da Itália.

A França não conhecia o soneto que, somente no século XVI, foi levado da Itália para lá, por Mellin de Saint-Gelais (1487-1558) e Clement Marot (1496-1544).

Só estes argumentos bastariam para derrotar a tese francesa. Nós, porém, expomos os fatos. Não questionamos, apesar de nos parecerem inconsistentes e vacilantes as referências em favor da suposta proeza dos provençais. Diríamos, até, que as afirmativas são, em geral, feitas "en passant", sem compromisso formal com a verdade, sem maiores estudos ou esclarecimentos e, portanto, sem convicção.

Quanto à estrutura e outras exigências do Soneto, delas trataremos nas páginas seguintes, pois, no que tange à literatura trovadoresca, não encontramos, nesse campo, nenhum elemento elucidativo.



A tese italiana

A tese italiana, ao contrário, parece-nos bem mais defensável.

Em relação ao ponto crucial, que é saber-se "onde" foi inventado o Soneto, não o encaramos, sinceramente, como um assunto polêmico. A respeito, discutiu-se muito, debateu-se bastante, durante séculos. Hoje, porém, este evento, de capital importância, já extrapolou as barreiras da hesitação e da perplexidade. No consenso quase unânime dos estudiosos da matéria, o Soneto é de origem italiana.

Existe, ainda, uma dúvida sobre o "nome" do seu inventor. Esta, sim, é uma questão a ser esclarecida, e que, realmente, vem preocupando os críticos, os "sonetólogos", os especialistas do tema apaixonante.

Do lado da tese italiana, existem estudiosos que atribuem a invenção do soneto, ora a Pier delle Vigne (1197-1249); ora a Giacomo (ou Jacobo) da Lentini, que nasceu na segunda metade do século XII e morreu na primeira metade do século XIII (Massaud Moisés registra: 1180,/90?-1246?): ora a Fra Guittone d'Arezzo (1230-1294), um dos predecessores de Dante na poesia toscana. E há quem a atribua, embora um tanto vagamente, a Francesco Petrarca (1304-1374).

Fazendo-se um rápido balanço dessas hipóteses, chega-se à fácil conclusão de que apenas os dois primeiros (Vigne e Lentini) têm condições reais de usufruir esse privilégio. E, dentro do cálculo das probabilidades, os seus nomes se encontram em plano semelhante.

Isso não importa muito. Importa, sim, que é certo caber à Sicília o grande feito.
Aliás, italianos também foram Fra Guittone d'Arezzo que, como veremos, fixou a forma definitiva do Soneto; e Petrarca, que o imortalizou, através de suas extraordinárias produções espalhadas e amadas por todo o mundo.


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Alinhamos, a seguir, nomes de poetas, ensaístas, analistas, enciclopedistas, dicionaristas, críticos literários, escritores, historiadores — enfim, alguns dos veículos autorizados que concluíram ter sido o Soneto inventado na Itália (Sicília):

Cruz Filho, brilhante poeta e ensaísta cearense (1884-1974), autor de um excelente ensaio, "O Soneto", participa dessa opinião.
Diz ele:
— "Contudo, afigura-se-nos questão definitivamente resolvida ter tido ele por berço a Itália, ou, com mais precisão, a Sicília, sem embargo das opiniões divergentes, nunca estribadas em documentação de incontestável solidez, mas em preconceitos de caráter nacionalista dos seus propugnadores ou em induções destituídas de fundamento histórico. Teve por berço Palermo, a cidade insular onde Frederico II presidiu, na própria corte, ao primitivo surto da poesia siciliana, no meio de "doutos, poetas, astrólogos, judeus e Árabes", aos quais dispensava proteção e perante quem lia os seus próprios versos, na primeira metade do século XIII."

Clement Marot (1496-1544) e Mellin de Saint-Gelais (1487-1558) eram poetas talentosos, cuja simplicidade merecia o aplauso dos contemporâneos. Davam preferência à balada, ao rondó e ao madrigal. Mas, o destino assim o quis, levaram o soneto da Itália para a França, terra natal de ambos.

Joachim Du Bellay (1522-1560), igualmente poeta francês, em sua "Défense et Illustration de la Langue Française" (1549), manifesto da "Plêiade" (que pretendia helenizar a França) , chamava o soneto "tão sábia quanto aprazível invenção italiana". Du Bellay, que viveu em Roma, também colaborou na introdução do soneto na França.

A "Enciclopédia Mirador Internacional" (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.) registra: "O soneto é uma forma fixa de origem siciliana. Quando Frederico II, de Hohenstaufen (morto em 1250) estimulou, em Palermo, a criação de um lirismo cortês em língua italiana, dando, assim, origem à literatura na língua peninsular, cercou-se de poetas. Ele próprio e seus filhos compuseram canções em italiano, mas foi Giacomo da Lentini quem inventou, na primeira metade do século XIII, uma forma fixa concisa e breve, o soneto, que também se cantava com música. Era, portanto, uma espécie de canção ou de letra escrita para música, a par da canção (esta, em sentido estrito, de origem provençal) e da balada".

