Melodias da Noite sem Fim



Não é proibido sonhar!

Sempre houve grandes sofredores que foram grandes poetas.

A História nos mostra inúmeros exemplos de verdadeiros Cresos da Poesia, como da Ciência, da Cultura, da Literatura e das Artes, inteligências fulgurantes que foram vergastadas pelos golpes de padecimentos cruéis; criaturas atingidas pelas angústias do coração e da alma, não raro mais dolorosas que os infortúnios de tormentos materiais.

Mas, embora não sinta os danos físicos que marcam os martírios de outros enfermos graves e incuráveis, é bem possível que o cego deva experimentar maiores tormentos, dentro de sua noite sem fim. Pelo menos, não dispomos de provas ou justificativas para desmentir quem, porventura, o afirme.

E, aí, surge uma dúvida insondável: quem sofre mais? O cego de nascença, ou aquele ente humano que teve a felicidade de contemplar, gozar, viver as maravilhas do Universo ensolarado e colorido, e depois ficou despojado de tamanha ventura? No cálice negro das provações, quem bebe o fel mais amargo? Dentro da fatalidade dos sacrificados, em qual deles dói menos a Dor?

Perguntar a um ex-vidente, parece-nos desnecessário, uma vez que a resposta será imprevisível, na medida de seu poder de conformismo, de sua aceitação diante da vontade de Deus, ou mesmo de seu desespero frente aos desígnios da Natureza. Tanto poderá admitir que se resigna, tranqüilamente, com a maldade do destino, como poderá dizer que é maior sofredor o que possuiu e não mais possui essa fortuna inestimável. Na última hipótese, talvez afirme que, em relação ao meio ambiente, é um desiludido, pois sabe o que perdeu e coisa alguma pode fazer para recuperar o seu paraíso iluminado.

Não menos desnecessário será pedir opinião ao cego de nascença, que conhece, apenas, o mundo que imagina, o mundo que cria, à sua maneira. Não pode estabelecer comparações e, a rigor, nada perdeu, porque nada teve, em relação ao sentido da vista; e como a imaginação é infinita, desigual, enigmática, não lhe é dado conceber, senão em negativo, imagens obviamente deturpadas e enganosas do mundo exterior.

Nem há razão para continuarmos a bater nessas teclas, porquanto a música desafinada que nos oferece o piano da vida é interpretada de acordo com as mais diversas opiniões e impressões pessoais.
Para os que não têm o privilégio de sonhar, de traduzir, em canções ou em versos, a desesperança de seus dias intermináveis, aquele mundo de trevas deve ter a extensão infinita da mais triste das solidões: um deserto negro.

Entretanto, Deus, para sonorizar o país escuro da cegueira, inventou a Poesia, sendo Ele próprio o mais perfeito dos Poetas.
Jesus tinha um carinho enternecedor para com os cegos que o procuravam, cheios de fé. E curou muitos deles, segundo a palavra dos Evangelhos.
A noite de um cego, quando ele nasceu poeta, é um céu interior em que tremeluzem raios de estrelas tateando na escuridão.

A noite de um cego, que na poesia encontra lenitivo para seu sofrimento, é povoada de visões harmoniosas, tangendo poemas em surdina. É uma alfombra de trevas onde desabrolham rosas de luz.
A noite de um cego-poeta guarda, em seu seio negro, o leite das alvoradas brancas.
A noite perene de um cego pode ser rendilhada de sonhos, porque não é proibido sonhar.


Benedita de Melo (1906-1991), pernambucana de Vicência, cega de nascença, uma das maiores figuras da poesia brasileira, publicou vários livros de excelentes versos.

Prefaciando o seu "Sol nas Trevas", o grande Agripino Grieco escreveu:
"Dando o nome de Benedita a esta pernambucana, como que adivinharam o seu belo destino intelectual. Porque abençoada tem sido ela pelo espírito, mau grado a impossibilidade de ver diretamente as coisas e as criaturas da terra. Seu talento é vigoroso e, sentindo, imaginando tudo isto, é ela superior a tantos donos deste mundo de luzes e cores, incapazes de deter-se diante de um sorriso de criança, de uma haste florida, de um casal de namorados".

