O livro físico x a Internet
Do livro "Os
sonetos do sonêto", de Mello Nóbrega, Livraria S. José, Rio de Janeiro, 1959,
páginas 76 e 77
O poeta Belmiro Braga (1872-1937)
queixou-se, jocosamente, num sonêto, das dificuldades do soneto. Em pergunta a
Emílio de Meneses, inserto em "Contas do meu rosário" (1918), aludindo a
Gonçalves Crêspo (?), pediu ao poeta paranaense que lhe ensinasse como arrumar
as idéias em quatorze versos:
Fazer um bom sonêto...
E eu nunca pude
domar de Crêspo* esse animal bravio,
vendo as frases
correrem como um fio
de água clara na
rampa de um açude.
Se a idéia é
branda, sai-me o verso rude,
quando busco o
tufão, vem-me o cicio;
e choro e gemo e
grito, o ferro frio
noite e dia a
malhar na férrea incude...
Como os fazes, Emílio? Eu te prometo
um mimo como paga ao que pergunto,
pois, quando, às vêzes, no aranhol me meto,
(tens sob os olhos as razões que ajunto),
ora o assunto transborda do sonêto,
ora sobra sonêto e falta assunto...
_______________
(*) – “O soneto pode ser, quando muito,
um “animal bravio” que um bom domador, realmente poeta, pode perfeitamente “domesticar”. Basta que se tenha longa e íntima convivência com suas normas."
(Gonçalves Crêspo, Rio de Janeiro, 1846-1883)
ANIMAL BRAVIO
Gonçalves Crespo
Rio de Janeiro/Lisboa (1846-1883)
Preferiras um ramo caprichoso,
De escolha rara e de concerto fino,
Onde visses o cacto purpurino
E os nevados jasmins do Tormentoso.
Em vez do ramo exótico e oloroso,
Casto recreio desse olhar divino,
Aceita, Eugênia, este animal felino
Que o meu braço subjuga vigoroso.
Tive artes de o amansar: ei-lo sereno!
Acode à minha voz e ao meu aceno,
Como um jaguar à voz de um saltimbanco...
Vamos, soneto! a prumo! ajoelha, presto!
E à doce Eugênia, de sorriso honesto,
A fímbria oscula do vestido branco!
Da mídia digital
(Internet):
A dificil arte do soneto segundo Lope de Vega, Alexandre O´Neill e
Manuel Alegre
Desde a sua invenção nunca o soneto
deixou de desafiar poetas.
Poema de 14 versos em verso decassílabo
rimado, ordenado em quatro estancias (estrofes) geralmente de duas quadras com dupla
rima seguidas de dois tercetos.
No seu desenvolvimento o soneto exige
ser construído numa espécie de silogismo, como bem lembrava Manuel Borralho nas suas Luzes de
Poesia (1724),
partindo de premissa(s) e rematando com uma conclusão, sendo o último verso do
soneto, a certa altura, chamado de chave de
ouro.
Apresentado o tema na primeira quadra,
deverá o poema dar continuidade ao assunto que se propõe, desenvolvendo a ideia
que lhe subjaz, e concluindo-se de forma coerente com o argumentado.
Sendo uma forma poética de meu especial
agrado, e existindo na literatura portuguesa elevado número de sonetos
belíssimos, tenho por diversas vezes falado e transcrito sonetos. Hoje reúno um
conjunto especial em que o assunto é a própria dificuldade em escrever um
soneto.
Começo por Lope de Vega (1562-1635) que assim respondeu a Violante quando
lhe pediu um soneto:
Un
soneto me manda hacer Violante / Um soneto me faz fazer Violante
Y
en vida nom me he visto en tal aprieto; / Nunca na vida estive tão inquieto;
Catorce
versos dicen que es soneto: / Catorze versos dizem que é soneto,
Burla
burlando, van los tres delante. / Brinca brincando vão os três diante.
Yo
pensé que no hallara consonante / Pensei que não achava consoante
E
estoy a la mitad de otro cuarteto; / E a metade estou deste quarteto;
Mas,
si me hallo en el primer terceto, / Mas, se me vejo no primeiro terceto,
No
hay cosa en los quartetos que me espante. / Nada há nos dois quartetos que me
espante.
Por
el primer terceto voy entrando / pelo primeiro terceto vou entrando
Y
aún presumo que entré por pie derecho, / E parece que entrei com o pé direito,
Pues
fin con este verso le voy dando. / Pois fim com este verso lhe estou dando.
Ya
estoy en el segundo y aún sospecho / No segundo já vou e até suspeito
Que
estoy los trece versos acabando: / que estou os treze versos acabando;
Contad
si son catorze, y esté hecho. / Contai se são catorze e já está feito.
Rima: (ABBA / ABBA / CDC / DCD)
/ (ABBA / ABBA / CDC / DCD)
No livro Abandono
Vigiado publicado
por Alexandre O’Neill (1924-1986) em 1960 encontro o soneto QUATORZE VERSOS tendo como epígrafe o primeiro verso
deste soneto de Lope de Vega.
Deliberada homenagem a um poeta maior,
pois o poema anterior é outra homenagem, essa a
João
Cabral de Melo e Neto, / Você não se pode imitar, / mas incita a ver mais
perto, / com mais atenção e vagar, / o que está como que em aberto, /
…,
o soneto QUATORZE
VERSOS brinca,
também ele, com a arte de escrever sonetos, na qual O’Neill foi exímio como
nestes SONETOS GARANTIDOS… páginas antes no mesmo livro, e que não resisto a
transcrever:
SONETOS GARANTIDOS…
Sonetos garantidos por dois anos.