A "Enciclopédia Italiana" (di Scienze, Lettere ed Arti) — Publicada sob o alto patrocínio de S. M. o Rei da Itália — Roma, diz: "O soneto é uma composição métrica de quatorze versos decassílabos (hendecassílabos na Itália, que é o país de origem) , com rimas dispostas segundo esquema bem definido. O próprio nome da composição corresponde à sua origem musical: sonetto ("pequeno som", "breve melodia"). O primeiro escritor de sonetos foi, muito provavelmente, o poeta italiano Giacomo da Lentini".

A "Encyclopaedia Britannica" (Encyclopaedia Britannica Inc. William Benton, Publisher) diz: "O soneto foi criado na Sicília, no século XIII, por poetas influenciados pelos trovadores da Provença".

"The New Encyclopaedia Britannica" assim, se expressa: "Poema lírico de quatorze linhas, com esquema e ritmo formais. Teve origem no século XIII, na escola siciliana, que foi influenciada pela poesia amorosa de trovadores provençais. Depois, foi para a Toscana, onde assumiu sua mais alta expressão (século XIV), nos poemas de Petrarca".

A "Gran Enciclopédia del Mundo (Bilbao) consigna: "O soneto nasceu no século XIII, provavelmente na Itália, de onde se popularizou através de Petrarca".

A "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura" (Editorial VERBO, de Lisboa) menciona: "O soneto (em italiano sonetto, derivado do franco-provençal "sonet", diminutivo de "son", que significa "melodia") é uma forma poética cuja invenção é atribuída a Jacopo da Lentini, poeta da escola siciliana, que viveu e escreveu na 1ª metade do século XIII" (....) "Foi Guittone d'Arezzo o. primeiro a usar o esquema das rimas emparelhadas no interior dos quartetos (ABBA), fazendo, também, distinguir-se claramente os dois quartetos e os dois tercetos do soneto".

"La Grande Encyclopedie" (Inventaire Raisonné des Sciences, des Lettres et des Arts — Paris), já citada por nós, comenta: "Há muito tempo se tem atribuído à poesia provençal a invenção desta forma métrica. Mas, na língua dos trovadores, a palavra son ou sonnet designava toda espécie de peça lírica acompanhada de instrumentos musicais. Admite-se, hoje, reconhecer que o soneto é de origem italiana. Petrarca teria sido o seu inventor, como certas fon-tes têm acreditado. O mais provável, porém, é que o soneto tenha nascido na Sicília, no decorrer do século XIII e que Petrarca lhe tenha, simplesmente, conferido os seus títulos literários".

A "Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana" (Espasa — Calpe S.A. — Madrid) procura esclarecer: "A origem do soneto é bastante antiga. Foi conhecido pelos trovadores e troveiros, não faltando autores que remontem a origem da combinação até as filigranas da poesia árabe, ainda que a maioria conceda o mérito da invenção a Pierre des Vignes, ou de la Vigne, conse-lheiro de Frederico II (Sicília) e o de fixar sua forma definitiva ao toscano Aretino. Cabe, sem embargo, a Petrarca a glória de havê-lo generalizado". É de se acrescentar que o "Dicionário Enciclopédico Abreviado", da mesma editora, não se refere, especificamente, à origem do poema. Aborda-o com poucas palavras: — "Do italiano sonetto. Composição poética de quatorze versos, divididos em dois quartetos e dois tercetos".

A "Brockhaus Enziclopãdie" (F. A. Brockhaus Wiesbaden, 1973) assegura que o soneto nasceu na Itália, no século XIII.

O "Grand Dictionnaire Universer, de Pedro Larousse, antes de se associar à "Delta", assim se exprimia: — "O Soneto veio-nos da Itália. Considera-se, geralmente, que nasceu na Sicília, no século XIII. Há, em todo caso, quem tenha Petrarca como o seu inventor, ao passo que outros fazem remontar a sua invenção aos nossos trovadores. Em verdade, entre estes a palavra "sône" não significava soneto; aplicava-se, ao contrário, a diversas poesias, com o sentido de canto".

O crítico francês, portanto insuspeito, Georges Pellissier (1852-1918), em comentário escrito no próprio livro "OEUVRES POÉTIQUES", de Boileau, edição da Livraria Ch. Delegrave, de Paris, escreveu o seguinte, com referência à origem do soneto:
"É conhecida a voga que adquiriu o soneto, por volta do meado do século XVII. Não e este poema de origem provençal, como geralmente se tem acreditado; a palavra son ou sonnet, muito antiga na língua dos trovadores, aplica-se a qualquer espécie de canto e designa, sobretudo, as composições líricas que eram cantadas ao som de instrumentos musicais. A forma moderna do soneto é invenção italiana: foi trazida à França, não por Du Bellay, mas por Saint-Geliais e Marot".

