Virgílio Maia

Limoeiro do Norte, CE (1954-   )




SONETO ALADO COM CAVALO BRANCO
Virgílio Maia

Trovejante trovão troou no céu,
a treva transformando em claro dia;
transumano contraste sucedeu,
transmudando pavor em alegria.

Foi aquilo verdade ou foi um sonho,
realidade vera ou fantasia,
quando inteiro Sertão tremeu medonho,
obedecendo antiga profecia?

Ao perpassar das éguas e das nuvens,
em crescente o cavalo pôs-se alado,
guerreiro fez-se, ao Norte e no passado.

Mastigando luares de marfim
na tarde foi -se, galopando aléns,
entre talos de doce gergelim.


(Extraído de PALIMPSESTO & outros sonetos. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1996. 125 páginas  (Col. Alagadiço Novo)


Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/ceara/virgilio_maia.html




ALVENARIA
Virgílio Maia  

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto. 

Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.

Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.

E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.



A SENHA
Virgílio Maia 
     (de uma antiga balada cretense) 

Amada minha, trago estes limões
neste lenço de seda do Oriente.
Foi tudo o que obtive estando ausente
em tantos anos de navegações.

Trago-te a mim, te entrego os corações
que flechados e azuis tenho nos braços.
Quero agora guiar-me por teus passos
e no teu corpo haurir loucas lições.

Abre a porta, não vês que sou eu mesmo?
Sei que o tempo passou enquanto a esmo
doido amante dos mares perlustrei-os.

Sou eu, só eu. Abre esta porta, peço,
pois quem mais saberá deste endereço,
daquele sinalzinho entre os teus seios?




SOBRE AQUELA LITOGRAVURA DE EDWARD MUNCH
Virgílio Maia

Desmesuradamente anoitecia
sobre as léguas de fogo do poente. 
O pôr-do-sol que ao cosmo consumia
assaltava também a minha mente.

Tomado então pela agorafobia,
vasta amplidão vazia de repente
me assombrava se inapelavelmente
se sobrepunha a noite à luz do dia.

Em mental torvelinho me imergi
pasmo de espaços e de espaços mudo,
tentando não ouvir o que ouvi:

telúrico bramir pelo infinito.
Rugir da terra avassalando tudo.
O Grito enorme, tão enorme Grito.



FOTOS
Virgílio Maia
  
Deste antigo retrato, com firmeza,
meu avô me interroga bem de perto,
com aquela usual branda aspereza
que criança, me punha em desconcerto.

Na lapela, uma flor, que ele por certo
deixou emurchecida sobre a mesa
e do alto colarinho o branco aperto
incomodava-o um pouco, com certeza.

Tendo ao lado meu pai, que é filho seu,
certamente renovam velhos planos
de terra e gado, açudes e destino.

No fervor de seus vinte e tantos anos,
miram-me, mais novos do que eu,
e assim mesmo, para eles sou menino.



ILUMIARA
Virgílio Maia 

Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?

Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças vermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão. 

Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura el a passou
se benzendo de medo pela Pedra.

E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.



A ARTE DE AUDIFAX RIOS
Virgílio Maia

Uns pássaros perfuram, pintalgados,
a sisudez de uma escultura olmeca
ou por ossuda mão são levantados
poeirentos cadáveres da seca.

Sua arte tudo toca, ceca e meca,
dando voz, hora e vez aos deserdados,
na agudeza do lápis que disseca
num prisma exato os sóis apunhalados.

Não são pincéis nem tintas, mas gnomos,
que imprimem a fogo e alma cada risco,
das cítricas visões expondo os gomos.

Cada gravura é vida, não se doma,
cada um dos traços um piau arisco.
E o retinto nanquim por axioma.



CANUDOS NÃO SE RENDEU
Virgílio Maia

Foi ontem, claro dia de mais sol
(me haviam dito: tudo se findou:
que o futuro da gente se acabou,
não havendo sequer mais um farol).

Nas foi ontem um dia luminoso:
fui ao trabalho em alta andaimaria
e vislumbrei de lá, ao meio-dia,
sobrepujando um tempo desditoso,

eu pude ver, não se entregou ainda,
ainda peleja, a luta não é finda,
belo Arraial de Sempre onde se viu

ser o homem possível. Pois foi isto
que noutro dia me afirmou ter visto
um operário em construção civil.



UM BUJÃO DE GÁS
Virgílio Maia
  
Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.

Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.

Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:

homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.

  

UM CATA-VENTO DE BRINQUEDO
Virgílio Maia 

De extinto cacimbão o cata-vento
puxa ao meu rosto as águas de outra idade.
Ele é só um brinquedo, mas vale
pelas recordações que guardo dentro

do menino que mora aqui ao lado,
e sabendo de cor a cor dos ventos,
tem na ponta da língua, decorados,
uns gestos infantis de cata-ventos.

Flandre e ferro somados pela solda:
sendo brinquedo, brinca no jardim,
à brisa mais maneira já se alegra.

Brinca sem compromisso, roda e roda,
se fingindo irrigante desta terra,
num faz-de-conta de aguar jasmins.
  


Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/virgiliomaia.html




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