E ainda:
"A ninguém que a encontre pela primeira vez dá Benedita a impressão de cegueira. Seus olhos se nos afiguram límpidos e profundos, de uma suavidade extática. E igualmente seus versos não transmitem qualquer sensação de cegueira mental. Como que ela
recolheu em pessoa todos os temas emotivos e descritivos de que fala".

Educadora de méritos excepcionais, professora do Instituto Benjamin Constant do Rio de Janeiro, onde reside, Benedita de Melo é, a par de suas qualidades intelectuais e morais, uma criatura que honra a espécie humana.

Enfrenta a vida quase que com alegria, apesar de seus versos serem repassados de uma serena amargura. A resignação, com que enfrenta os problemas que se lhe antepõem, já se tornou, de há muito, um hábito.
Dá, mesmo, a impressão de que a luz não lhe faz falta. A poesia enfeita de brilhos aurorais a sua noite sem termo.

Vejam como é bonito e sentimental este soneto:
  

RELÓGIO
Benedita de Melo

Toda a nossa ventura enternecida
meu relógio a marcava hora por hora.
O dia em que tornaste à minha Vida,
o amargo instante em que te foste embora.

Não gosto dele. Continua a lida,
contando o tempo em que te encontras fora.
Por que não pára se me vê sentida
e me entristece a sua voz sonora?

Quero um relógio assim como o arco-íris,
que vem ou vai, com horas singulares.
Compra-me um desses, quando acaso o vires...

Um que tenha expressão enquanto o olhares.
E que se atrase antes de tu partires,
e que se adiante para tu voltares!



Não menos atraente é este outro:

A GRAVATA
Benedita de Melo

Fui encontrar no chão, abandonada,
certa gravata que te dei outrora
e que, por estar feia e desbotada,
deitaste a um canto quando foste embora.

Ela foi como eu fui, a ti ligada,
por um braço já desfeito agora.
Foi como eu fui, um dia desprezada.
Não tive jeito de jogá-la fora.

Gostaste dela e dela desgostaste...
Guardo-a comigo, então. Pois, em verdade,
sou também coisa que tu rejeitaste.

Hoje já não sou uma, somos duas,
e valemos nas horas de saudade
pobres gravatas que já foram tuas.


"Velhice" é uma página digna da maior admiração, pela arte e pelo sentimento que encerra:


VELHICE
Benedita de Melo

Velhice é a borra do final da taça...
O sabor derradeiro da bebida,
Visão que, terna, a criatura abraça,
porém que sempre a encontra distraída.

Tem de tudo que finda, a eterna graça.
Por todos, com tristeza é recebida...
Qualquer fase da vida surge e passa,
sem que por isso passe-nos a vida.

Ela, não. Ela fica. É a mais sincera...
É mais que o Outono e mais que a Primavera...
Para atingi-la, quanto não fazemos!

Vai-se a infância e risonhos prosseguimos...
A mocidade foge e resistimos...
Mas se a velhice morre, nós morremos!...


Comovente e sensibilizador é este soneto "Bendita cegueira", em que a poetisa parece aceitar, com sublime resignação, o seu destino:

BENDITA CEGUEIRA
Benedita de Melo

Não vi ciscar a terra o pintainho,
nem vi no lago espreguiçar-se a lua.
Não vi num ramo balouçar-se um ninho,
nem no dorso no mar vi a falua.

Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...
Vi ruidosa e deserta cada rua...
Meu ser em toda parte vi sozinho...
Não vi o mato verde, a pedra nua.

Mas, se não vi a graça de uma flor,
nem plumagem de pássaro cantor,
bendigo o que não vi, para bem meu...

Não vi o frio olhar de quem renega...
E a dor de minha mãe ao ver-me cega...
E o rosto de meu pai, quando morreu... 



Durval Mendonça (1906-2001),  carioca,  Contador aposentado do Ministério da Fazenda Vitorioso em inúmeros Jogos Florais e concursos de Poesias, tendo obtido, aproximadamente, 500 premiações.