Henri Hauvette, também francês ("Littérature italienne", Paris, 1906), asseverou que, na Sicília de Frederico II, no século XIII, "certa poesia curta (referia-se ao soneto), de origem obscura, mas cuja sorte ia ser maravilhosa, começou a ser exercitada pela pena de Jacobo da Lentini". Hauvette achava que "essa escola siciliana, por mais pobre que possa parecer, exerceu profunda influência nos destinos da poesia italiana". E Cruz Filho acrescentou: "A evolução da poesia, com os gêneros poéticos nela praticados, como o soneto e a canção, teve, como remate, a escola que depois se chamou do "dolce stil nuovo", de que Dante foi o representante máximo".

Klabund (1890-1928), o grande historiador e teorista literário alemão, assinala, em sua "História da Literatura" (Editora Guanabara, 1936, tradução de Odilon Galloti), que "o soneto apareceu, pela primeira vez, na Sicília, na corte de Frederico II de Hohenstaufen".

Agostinho de Campos (1870-1944), polígrafo e professor universitário português, entusiasmado admirador do soneto, defende a origem siciliana desse poema. E o faz no livro "Estudos sobre o Soneto" (1936), obra que enfeixa três conferências que proferira, em 1935, na Faculdade de Letras de Coimbra, sob o tema "O Soneto desde Sá de Miranda a Antônio Nobre".

Giovanni Alfredo Cesareo nasceu em 24 de janeiro de 1860, na própria Sicília (Messina). Além de exercer atividades políticas (foi senador do reino, em 1924) e jornalísticas, sempre alternou a crítica com a poesia. E, o que é muito importante, foi, em 1898, Professor de Literatura Italiana na Universidade de Palermo, capital da "ilha" e sede da corte de Frederico II, ou seja, o berço do soneto. Trata-se, pelo menos sob o aspecto de um juízo normal, de autoridade praticamente incontestável, para afirmar, como afirmou, que o soneto foi inventado na Itália (Sicília). E aponta o siciliano Giacomo da Lentini como o mais provável criador desse poema. Sua alusão. ao nome de Lentini fez com que muitos estudiosos do assunto se inclinassem, também, para esse lado, em detrimento de Pier delle Vigne, até então o mais citado de todos os indigitados autores da façanha. Cesareo escreveu várias obras, sobressaindo-se "La poesia siciliana sotto gli Svevi" (Catania, 1894) e "Le origini della poesia lírica en Italia" (Catania, 1899). Essas duas obras foram reunidas em um só volume (Palermo, 1924).

Fidelino de Figueiredo (1889-1967), historiador de literatura e ensaísta português (lecionou na Universidade de São Paulo), segue a opinião de Cesareo ("Antero", São Paulo, Departamento de Cultura, 1942): o soneto é italiano. E, ao abordar a etimologia da pa-lavra (diminutivo de som), Fidelino de Figueiredo relembra a sua aliança original com a música, explicando: "era a letra de urna pequena melodia". Reforça, desse modo, não só o parecer de Vincenzo Pericone ("Problemi ed Orientamenti Critici di Lingua e di Litteratura Italiana"), como o da "Enciclopédia Mirador Internacional", esta já citada por nós.

Massaud Moisés (1928, São Paulo), Livre-docente de literatura portuguesa na Universidade de São Paulo, Professor de literatura brasileira na Universidade Católica do mesmo Estado, e escritor brilhante, autor, inclusive, de "A Criação Literária", esposou, ou melhor, acatou os estudos de Geovanni Alfredo Cesareo, segundo os quais o soneto nasceu, mesmo, na Sicília, com Giacomo da Lentini.

Calcados nas conclusões a que, depois de detidos exames, chegou o Prof. Massaud Moisés, permitimo-nos, aqui, acrescentar as seguintes fontes que, igualmente, atribuem a invenção do soneto aos italianos (Sicília):

— Robert M. Burgess ("The sonnet — A Cosmopolitan Literary Form — in the Renaissance", in "Actes du IV Congrès de l'Association Internationale de Littérature Comparée" (Friburgo, 1964), Haia-Paris, Mouton, 1966, pp. 169-184; e Ernest Hatch Wilkins ("The invention of the Sonnet and. Other Studies in Italian Literature", Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1959).

A "Enciclopédia Universal" (Editora Pedagógica Brasileira Ltda., São Paulo, 1969) escreve: "Ainda não foi estabelecida com exatidão a origem do soneto. Conforme alguns estudiosos, o poeta Giacomo da Lentini (grafa Terrtini), da Sicília, teria sido o seu criador.

Mário Sansone, em sua "História da Literatura Italiana", ao falar sobre a escola siciliana, "grande na história da cultura e da formação da língua literária italiana", cita Giacomo da Lentini, que talvez fosse o primeiro a introduzir a forma do soneto".