E é muito já, leitor que mos compraste
para encontrar a alma que trocaste
por rádios, frigorificos, enganos…
essa tristeza sobre pernas faz-te
temeroso e cruel e tonto e traste.
Nem pior nem melhor que outros fulanos,
não vês a Bomba e crês nos marcianos…
e é para ti que escrevo, é para ti
que um verso lanço – ó mão! – como o
destino,
nel’ ponho mesura, desatino,
rasgo, invenção, lugar-comum protesto?
Antes para soldado ou para resto,
escroto de velho, ronco de suíno…
Mas voltanto à dificil arte do soneto
temos então no soneto QUATORZE VERSOS uma eloquente demonstração:
QUATORZE
VERSOS
Alexandre O’Neill (1924-1986)
O
primeiro é assim: fica de parte.
No
segundo já posso prometer
que
no terceiro vai haver mais arte.
Mas
afinal não houve… Que fazer?
Melhor
será calar, pois que dizer
nem
no sexto conseguirei destarte.
Os
acentos errados é favor não ver;
nem
os versos errados, que também sei hacer…
Ó
nono verso porque vais embora
sem
que eu te sublime neste décimo?
Ao
décimo-primeiro dediquei uma hora.
Errei-o.
Mas que importa se a poesia,
mesmo
que o não errasse, já não vinha?
É
este o último e, como os outros, péssimo…
Ficaria por aqui não fora Manuel Alegre (1936) no seu livro Sonetos do Obscuro Quê publicado em 1993, vir explicitamente a
este soneto de O’Neill quando se debruçava sobre a arte de escrever poesia em
forma de soneto. Temos então, agora de Manuel
Alegre:
Desata-se-me
o verso no primeiro
no
segundo de vento vai vestido
no
terceiro de mar e marinheiro
no
quarto está perdido está perdido.
Recupero-o
no quinto sem sentido
no
sexto deito-o à sombra de um sobreiro.
No
sétimo com dante digo:”Guido
sê
tu no oitavo verso o companheiro”.
Porque
não espero de voltar no nono
leva-me
O’Neill no décimo a um terceto
que
aponte já no onze o sul e o sal.
Ao décimo segundo chega o sono.
No
treze está a chave do soneto
mas
nem sempre o catorze é o final.
Vamos pois dormir, a conselho do
poeta, não sem antes referir que a tradução do poema de Lope de Vega é de José Bento e que se lê com
proveito, o artigo SONETO publicado no DICIONÁRIO DE LITERATURA, sob a direcção de Jacinto do Prado Coelho e assinado por António Coimbra Martins.
Nota final: Quatorze ou Catorze? Escolha o leitor.
Apenas reproduzi o conteúdo das edições impressas que possuo. Antes do Acordo
Ortográfico Quatorze seria para Portugal
e Catorze para o Brasil.
Fonte digital:
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Volto à difícil arte do soneto com uma das
primeiras brincadeiras sobre a dificuldade de expressar em soneto uma ideia,
sentimento, ou acontecimento, na rigidez da sua forma rimada (em quatorze
versos de dez sílabas), com a exigência adicional de exposição,
desenvolvimento, e conclusão do assunto.
Já antes aqui no blog, e no artigo A
difícil arte do soneto, dei conta de alguns exemplos e considerações a este
propósito, com o destaque especial do soneto Quatorze versos, de Alexandre
O’Neill. Regresso agora com um soneto de Baltazar del Alcázar (1530-1606) no
qual o poeta tenta, sem o conseguir antes que o soneto acabe, expressar um
segredo à sua bela inimiga Inês.
Bela inimiga seria, no contexto poético do
tempo, uma mulher desejada que não respondia ao assédio desse desejo. Sendo o
soneto à época uma privilegiada forma de expressar o desejo amoroso, tal está
subentendido no segredo que o poeta quer contar e não consegue. Temos pois com
este exercício poético a ironia de escrever um soneto sem assunto, continuando
em silêncio o desejo que o poeta pretendia expressar.
A Inês, e com Inês, tem o poeta alguns deliciosos
poemas burlescos que certamente trarei ao blog noutra ocasião. Por agora a
brincadeira poética à volta de expressar o desejo amoroso escrevendo um soneto:
Soneto
Baltazar
del Alcázar (1530-1606)
Decidi
revelar-vos em soneto
O
meu segredo, Inês, bela inimiga;
Mas,
por mais ordem que ao fazê-lo eu siga,
Não
pode já caber neste quarteto.
Chegados
ao segundo, vos prometo
Que
não se há-de el’ passar sem que eu o diga;
Mas
estou feito, Inês, uma formiga
Que
tonta gasta os versos do soneto.
Vêde,
ó minha Inês, quão duro é o fado,
Se
tendo eu o soneto em minha boca
E
a ordem de dizê-lo já estudado,
Lhe
conto os versos todos, e hei notado
Que,
pela conta que a um soneto toca,
Já
este meu, Inês, vai acabado.
___________________________
Tradução
de Jorge de Sena
Transcrito
de Poesia de 26 Séculos, antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de
Sena, edição Fora do Texto, Coimbra, 1993.
Fonte digital:
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