BRASIL
Fase
barroca
O poeta descreve o que era
naquele tempo a cidade da Bahia
Gregório de Matos
(1623-1696)
A cada canto um grande conselheiro
que quer nos governar cabana e vinha;
não sabem governar sua cozinha,
e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro,
que a vida do vizinho e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados
trazidos sob os pés os homens nobres,
posta nas palmas toda a picardia,
estupendas usuras nos mercados,
todos os que não furtam muito pobres:
e eis aqui a cidade da Bahia.
A Cristo N. S.
crucificado, estando
o poeta na última
hora de sua vida
Gregório de Matos
(1623-1696)
Meu Deus, que
estais pendente de um madeiro
em cuja lei
protesto de viver,
em cuja santa lei
hei de morrer
animoso, constante,
firme e inteiro:
neste lance, por
ser o derradeiro,
pois vejo a minha
vida anoitecer,
é, meu Jesus, a
hora de se ver
a brandura de um
pai, o manso Cordeiro.
Mui grande é o
vosso amor e o meu delito:
porém pode ter fim
todo o pecar,
e não o vosso amor,
que é infinito.
Esta razão me
obriga a confiar,
que, por mais que
pequei, neste conflito
espero em vosso
amor de me salvar.
Marília de Dirceu:
soneto II
Tomás Antônio
Gonzaga
(1744-1810)
Num fértil campo de
soberbo Douro,
dormindo sobre a
relva descansava,
quando vi que a
Fortuna me mostrava
com alegre
semblante o seu Tesouro.
De uma parte, um
montão de prata e ouro
com pedras de valor
o chão curvava;
aqui um cetro, ali
um trono estava,
pendiam coroas mil
de grama e louro.
Acabou (diz-me então) a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
pois benigna os concedo, vai, procura.
Escolhi, acordei, e
não vi nada:
comigo assentei
logo que a ventura
nunca chega a
passar de ser sonhada.
Fase
árcade
Onde estou?
Cláudio Manuel da Costa
(1729-1789)
Onde estou? Este sítio desconheço:
quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
e em contemplá-lo, tímido, esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
de estar a ela um dia reclinado;
ali em vale um monte está mudado:
quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
que faziam perpétua a primavera:
nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era;
mas que venho a estranhar, se estão presentes
meus males, com que tudo degenera!
Eu vi a
linda Jônia...
Inácio José de
Alvarenga Peixoto
(1744-1792)
Eu vi a linda Jônia
e, namorado,
fiz logo eterno
voto de querê-la;
mas vi depois a
Nise, e é tão bela
que merece
igualmente o meu cuidado.
A qual escolherei,
se, nesse estado,
eu não sei
distinguir esta daquela?
se Nise agora vir,
morro por ela;
se Jônia vir aqui,
morro abrasado.
Mas, ah! que esta
me despreza, amante,
pois sabe que estou
preso em outros braços,
e aquela não me
quer, por inconstante.
Vem, Cupido,
soltar-me destes laços:
ou faze destes dois
um só semblante,
ou divide o meu
peito em dois pedaços!
A uma senhora
natural do Rio de Janeiro,
onde se achava
então o autor
José Basílio da
Gama
(1741-1795)
Já, Marfiza cruel,
me não maltrata
saber que usas
comigo de cautelas,
que inda te espero
ver por causa delas,
arrependida de ter
sido ingrata.
Com o tempo, que
tudo desbarata,
teus olhos deixarão
de ser estrelas;
verás murchar no
rosto as faces belas,
e as tranças de
ouro converterem-se em prata.
Pois se sabes que a
tua formosura
por força há de
sofrer da idade os danos,
por que me negas
hoje esta ventura?
Guarda para seu
tempo os desenganos,
gozemo-nos agora,
enquanto dura,
já que dura tão
pouco a flor dos anos.
Fase
romântica
Passaste como
a estrela matutina
José Maria do Amaral
(1813-1885)
Passaste como a estrela matutina,
que se some na luz pura da aurora;
da vida só viveste aquela hora
em que a existência em flor luz sem neblina.
Ver-te e perder-te! De tão triste sina
não passa a mágoa em mim, antes piora;
sem ver-te já, minh'alma ainda te adora
em triste culto que a saudade ensina.
Não vivo aqui; a vida em ti só ponho,
na fé, de Cristo filha, a dor abrigo,
futuro em ti no céu vejo risonho!
Neste mundo, meu mundo é teu jazigo;
dizem que a vida é triste e falaz sonho,
se é sonho a vida, sonharei contigo.