Erwin Laathhs, em sua "Historia de la Literatura Universal" (Editora LABOR SÃ., 1967, Barcelona), declara: "Atribui-se ao conselheiro de Frederico II (Sicília), Piero delle Vigne (m. em 1249), a invenção do soneto, que veio a ser, por espaço de séculos, em todos os países latinos, e até na Inglaterra, a forma clássica do poema amatório".

Emile Faguet (1847-1916), crítico literário francês, historiador, Professor da Sorbonne, assim explica o problema, em seu compêndio didático "Initiation Littéraire" (1913): "No século XIII, graças ao estímulo do imperador Frederico II, Nápoles e a Sicília, onde se fundaram grandes universidades, constituíram-se centros de literatura puramente italiana. Faziam parte deles Pierre des Vignes (Petrus de Vineis), que passa por ser o inventor do soneto, Ciullo d'Alcamo, autor da primeira canção italiana conhecida, etc.".

Charles Asselineau (1821-1874), escritor e erudito francês, autor de várias obras de grande valor, entre as quais "História do Soneto" (e isto é muito significativo), abraçou a tese italiana, refutando seu compatriota Guillaume Colletet.

O professor, escritor e pedagogista, Afrânio Peixoto (1876-1947), em seu livro "Noções de História de Literatura Geral", abona a tese italiana. Diz que o soneto foi inventado por Pier delle Vigne, que ele "chama de "Pedro das Vinhas".

Também oferece parecer igual o ilustre professor José Mesquita de Carvalho, autor da "História da Literatura".

Francisco da Silveira Bueno (1898, SP), filólogo, autor de "Literatura Luso-Brasileira", diz que o soneto é "composição de origem italiana".

O Padre Jorge O'Grady de Paiva (1909, RN), em "Nos domínios das Letras e da Ciência", demonstra sua convicção relativamente à origem itálica do Soneto, que ele chama "tetradecastíquio".


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Várias Enciclopédias que compulsamos não se mostram verdadeiramente interessadas em descobrir a origem do Soneto, conforme verificamos. Assim,

— a "Enciclopédia Barsa" ("Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações", 1982) diz: "O soneto surgiu, provavelmente, no começo do século XIII, como resultado de uma das formas da poesia popular medieval, muitas das quais eram acompanhadas por música". — Não localiza essa poesia medieval. Provença, ou Sicília? Nada explica, ainda que, logo depois, cite, vagamente, os nomes de Guittone d'Arezzo, Dante e Petrarca. 

— a "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira" (" Edito-rial Enciclopédia Ltda. — Lisboa, Rio de Janeiro") silencia, em relação a esse detalhe, embora se perceba que, através de largas pinceladas, pende um pouco para a tese italiana.

— o "Nouveau Larousse Universel" publica: "Do italiano sonetto". O soneto é de origem ainda incerta. Uns atribuem a invenção aos trovadores provençais; outros a Petrarca que, pelo menos, o colocou em destaque na Itália".

— a "Encyclopedia e Dicionário Internacional" (W. M. Jackson), emaranhada numa teia de dúvidas, diz: "A origem do soneto ainda não está perfeitamente determinada. Atribuem-na alguns au-tores aos trovadores provençais; outros a Petrarca; ainda outros a Fra Guittone (na opinião, por exemplo, de S. Waddington, em "Sonnets of Living Writers"); e outros, finalmente, a Pier delle Vigne, secretário de Estado na corte (siciliana) de Frederico. O que é certo é que foi Petrarca que o tornou célebre na Itália, e foi graças à sua influência que essa forma se generalizou a todas as literaturas".


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Bem, o assunto "origem do soneto" está aí, razoavelmente dissecado. A única dúvida que persiste é quanto ao nome de seu inventor: Pier delle Vigne, ou Giacomo da Lentini? As duas hipóteses são fortes, chegando a equilibrar-se.


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Mas, atentem, os leitores e os estudiosos do assunto, para uma suposição indubitavelmente inédita que nos acode. Com sinceridade e diante do terrível impasse, permitimo-nos admitir que os dois, Pier delle Vigne e Giacomo da Lentini, vivendo e poetando juntos, houvessem chegado, de comum acordo, à solução do problema, para alegria dos preocupados poetas da corte siciliana, e do próprio rei. Até a confirmação de provas concretas e absolutas — se, porventura, algum dia surgirem — sobre a certeza de um deles ter sido o inventor do soneto, preferimos atribuir aos dois, unidos num pensamento só, esse feito memorável. Acreditamos seja esta uma conjetura duvidosa. Não, porém, improvável ou, muito menos, desprezível.


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Antes de escrevermos sobre a estrutura do Soneto, vamos abrir alguns trechos neste capítulo, para mostrar o ambiente e os principais personagens da criação e da infância do poema que veio a ter um destino maravilhoso, nascido para não mais morrer.