Quando atingia uma situação de destaque em sua carreira administrativa, começou, paulatinamente, a perder a vista, em conseqüência de uma enfermidade que acabou por lhe roubar o que de mais caro possuía. Em 1951, aos 44 anos de idade, estava cego.

Durval Mendonça constitui uma das mais belas vitórias da Poesia, pois iniciou sua excepcional carreira literária apenas em 1958. Antes de ficar cego, jamais havia feito um só verso. Ninguém poderia supor que viesse a ser um emérito trovador e um sonetista de rara inspiração; e isto é realmente extraordinário, um milagre, mesmo.

Ao longo de uma de nossas conversas, disse-nos: "Aquele que foi um vidente e ficou cego, pode recompor o mundo", acrescentando: "a poesia é a minha fuga às vicissitudes da vida".

Há na sua existência uma particularidade que vale a pena registrar: ele é quem datilografa suas produções, que antes arquiteta e forma dentro de sua fértil imaginação, muitas vezes ao fundo de uma dupla noite, no morno silêncio de seu leito.

Na máquina de escrever, faz até a sua correspondência, pois esse instrumento de trabalho não esconde qualquer segredo, tão familiar lhe é, desde os tempos em que contava com a vista perfeita.

Inicialmente, vamos, apresentar o seu excelente soneto "Minha Cigarra", premiado em Portugal e um dos que merecem sua preferência:


MINHA CIGARRA
Durval Mendonça

Gosto de ouvir as rútilas fanfarras
fremindo em estridências na amplidão.
O coro modulado das cigarras
glorificando a vida em cantochão.

Sentir, nas tardes fulvas e bizarras,
a fervilhar nas veias do Verão
em vibrações sonoras de guitarras,
o sangue tropical de um deus pagão.

Gosto de ouvir o canto agreste e agudo
azucrinando a tarde adormecida
aos pés de um céu azul, perplexo e mudo!

Canta cigarra! E a voz enternecida
do teu poeta já sofrido em tudo
só por teu canto ainda bendiz a Vida!


"Meus erros" é, também, um soneto de grandes qualidades artísticas:
  
MEUS ERROS
Durval Mendonça

Vou pela estrada que transponho aflito,
de pés doridos, trôpegos, cansados,
contendo os ais e sufocando o grito
preso aos meus lábios secos e crispados...

As estrelas cravadas no Infinito
reluzem nos meus olhos torturados,
e meu olhar de angústia é tão contrito
que os astros estremecem, perturbados!...

E me perguntam da distância a mim:
— Por que caminhas desolado assim,
de passo lerdo igual ao dos enterros?!...

Eu lhes respondo quase em desatino:
— Porque carrego ao longo do destino
o fado insuportável dos meus erros!...



Em "Tu, Poeta...”, Durval Mendonça mostra uma de suas melhores facetas de artista, que é, sem dúvida, o humorismo: 


TU, POETA...
Durval Mendonça

Queres fazer sonetos qual Camões,
e, qual Bilac, insistes em fazê-los...
Empilhas versos e lamentações,
grupando rimas e agrupando zelos.

Quatorze versos feitos em seções
que, em dois quartetos — oito pesadelos —
e dois tercetos — seis flagelações —
deram trabalho de arrancar cabelos!

Por fim, o teu "petrarca" põe-se em pé,
de pé quebrado (e juras que não é!)
e vai mancando por aí a esmo.

E tu, heróico autor dessa obra-prima,
cavalgas a vaidade que te anima
e vais batendo palmas a ti mesmo!...

  
Finalmente, oferecemos aos leitores um verdadeiro brinde, soneto dos melhores, feitos por Durval Medonça, "Súplica":


SÚPLICA
Durval Mendonça

Há uma nuvem sem rumo que separa
meu ideal desse desejo aflito
que busca inutilmente a essência rara
perdida nas distâncias do Infinito.

E na fria quietude azul e avara
que não se agita ao eco do meu grito
rola minha inquietude que não pára,
porque não pára o ego em que me agito.