Pensas tu, bela
Anarda,
que os poetas...
Gonçalves Dias
(1823-1864)
Pensas tu, bela
Anarda, que os poetas
vivem d’ar, de
perfumes, d’ambrosia?
Que vagando por
mares d’harmonia
são melhores que as
próprias borboletas?
Não creias que eles
sejam tão patetas,
isso é bom, muito
bom, mas em poesia
são contos com que
a velha o sono cria
no menino que
engorda a comer petas!
Talvez mesmo que
algum desses brejeiros
te diga que assim
é, que os dessa gente
não são lá dos
heróis mais verdadeiros.
Eu que sou pecador − que indiferente
não me julgo ao que
toca aos meus parceiros,
julgo um beijo sem
fim cousa excelente.
Morrer...
Dormir...
Francisco Otaviano
(1825-1889)
Morrer, dormir, não
mais, termina a vida,
e com ela terminam
nossas dores;
um punhado de
terra, algumas flores...
e depois uma
lágrima fingida!
Sim, minha morte
não será sentida:
não tive amigos e
nem deixo amores!
E, se os tive,
mostraram-se traidores,
algozes vis de
um’alma consumida.
Tudo é podre no
mundo! Que importa
que amanhã se
esboroe ou que desabe,
se a natureza para
mim ‘stá morta?!
É tempo já que meu
exílio acabe...
Vem, vem, ó morte!
Ao nada me transporta:
morrer, dormir,
talvez sonhar, quem sabe!
Há tormentos sem
nome,
há desenganos...
Aureliano Lessa
(1828-1861)
Há tormentos sem
nome, há desenganos
mais negros que o
horror da sepultura;
dores loucas, e
cheias de amargura,
e momentos mais
longos do que os anos.
Não da vida os
passageiros danos
que dobram minha
fronte; a desventura
eu a desdenho... A
minha sorte dura
fadou-me dentro da
alma outros tiranos.
As dores da alma,
sim; ela somente,
algoz de si, acha
um prazer cruento
em torturar-se ao fogo lentamente.
Oh! isto é que é
sofrer! nenhum tormento
vale um gemido só
da alma fremente,
nem séculos as
dores de um momento!
Sob a copa frondosa
e recurvada...
Luís Gama
(1830-1882)
Sob a copa frondosa
e recurvada
de enorme
gameleira, secular,
sentado numa ufa a
se embalar,
estava certa moça
enamorada.
Eis que rola dos
ramos inflamada
tremenda jararaca a
sibilar;
fica a jovem na
corda, sem parar,
como a Ninfa de
amor eletrizada!
Anjo Bento!
exclamaram os circunstantes;
foge a cobra de
horrenda catadura,
os olhos revolvendo
coruscantes.
Mas a bela moçoila
com frescura
num sorriso
acrescenta −
é das amantes
nem das serpes
temer a picadura.
Pálida à luz da
lâmpada
sombria...
Álvares de Azevedo
(1831-1852)
Pálida à luz da
lâmpada sombria,
sobre o leito de
flores reclinada,
como a lua por
noite embalsamada,
entre as nuvens do
amor ela dormia!
Era a virgem do
mar, na escuma fria
pela maré das águas
embalada!
Era um anjo entre
nuvens d’alvorada
que em sonhos se
banhava e se esquecia!
Era mais bela! O
seio palpitando...
Negros olhos as
pálpebras abrindo...
Formas nuas no
leito resvalando...
Não te rias de mim,
meu anjo lindo!
Por ti – as noites
eu velei chorando,
por ti – nos sonhos
morrerei sorrindo!
Arda de raiva
contra mim a
intriga...
Junqueira Freire
(1832-1855)
Arda de raiva
contra mim a intriga,
morra de dor a
inveja insaciável;
destile seu veneno
detestável
a vil calúnia,
pérfida inimiga.
Una-se todo, em
traiçoeira liga,
contra mim só o
mundo miserável.
Alimente por mim
ódio entranhável
o coração da terra
que me abriga.
Sei rir-me da
vaidade dos humanos;
sei desprezar um
nome não preciso;
sei insultar uns
cálculos insanos.
Durmo feliz sobre o
suave riso
de uns lábios de
mulher gentis, ufanos;
e o mais que os
homens são, desprezo e piso.
Ignorabimus
Tobias Barreto
(1839-1889)
Quanta ilusão!... O
céu mostra-se esquivo
e surdo ao brado do
universo inteiro...