Frederico II (1194-1250) nasceu na cidade italiana de Iesi (província de Ancona; banhada pelo Mar Adriático) e morreu no castelo de Fiorentino, em Apulia (nome antigo da região da Pudia, Itália meridional — "o salto da bota"). Foi rei da Sicília (1197-1250) e imperador da Alemanha (1220-1250). Era filho de Henrique VI, da dinastia dos Hohenstaufen (fundada em 1138, "graças à eleição de Conrado III, duque de Suábia, para o Império Germânico"). Frederico Barba-Roxa (1152-1190), da mesma dinastia, restabelecera a autoridade imperial na Alemanha e na Itália. Frederico II "interessa-se pela Itália em detrimento da Alemanha e entra em conflito com o papado". Na verdade, ele queria uma "monarquia universal", no que veio a fracassar. Rei da Sicília era o título real dos últimos imperadores da Casa de Suábia.

Acrescente-se que o Imperador-Rei Frederico II, vencendo o Imperador Romano Otto de Braunschweig, foi proclamado rei dos romanos (1216) e coroado imperador em Roma (1220). Cumpre esclarecer que, quando o pai morreu, em 1197, sucedeu-o no trono, sob a tutela de sua mãe Constanza; e, ao falecer esta, no ano seguinte, sob a tutela do papa Inocêncio III. Frederico II, afinal, foi coroado em 1215, pelo mesmo papa. Viveu na Sicília, tendo sua corte em Palermo, capital do reino. Por duas vezes, em 1227 e 1239, foi excomungado pelo papa Gregório IX. Mesmo depois da primeira excomunhão, participou, em 1228 e 1229, da Sexta Cruzada — imperial e laica, muito posterior à iniciativa do papa Honório III (1223) — e retomou Jerusalém, onde, em 1229, se fez proclamar rei. As relações entre os dois poderes (do papado e do reinado) nunca foram boas. Tanto assim que, para hostilizar o soberano, o papa Inocêncio IV convocou o primeiro concílio de Lyon, em 1245, e este resolveu, não só excomungá-lo, como depô-lo. E, quando Frederico II morreu, em 1250, "a Alemanha e a Itália estavam abandonadas à anarquia". Aliás, as lutas do trono com o papado só terminaram 16 anos depois da morte de Frederico II, com o extermínio da casa de Hohenstaufen. O papa Clemente IV, em 1265, dera a Sicília, como feudo pontifício, a Carlos de Anjou, irmão de Luís IX, da França, contra o qual Manfredo (filho legiti-mado de Frederico I I) perdeu o trono e a vida, na batalha de Be-evento, em 26 de fevereiro de 1266.


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Pois bem, Frederico II, não obstante sua acidentada existência de lutas administrativas, políticas e religiosas, ainda encontrava tempo para proteger as artes e as letras, e para agrupar, em Palermo, uma "corte" de trovadores provençais e italianos.

Klabund nos diz:
 — "No ano de 1229 terminou a guerra dos albigenses, que deu cabo da independência e da vida artística da Provença. Na corte de Frederico II de Hohenstaufen, reuniram-se na Sicília os provençais expulsos e ali no círculo deste grande espírito alemão nasceu a nova literatura italiana, não na língua popular da Sicília, mas, sim, num idioma singular, numa língua artificial cheia de provençalismos e latinismos, talvez criada pelo imperador, espírito dotado de grandes qualidades. As diversões poéticas eram mais do que mero passatempo da corte, pois, ali, apareceu, pela primeira vez, o soneto, esta mais bela flor da árvore da poesia italiana".

A "langue d'oc" dos provençais, oriunda do baixo latim, como os dialetos usados em quase toda a Europa, era muito divulgada através de seus trovadores que, inclusive, já procuravam a Sicília. Mas esta, que também praticava o seu dialeto latino, não tinha facilidade para absorver a lírica provençal. Daí o recurso de Frederico II, a que se refere Klabund. Inspirada na técnica e nos temas trovadorescos, a Sicília aperfeiçoou sua própria técnica e seus próprios temas.

E essa nova língua arrebatou adeptos, sucessivamente no sul da Itália e, depois, em todo o país, conseguindo instituir uma tradição literária italiana. A corte de Palermo era o coração desse ideal, congregando, entre outros poetas italianos, Pier delle Vigne, Giacomo da Lentini, Guido delle Colonne, Odo delle Colonne, Rinaldo d'Aquino, Ciacco dell'Anguilara, Percivalle Doria, Arrigo Teste, Giacomino Pugliese, além do próprio Frederico II e os seus filhos Enzo e Frederico de Antióquia.

O soneto, que, certamente, nasceu nessa época, não poderia ser edificado sobre a base normal de apenas uma ou duas canções correntias, fossem elas italianas ou trovadorescas. Um pouco adiante, já entraremos na explanação do assunto, realmente da maior importância na criação desse tipo de poema, motivo e motivação únicos de nossa obra.

Diga-se, de passagem, que, no prefácio da "História da Literatura", de Klabund, a Editora Phaidon chega a admitir uma hipótese excêntrica,, quando diz que o imperador Frederico II, "o primeiro poeta em idioma italiano", foi "talvez o inventor do soneto".