Ah! misterioso fim, por que demoras?
Por que te arrastas no arrastar das horas,
tornando mais dorida esta canseira?

Eu te suplico: vem calar o verso
que entre rimas e lágrimas disperso,
porque não sei chorar de outra maneira!...



Carlos Sá, filho do grande brasileiro que foi Francisco Sá, nasceu em Fortaleza, em 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1969. Formado em medicina em 1908. Em Fortaleza, fundou e foi redator-chefe da "Gazeta da Tarde", guando, ainda, participou da sociedade "A Plêiade". Em 1944, definiu-se como poeta vigoroso, publicando o livro Paisagens". Também publicou obras sobre educação sanitária e "Francisco Sá" (reminiscências biográficas, 1938).
Em 1945, saiu "Retrato de S. Francisco de Assis", um
estudo profundo sobre o grande Santo.

Inicialmente, oferecemos aos leitores dois sonetos, "Noite" e "Flor de quaresma", da época em que o poeta estava em pleno vigor de sua saúde.


NOITE
Carlos Sá

Hora de Ave Maria. Hora de cisma e prece.
O sol na curva extrema. As rosas e as dracenas,
cravos e bogaris, toda inteira fenece
da cor a floração nas esferas serenas.

Pelo espaço infinito a luz empalidece.
Nuvens passam no céu; sopram brisas amenas:
Esfumam-se na sombra as paisagens terrenas.
Silêncio no ar. Vai longe o sol. Tudo escurece.

E de um cimo perdido além dos horizontes,
em paragem remota, em nebulosos montes,
qual fantasma sem nome e rival das Quimeras,

ave estranha que nasce em plagas encantadas,
num infinito vôo através das esferas,
silente, espalma a Noite as asas consteladas.



FLOR DE QUARESMA
Carlos Sá

Quase finda o verão. No firmamento esplende
o sol, como um sorriso em flor num rosto lindo.
Aproxima-se maio, as corolas abrindo
e abrindo os corações, que o amor seduz e prende.

De monte a monte, enchendo os vales e cobrindo
os flancos da montanha, a floresta se estende.
Das árvores na fronde a luz do sol acende
os tons do ouro da terra ao céu azul subindo.

Mas, tristeza empanando um brilho de esperança,
dúvida, hesitação, num sonho de ventura
que alto sobe na vida e nunca os céus alcança,

ametista perdida em meio de esmeraldas,
onde a mata é mais densa e mais verde fulgura,
uma quaresma em flor desata-se em grinaldas.


Nos últimos anos de sua vida, foi, um tanto aceleradamente, perdendo a visão. Em 1958, quando publicou seu último livro, "Musa Derradeira", pode-se dizer que já estava praticamente cego, assistido e guiado pela sua querida Naná, a desvelada esposa. E em 1963 ficou completamente cego.

O "Anjo da Guarda", ele o dedica à sua musa e companheira:


ANJO DA GUARDA
Carlos Sá

Teve pena de mim o meu Senhor,
pois me deu na velhice o Anjo da Guarda,
que me afasta, me livra, me resguarda
de injúria, de fadiga, de amargor.

Sigo na vida agora sem temor
e contra todo o mal me sinto em guarda.
Boa há de ser a morte que me aguarda;
Terá pena de mim o meu Senhor.

Pouco importa a velhice com a cegueira,
se nesta ingrata faina derradeira,
tenho Naná comigo, e o seu amor.

E pois que ela me empresta a luz dos olhos
e sua mão me afasta dos escolhos,
seja sempre louvado o meu Senhor!


Através deste soneto, "Aspiração derradeira", pode-se compreender como o poeta recebia com resignação estóica os sofrimentos que ele, médico e homem culto, sabia, como ninguém, estarem chegando ao fim:

ASPIRAÇÃO DERRADEIRA
Carlos Sá

Libertai-me, Senhor, da angústia de esperar,
sem saber como chega, o instante misterioso,
tantas vezes de horror, outras de estranho gozo,
no qual o coração cessa de palpitar.