De dúvidas cruéis
prisioneiro,
tomba por terra o
pensamento altivo.
Dizem que o Cristo,
o filho de Deus vivo,
a quem chamam
também Deus verdadeiro,
veio o mundo remir
do cativeiro,
e eu vejo o mundo
ainda tão cativo!
Se os reis são
sempre reis, se o povo ignavo
não deixou de
provar o duro freio
da tirania, e da
miséria o travo,
se é sempre o mesmo
engodo e falso enleio,
se o homem chora e
continua escravo,
de que foi que
Jesus salvar-nos veio?...
Último fantasma
Castro Alves
(1847-1871)
Quem és tu, quem és
tu, vulto gracioso
que te elevas da
noite na orvalhada?
Tens a face nas
sombras mergulhada...
Sobre as névoas te
libras vaporoso...
Baixas do céu num
voo harmonioso!...
Quem és tu, bela e
branca desposada?
Da laranjeira em
flor a flor nevada
cerca-te a fronte,
ó ser misterioso!...
Onde nos vimos nós?
És doutra esfera?
És o ser que eu
busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito
em sonhos desespera?...
Quem és tu? Quem és
tu? – És minha sorte!
És talvez o ideal
que est’alma espera!
És a glória talvez!
Talvez a morte!...
Fase parnasiana
Soneto
de
Natal
Machado
de Assis
(1839-1908)
Um
homem – era aquela noite amiga,
noite
cristã, berço do Nazareno -,
ao
relembrar os dias de pequeno,
e
a viva dança, e a lépida cantiga,
quis
transportar ao verso doce e ameno
as
sensações da sua idade antiga,
naquela
mesma velha noite amiga,
noite
cristã, berço do Nazareno.
Escolheu
o soneto... A folha branca
pede-lhe
a inspiração; mas, frouxa e manca,
a
pena não acode ao gesto seu.
E,
em vão lutando contra o metro adverso,
só
lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria
o Natal ou mudei eu?”
À
Carolina
Machado
de Assis
(1839-1908)
Querida,
ao pé do leito derradeiro
em
descansas dessa longa vida,
aqui
venho e virei, pobre querida,
trazer-te
o coração de companheiro;
Pulsa-lhe
aquele afeto verdadeiro
que,
a despeito de toda a humana lida,
fez
a nossa existência apetecida
e
num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te
flores – restos arrancados
da
terra que nos viu passar unidos
e
ora mortos nos deixa separados.
Que
eu, se tenho nos olhos malferidos
pensamentos
de vida formulados,
são
pensamentos idos e vividos.
Visita
à
casa paterna
Luís
Guimarães
(1845-1898)
Como
a ave que volta ao ninho antigo
depois
de um longo e tenebroso inverno,
eu
quis também rever o lar paterno,
o
meu primeiro e virginal abrigo.
Entrei.
Um gênio carinhoso e amigo,
o
fantasma talvez do amor materno,
tomou-me
as mãos – olhou-me grave e terno,
e,
passo a passo, caminhou comigo.
Era
esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
em
que da luz noturna à claridade,
minhas
irmãs e minha mãe... O pranto
jorrou-me
em ondas... Resistir quem há-de?
Uma
ilusão gemia em cada canto,
chorava
em cada canto uma saudade.
Cadáver
de
virgem
Luís
Delfino
(1834-1910)
Estava
no caixão como num leito,
palidamente
fria e adormecida;
as
mãos cruzadas sobre o casto peito,
e
em cada olhar sem luz um sol sem vida.
Pés
atados com fita em nó perfeito,
de
roupas alvas de cetim vestida,
o
torso duro, rígido, direito,
a
face calma, lânguida, abatida...
O
diadema das virgens sobre a testa,
níveo
lírio entre as mãos, toda enfeitada,
mas
como noiva que cansou da festa...
Por
seis cavalos brancos arrancada,
onde
vais tu dormir a longa sesta
na
mole cama em que te vi deitada?
Profissão
de
fé
Carvalho
Júnior
(1855-1879)
Odeio
as virgens pálidas, cloróticas,
beleza
de missal que o romantismo
hidrófobo
apregoa em peças góticas,
escritas
nuns acessos de histerismo.
Sofismas
de mulher, ilusões óticas,
raquíticos
abortos de lirismo,
sonhos
de carne, compleições exóticas,
desfazem-se
perante o realismo.
Não
servem-me esses vagos ideais
da
fina transparência dos cristais,
almas
de santa e corpo de alfenim.