A poesia desse grupo, depois de 1266 (batalha de Benevento), começou a declinar, revivendo em Toscana, onde se firmou. E, por sua vez, a poesia do dialeto toscano deu início, não só à língua, mas à própria literatura do país (Dante, Petrarca, etc.).

A escola poética siciliana perdeu sua própria vida, mas já havia dado vida ao soneto. Nem era preciso fazer mais.



Pier delle Vigne ou Pietro della Vigna (1197-1249), nasceu em Cápua, província de Nápoles. Estadista, conselheiro e primeiro-ministro do imperador Frederico II. Poeta dos mais destacados da escola siciliana, deixou poesias líricas e cartas. Muitos dos estudiosos que apóiam a tese da invenção do soneto pelos italianos, apontam Pier delle Vigne como seu criador, podendo-se destacar, dentre eles: Erwin Laathhs ("Historia de la Literatura Universal" — Barcelona); "Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-americana (Espasa Calpe S.A., Madrid); Emile Faguet ("Initiation Littéraire"); Prof. Afrânio Peixoto ("Noções de História de Literatura Geral"); Prof. José Mesquita de Carvalho ("História da Literatura"); Cruz Filho ("O Soneto"). A par disso, não são poucos os que, mesmo adeptos da tese francesa, estão acordes num ponto: Vigne foi quem, na Sicília, primeiro tomou conhecimento do novo poema. Este é o caso, por exemplo, da "Grande Enciclopédia Delta Larousse", o carro-chefe da tese francesa.

Pier delle Vigne teve um fim trágico, quando exercia a função de conselheiro e confidente de Frederico II. A propósito, diz Cruz Filho: — "Acusado injustamente, segundo se diz, de traição ao seu protetor, pelo marido de certa dama de nome Florismunda, cuja beleza celebrara nas suas canzoni, foi despojado da função que exercia, em 1249, ano em que se suicidou. Por esse motivo, aparece o pretendido pai do soneto no recinto do Inferno dantesco".

Cruz Filho lembra que "Dante encerrou Pier delle Vigne no sétimo círculo do "Inferno" (canto XIII), onde os violentos contra as suas próprias pessoas, transformados em troncos de árvores, servem de abrigo aos ninhos das harpias".

O escritor, poeta e ensaísta mineiro Cristiano Martins, publicou, em 1971, uma excelente tradução de "O Inferno", da "Comédia", de Dante Alighieri (1265-1321), com uma feliz Introdução do poeta, jornalista e editor Édison Moreira, também de Minas Gerais.


Além da valiosa e fiel tradução, naturalmente em tercetos, versos decassílabos e rimas corretas, Cristiano Martins enriquece sua obra com oportunas e brilhantes notas de pé de página. Em algumas dessas notas, confirma as palavras de Cruz Filho, inclusive com detalhes muito importantes.

Diz Cristiano, ao abrir a sua tradução do Canto XIII da citada obra:
"No segundo giro do sétimo Círculo (do Inferno), os dois poetas (Virgílio e Dante) encontram os violentos contra si mesmos e os violentos contra os próprios bens: uns, os suicidas, transformados em árvores; outros, os dissipadores, perseguidos e estraçalhados por cães ferozes".

No que toca precisamente a Pier delle Vigne, incluído no primeiro grupo, há muitos versos, entre os quais os de números 58 a 75 se referem à sua identificação, feita pelo próprio Vigne, transformado em tronco de árvore.



Giacomo (ou Jacobo) da Lentini (1180/90?-1246?) nasceu na Sicília, segundo a Enciclopédia Italiana. Talvez na cidade de Lentini. A não ser Pier delle Vigne, é o único que poderá ser citado como inventor do soneto. Os demais nomes lembrados, salteadamente, como Guittone d'Arezzo, Dante, Petrarca e outros, não passam de suposições sem consistência, sem fundamento plausível. A Espasa Calpe S.A., de Madri, traduziu da "Die sicilianische Dichterschule des dreizechuten Jahrhunderts" (Berlin, 1878), sobre Lentini: "Poeta italiano, chamado mais comumente o "Notário de Lentino", viveu na primeira metade do século XIII. Acredita-se que tenha estudado em Bolonha e vivido em Toscana os últimos anos de sua vida. Dante fala nele com expressões duvidosas ("Purgatório", CXXIV), tachando-o de descuidado na linguagem, mas algumas de suas poesias, transcritas por .Rossetti, em "Dante y su circulo", têm especial encanto. Seus sonetos e canções estão compostos à maneira usual da escola siciliana".

Boa parte daqueles que têm como certa a criação do soneto na Sicília considera Lentini seu inventor. São muitas as menções que o distinguem como tal. Entre elas, citamos: "Enciclopédia Italiana"; "Enciclopédia Mirador Internacional"; "Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura" (Editorial VERBO, de Lisboa); "Enciclopédia Universal" (São Paulo); Mario Sansone ("História da Literatura Italiana"); o Professor, poeta e ensaísta siciliano Giovanni Alfredo Cesareo; Fidelino de Figueiredo ("Antero", São Paulo); Professor e ensaísta Massaud Moisés ("A Criação Literária"); H. Hauvette ("Littérature italienne").