Já vivi longamente, e só sinto, saudoso,
ter de deixar na terra o meu sereno lar.
No crepúsculo a vida é um fardo a carregar,
sem força, sem prazer, sem prêmio, sem repouso.

Quem me dera saber quando vem, como vem,
o momento fatal da suprema partida
para a treva do mal, para o fulgor do bem.

Na dúvida, porém, seja lá como for,
da mão de Deus aceito a morte como a vida,
mas deixai-me aspirar à eterna paz, Senhor.
  

Finalmente, vamos transcrever "A Morte de São Francisco", que, pelo menos no fim da vida, do poeta, foi alvo de sua mais profunda admiração e também de sua especial devoção: 

A MORTE DE SÃO FRANCISCO
Carlos Sá

Fins de Setembro. O dia aos poucos entardece.
Crepúsculo outonal nas coisas e na vida.
Pelas ruas de Assis a romaria desce,
carregando ainda viva a imagem tão querida.

Passada a velha porta, em meio da descida,
pára o cortejo. Ao longe o Subásio aparece.
Num olhar percorrendo a paisagem vivida,
abençoa a cidade e murmura uma prece.

A Porciúncula chega, ao fim do árduo caminho,
e dos Irmãos cercado espera o Pobrezinho
que se cumpra, no sítio amado, a sua sorte.

Outubro. Em voz vibrante o salmo antigo entoa,
e recebendo enfim, dos justos a coroa,
recebe o Irmão Francisco a doce Irmã, a Morte.



Leôncio Correia (1866-1950) veio do Paraná para o Rio de Janeiro, onde privou da amizade dos maiores escritores e poetas do seu tempo. Jornalista e pedagogo, sempre teve, entretanto, predileção pela poesia.
Octogenário e cego, fazia como Homero, Milton e Juvenal Galeno: ditava os seus versos, resignadamente.
Muito simples de hábitos, foi, assim mesmo, vítima da indiferença, da maldade e até da inveja.
Amava o seu mundo interior, constelado de belezas, e não blasfemava ante a cegueira que o condenou para sempre.

Era um bom, um conformado venturoso. Francisco Leite, em artigo publicado na Revista das Academias de Letras (1951), lembrou a vida e a morte de Leôncio Correia, escrevendo: — "Era um São Francisco de Assis em pleno século XX. E Buda ter-se-ia orgulhado de tê-lo como discípulo". 

Queremos transcrever, aqui, dois de seus sonetos, aliás belíssimos. Pelos temas, parece patente que os fez quando já estava cego. O primeiro, uma oração comovedora, de santificação do amor materno:


Mãe! minha Mãe! na augusta claridade
dos teus olhos tranqüilos e radiosos,
ri-se Deus, e se Deus não rir, quem há de
rir, ó Santa! por olhos tão piedosos?

Como as estrelas pela imensidade,
desenrolam-se neles dons formosos
dessa alma; e os vejo, Mãe, com que saudade!
com que sabor de beijos lacrimosos!

Tu que a vida me dando, Mãe, me deste
parte da tua, e o teu amor que enlaça
meu ser, como uma faixa azul-celeste,

sei que darias, com um sorriso doce,
para salvar teu filho da desgraça,
a própria vida, se preciso fosse!


E o segundo, a sua última e enternecida confissão: "Canto de Cisne":


CANTO DE CISNE
Leôncio Correia

Cego — completa escuridão... Tateio
sem um velho cajado que me arrime,
expiação, talvez, de um grande crime,
mas onde, quando e como pratiquei-o?

Das aves ouço o matinal gorjeio...
Invejo-as, e essa nobre inveja exprime
uma resolução, firme e sublime,
de encarar a hora extrema, sem receio.

Ao Pai Celestial minha alma entrego
às margens quase de outra vida, cego,
mas abrasado de infinito amor

pelo bom Deus, que me concede, ainda
quando minha missão na terra finda,
esta bendita luz interior.