Fra Guittone d'Arezzo (1230-1294) não foi o inventor do soneto, mas prestou uma colaboração quase tão importante como se o tivesse sido, porque lhe coube estruturar, definitivamente, esse poema de forma fixa. E o fez com absoluta competência e autoridade, quando o soneto ainda estava "no forno", quentinho, pronto para ser degustado e saboreado até... Deus sabe quando!

Como vimos, a escola siciliana reviveu em Toscana, onde era mais importante a vida intelectual, naquele momento em que crescia a civilização das Comunas. Toscana passou a ser o ponto de convergência da poesia e da cultura.

Guittone dal Viva, chamado "de Arezzo" por ter nascido naquela cidade, era a figura máxima do grupo.

"Guittone — esclarece  Mario Sansone — deixou-nos um cancioneiro que se pode dividir em duas partes: na primeira, imita os Sicilianos, com os seus exageros estilísticos; e, na segunda, composta por poemas posteriores a 1268, ano em que entrou na ordem dos Cavaleiros de Maria Virgem, escreve sobre temas morais".



Francesco Petrarca (1304-1374), também nascido em Arezzo (Toscana) e falecido em Arquà (Pádua), por igual, não foi o inventor do soneto. Tornou-se, entretanto, o primeiro poeta que o dignificou, logo depois que Dante Alighieri (1265-1321) também o recebera, com entusiasmo, e o praticara, com inteligência e inspiração. Petrarca não "concebeu "o soneto, mas, na verdade, o "criou". Adotou-o, perfilhou-o, e lhe deu, como se o fizesse a um filho legítimo, aquele amor sublime, aquele carinho que sabem oferecer somente os pais ligados pelo sangue. Mimou-o, alimentou-lhe o espírito, ensinou-o a andar, educou-o dentro das boas maneiras, proporcionou-lhe cultura adequada, aperfeiçoou-lhe o sentimento, enriqueceu-o de beleza plástica, fortificou-lhe o coração e a alma.


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Entretanto, não podemos ver em Petrarca um poeta que tivesse passado toda a sua vida apenas dedicando sonetos a Laura de Noves, a musa indiferente, o alvo, feliz ou infeliz, de um imenso, de um infinito amor platônico.

Longe disso. Ele possuía altos conhecimentos das letras clássicas e a elas se dedicou desveladamente, criando-se no seu espírito, por esse motivo, um fervedouro incontrolável, alimentado pela quase coexistência de duas épocas.

A Idade Média caía irreversivelmente: Papado e Império em crise; Avinhão, na França, substituindo Roma, como centro da cristandade; os imperadores perdendo sua autoridade universal, cuja utopia legendária se curvava diante das novas autonomias nacionais; Principados enxotando as Comunas, e impondo-se com regimes absolutos.

Mario Sansone escreve, a respeito: "... Levantam-se os problemas do homem, considerado como criatura em que a natureza divina se junta à humana, e que já agora procura em si as razões de sua vida e os caminhos da felicidade". (....) "Este é o cenário da vida e da personalidade de Francesco Petrarca".

Em latim, produziu quase todas as suas obras.

A coletânea "De rebus familiaribus" contém Cartas escritas de 1325 a 1361. As "Seniles", escreveu-as de 1361 até à morte. Do maior interesse são as "Epistolas metricae", 66 Cartas em hexâmetros, redigidas entre 1331 e 1 36 1 ; e, notável, mais do que todas, a epístola "Posteritati", quase uma autobiografia, destinada a fechar o último livro das "Seniles".

A personalidade de Petrarca, sob o aspecto intelectual, está nas suas obras de "inspiração histórico-humanística". Sua modernidade se reflete na nova maneira de estudar os clássicos e de interpretar a antiguidade. Ele foi o primeiro a observar que os antigos viam a realidade como algo bem diferente daquela dos homens de seu tempo. Foi o primeiro a aprofundar-se nos clássicos, que "amavam celebravam as virtudes terrenas, o poder do homem, e consideravam o mando — não o além-mundo — como sede de todas as virtudes e de todas as alegrias". Por isso, e com razão, "Petrarca é hoje considerado o iniciador do humanismo, não só pela maneira como compreendeu a antiguidade, mas também pelo grande impulso que deu aos estudos clássicos".

Testemunhos de seu acendrado humanismo são: "De viris illustribus', contendo biografias dos romanos ilustres, de Rômulc a Cesar; "Rerum memorandarum", de narrações históricas da anti-guidade; as doze éclogas (diários pastorais) que compõem o "Bucolicum carmen", onde, imitando Virgílio, refere-se, alegoricamente, a sucessos históricos de seu próprio tempo e a fatos de sua vida; e culminando com o livro "África".

Este último, como os outros, escrito em latim, e que ele pretendia fosse a sua obra-prima, diz Sansone, "é um poema em nove cantos em hexâmetros, composto entre 1338 e 1342, no qual são exaltadas as vitórias de Cipião sobre Anibal e celebradas as maiores glórias de Roma, através de sonhos e narrações. A obra, à qual falta, aliás, verdadeira poesia, é, porém, importante como revelação do amor de Petrarca pelos poetas, pela história e os historiadores de Roma".

Na área política, Petrarca se moderniza. Quer mais a Roma republicana do que a Roma imperial. Não deseja mais o império universal, que era o medieval, o de Dante. Tem a quase convicção de que ps nações se afastam desse antigo ideal. Para o poeta, a Itália é uma nação autônoma, e não mais o "jardim do Império".

Aristóteles fora o filósofo predileto da Idade Média. Petrarca, ao contrário, lia e estudava, com particular interesse, Platão, Cícero e Santo Agostinho.

É necessário, entretanto, se reconheça que "o poeta não era inteiramente avesso à Idade Média". Apesar de ser um gênio, não possuía um espírito enérgico como Dante, "por quem, aliás (segundo Mario Sansone), mostrou sempre um desprezo mal ocultado". Sentia-se um homem tomado pela dúvida e pelas contradições. Podia aceitar os motivos novos; porém, não tinha como reagir diante "do impulso e da sugestão do passado", que o dominavam interiormente.

De outro lado, também "nem soube fechar-se na meditação repousante e na esperança do ascetismo medieval". E, como provas da vacilação da alma de Petrarca, o historiador cita os nomes das últimas obras do poeta, obras que costumam ser designadas corno ascéticas: os tratados "De vita solitaria" e "De ocio religiosorum", ambos escritos em 1356; "De remediis utriuSque fortunae"; e, finalmente, "Secretum" ou "De secreto conflictu curarum mearum" (em três livros), terminado em Milão, no ano de 1358.

"Com o espírito ainda tão desejoso de honras mundanas", o poeta, afinal, encontrou refúgio e alívio na solidão de sua casa de Arquà, onde faleceu em 19 de julho de 1374. Como que cumprindo o seu destino intelectual, morreu de apoplexia, lendo um manuscrito latino.

Estes rápidos detalhes da vida de Petrarca, naquilo que se refere à sua extremosa dedicação aos clássicos da língua latina, servem para mostrá-lo através de outro prisma. O poeta que o mundo, pelo menos aparentemente, conhece, não é o- latinista culto, o político sagaz, o viageiro inquieto, o religioso diligente, o homem indeciso. O poeta que todos admiram é o amoroso frustrado que, nos vagares de suas andanças, escreveu sonetos imortais no vulgar toscano, que ele e Dante transformaram numa das línguas mais bonitas e queridas de todos os séculos.

Diz Sansone: "Este mundo contraditório de Petrarca desenvolve-se com extraordinária riqueza de sentimento e torna-se poesia no canto de amor, também atormentado, por Laura". ( ) "Hoje vive em virtude dos "Rerum vulgarium fragmenta" (como ele lhes chamou), isto é, das líricas em que o seu mundo encontra, por fim, a própria expressão.

Iludido ou não, ele acreditava muito nas suas obras escritas em latim. Não obstante, passou a dedicar-se, com assiduidade, no vulgar, às odes, éclogas, madrigais e, especialmente, ao soneto.
Neste, uma composição de aparente pequenez, encontrou a sua verdadeira casa, o seu legítimo ambiente. E foi bom para ele, que não conseguiria chegar à posteridade com as "Cartas" e com "África". Chegou, sim, com o soneto.

Ao invés de continuar dando o melhor do seu talento à Ode que arremessou os nomes de Alceu, Anacreonte, Virgílio, Píndaro e Horácio na voragem fascinante dos séculos — preferiu transferir ao soneto italiano as labaredas do seu gênio poético, provocando um incêndio de proporções gigantescas. Transfigurou-se em facho reluzente, que deu ao novo poema uma vitalidade perene e fortunosa.


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Petrarca estava coberto de razão, ao deixar para segundo plano a ode, pois esta, estrutural e tecnicamente, não era, nem é, superior ao soneto. Hoje, podemos verificar isto, com nitidez absoluta. O grande poeta, mesmo devotando-se mais ao soneto, não abandonou, de todo, a ode. E... onde estão as suas odes?... Ficaram obumbradas pelos seus sonetos!







(Das páginas 61 a 80 de “O Mundo Maravilhoso do Soneto”,
de Vasco de Castro Lima)




                         

3 comentários:

  1. Essa pesquisa esta simplesmente incrível, procurei em diversos sites sobre o tema e não achei nada tão explicativo e com tantas referencias.

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  2. Olá!

    Parabéns por esse trabalho e meu muitíssimo obrigada!!!

    Excelente pesquisa!

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