Camilo Castelo Branco (1825-1890), Portugal. Glória da literatura portuguesa. Mestre da língua, dono de um vocabulário riquíssimo, e criador de méritos excepcionais. Escritor genial, foi o autor de muitos romances, entre os quais "Amor de Perdição", sua obra-prima, escrita em 15 dias de superex-citação de espírito. Também foi excelente poeta. A cegueira que o atacou e, ainda, dramáticos e dolorosos desgostos morais, levaram-no ao suicídio. Vejamos este soneto seu, feito quando já estava cego:


Constantemente vejo o filho amado
na minha escuridão, onde fulgura
a estática pupila da loucura,
sinistra luz de um cérebro queimado.

Nas rugas do seu rosto macerado
transpira a crudelíssima tortura
que escurentou na pobre alma tão pura
talento, aspirações... Tudo apagado!

Meu triste filho, passas vagabundo
por sobre um grande mar, calmo, profundo,
sem bússola, sem norte, sem farol...

Nem gozo, nem paixão te altera a vida!
Eu choro sem remédio a luz perdida...
Bem mais feliz és tu, que vês o sol.


Camilo, no soneto que se segue, demonstrou boa dose de humorismo, ridicularizando os "amigos" que o abandonaram quando ele ficou cego:

Amigos cento e dez, e talvez mais,
eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
tão zelosos das leis de cortesia,
que eu, já fato de os ver, me escapulia
às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
que não desfez os laços quase rotos.

— "Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver"...
— Que cento e nove impávidos marotos!




Delfina Benigna da Cunha nasceu no Rio Grande do Sul (1791-1857). Dela nenhuma outra informação temos, senão a de que ficou cega desde a idade de 20 meses.

Publicamos, abaixo, um de seus sonetos:

Vinte vezes a lua prateada
inteira o rosto seu mostrado havia,
quando um terrível mal, que então sofria,
me tornou para sempre desgraçada.

De ver o céu e o sol sendo privada,
cresceu a par comigo a mágoa impia;
desde a infância a imortal melancolia
se viu em meu semblante debuxada.

Sensível coração deu-me a natura,
e a fortuna, cruel sempre comigo,
me negou toda a sorte de ventura;

nem sequer um prazer breve consigo:
só para terminar minha amargura
me aguarda o triste, sepulcral jazigo.



Daniel Albuquerque (1899-1971) nasceu no Pará. Sua cegueira foi proveniente de um erro cometido pelo cirurgião que lhe fez uma intervenção na vista. Ficou primeiro paralítico e, depois, cego. Aceitou, com edificante paciência, os sofrimentos.
Era irmão do poeta Padre Manuel Albuquerque.

Eis o seu soneto “Pela força de teu exemplo”, dedicado à sua mãe:


PELA FORÇA DO TEU EXEMPLO
Daniel Albuquerque

Rainha e Santa — (que entre os Anjos mora) —,
por que partiste de entre nós tão cedo,
tu que eras para mim todo o segredo
das coisas belas que eu relembro agora?

Olha, Mamãe, quanto a minha alma chora,
entre os escombros que me causam medo,
que é só de escombros este meu degredo,
onde a Saudade o teu regresso imlora!

Se pode o pranto consolar a vida,
teu heroísmo no martírio, ó Santa,
me dá coragem, minha Mãe querida!

Por isso, dia e noite no meu leito,
paralítico e cego, me levanta
o teu exemplo... E a minha dor aceito!...



Sebastião Lasneau (1900-1969). Poeta muito talentoso e estimado, também foi atingido pela cegueira, muitos anos antes de sua morte. Nasceu e morreu em Barra do Pirai, Estado do Rio de Janeiro. Trabalhou na E. F. Central do Brasil, onde se aposentou.

Quando, em 1943, publicou o soneto "Vulcão extinto", que a seguir transcrevemos, já estava praticamente cego.


VULCÃO EXTINTO
Sebastião Lasneau

Dorme o extinto vulcão o sono milenário
daqueles que, depois de viver e lutar,
aos ombros conduzindo a cruz do seu calvário,
de si mesmos à sombra enfim vão repousar.

Quem um dia o fitasse, outrora, tumultuário,
acinzentando o céu e vermelhando o mar,
não diria talvez que a um tempo incerto e vário
o indômito vulcão viria se calar.

Já não brada o infeliz convulsionando a serra,
fazendo ecoar no espaço, em doídos escarcéus,
os clamores febris do coração da terra!

Há muita gente assim como o extinto vulcão:
— Depois de amaldiçoar a terra, o mar e os céus,
morre ao peso fatal da própria maldição! 



Nazareth Menezes — Infelizmente, não descobrimos nenhum dado ou notícia deste poeta. Não temos, porém, dúvida de que era cego. Basta lermos o seu soneto "In tenibris", que apresentamos abaixo, transcrito de um recorte de jornal:

"IN TENEBRIS"
Nazareth Menezes

Cego! Da vida ouvir a melodia,
a canção do prazer e da ventura,
saber que há sol que luz e que irradia,
sem poder ver do céu a formosura...

Ter nos olhos a névoa fugidia
de uma noite sem astro, noite escura,
dem os fulgores aurorais do Dia,
Noite sem fim que na existência dura...

Amar sem conhecer a sua amada!
Na alma trazer a dúvida guardada,
como um espinho que ferisse fundo...

Cego! Não contemplar a Natureza...
Mas consola não ver qual a baixeza,
a podridão mesquinha deste mundo...



Miguel de Souza Borges Leal Castelo Branco (1836-1887). Nasceu na cidade piauiense de Campo Maior. Estudou no Recife. Regressando à sua terra, perdeu, por doença, o olho esquerdo.
Passou a residir em Teresina, depois da mudança da Capital.

Ali foi funcionário público, professor, vereador e deputado provincial. Fundou e dirigiu jornais. Editou o "Almanaque Piauiense" e foi, ainda, delegado de polícia. Em 1882, fundou o Colégio Nossa Senhora das Dores. Atacado de glaucoma, perdeu o olho direito e, assim, ficou completamente cego. Faleceu em Teresina.

Apresentamos, de sua autoria, o soneto "A Pedro Álvares Cabral":


A PEDRO ÁLVARES CABRAL
Miguel de Souza Borges Leal Castelo Branco

Rasgando vão os mares desabridos,
curvos, ovantes, lenhos arrojados,
sirtes, escolhos, desprezando, ousados,
os naufrágios que afrontam, destemidos.

Já imensos espaços são vencidos
nesses campos extensos, marulhados;
já novos horizontes dilatados
abrem-se aos bravos nautas atrevidos.

Com mar e vento sempre em dura guerra,
em praia amena, ignota, de improviso,
a venturosa nau a quilha ferra!

Cabral! Teu nome eterno já diviso,
pois, se perdeu Adão o Éden na terra,
tu, mais ditoso, achaste um paraíso!



Alves de Sousa - Também deste inspirado poeta cego não temos outras informações, senão as duas que transmitimos, mesmo assim sem absoluta convicção: nasceu no Pará, possivelmente em 1882. Nada mais sabemos dele.

Transcrevemos seu soneto "Monólogo de um cego" , cheio de profunda amargura:


MONÓLOGO DE UM CEGO
Alves de Sousa

Deus! Essência do Bem! Há sessenta anos vivo
dentro do meu Negror, dentro da minha Treva!
Há sessenta anos tenho o espírito cativo
desta Noite sem fim, que a Morte, enfim, não leva!

Deus! Essência do Bem! Manda-me um lenitivo
a esta Dor imortal que de pavor se ceva!
Como queres que eu creia em teu Poder ativo,
se não vejo o fulgor que o teu Poder eleva?

Deus! Essência do Bem! Há sessenta anos cego!
Só! Perdido no Mundo e perdido no pego
da eterna Escuridão, mordido de desejos!...

Como queres que eu creia em teu Poder eterno,
se há sessenta anos tenho, a consumir-me, o inferno
destes olhos sem luz, desta boca sem beijos?...





(Das páginas 879 a 893 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto", de Vasco de Castro Lima)

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