Prefiro
a exuberância dos contornos,
as
belezas da forma, seus adornos,
a
saúde, a matéria, a vida enfim.
Eterna
dor
Artur
Azevedo
(1855-1908)
Já
te esqueceram todos neste mundo...
Só
eu, meu doce amor, só eu me lembro
daquela
escura noite de setembro
em
que da cova te deixei no fundo.
Desde
esse dia um látego iracundo
açoitando-me
está, membro por membro.
Por
isso que de ti não me deslembro,
nem
com outra te meço ou te confundo.
Quando,
entre os brancos mausoléus, perdido,
vou
chorar minha acerba desventura,
eu
tenho a sensação de haver morrido!
E
até, meu doce amor, se me afigura,
ao
beijar o teu túmulo esquecido,
que
beijo a minha própria sepultura!
Cansaço
Filinto
de Almeida
(1857-1945)
A
velhice é cansaço... E esse cansaço
não
nos vem de trabalho ou movimento...
O
que ora faço é demorado e lento
e
acho malfeito o pouco que ainda faço.
Tudo
me cansa: até o pensamento!
Já
pouquíssimo ando e arrasto o passo...
quase
sempre dorminte ou sonolento,
vivo
uma triste vida de madraço.
Nunca
fui mandrião nem calaceiro,
nem
também muito ativo, é bem que o diga,
mas
domei sempre a inércia, sobranceiro.
Agora,
a própria inércia me castiga,
pois
se acaso repouso um dia inteiro
esse
mesmo repouso me fatiga!
A
vingança
da
porta
Alberto
de Oliveira
(1857-1937)
Era
um hábito antigo que ele tinha:
entrar
dando com a porta nos batentes.
-
Que te fez esta porta? – a mulher vinha
e
interrogava. Ele, cerrando os dentes:
-
Nada! Traze o jantar! – Mas à noitinha
calmava-se;
feliz, os inocentes
olhos
revê da filha, a cabecinha
lhe
afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.
Uma
vez, ao tornar à casa, quando
Erguia
a aldraba, o coração lhe fala:
-
Entra mais devagar... – Pára, hesitando...
Nisto
nos gonzos range a velha porta,
ri-se,
escancara-se. E ele vê na sala
A
mulher como doida e a filha morta.
Atração
e
repulsa
Adelino
Fontoura
(1859-1884)
Eu
nada mais sonhava nem queria
que
de ti não viesse, ou não falasse;
e
como a ti te amei, que alguém te amasse
coisa
incrível até me parecia.
Uma
estrela mais lúcida eu não via
que
nesta vida os passos me guiasse,
e
tinha fé, cuidando que encontrasse,
após
tanta amargura, uma alegria.
Mas
tão cedo extinguiste este risonho,
este
encantado e deleitoso engano,
que
o bem que achar supus, já não suponho.
Vejo,
enfim, que és como um peito desumano;
se
fui té junto a ti de sonho em sonho,
voltei
de desengano em desengano.
Soneto
B.
Lopes
(1859-1916)
Este
amor delirante, cuja fama
na
cidade e no campo, em toda parte,
em
vibrações de festa e a centros de arte
o
clarim do meu verso alto proclama;
este
amor, cuja luta em que se inflama,
nem
lampejos de gládio às mãos de Marte,
torre
dourada, olímpico baluarte,
é
todo, apenas, de mistério e lama!
Miséria,
a minha, de chorar, se acaso
nas
torturas do inferno em que me abraso,
tu
não me queres aos teus pés de rojo;
lama,
da tua essência e do teu nada,
pelas
mãos da volúpia trabalhada...
lama,
que só a mim não causa nojo!
As
pombas
Raimundo
Correia
(1860-1911)
Vai-se
a primeira pomba despertada...
Vai-se
outra mais... mais outra... enfim dezenas
de
pombas vão-se dos pombais, apenas
raia,
sanguínea e fresca, a madrugada...
E
à tarde, quando a rígida nortada
sopra,
aos pombais de novo elas, serenas,
ruflando
as asas, sacudindo as penas,
voltam
todas em bando e em revoada...
Também
dos corações onde abotoam,
os
sonhos, um por um, céleres voam,
como
voam as pombas dos pombais;
No
azul da adolescência as asas soltam,
fogem...
Mas aos pombais as pombas voltam,
e
eles aos corações não voltam mais...
O
monge
Raimundo
Correia
(1860-1911)
“O
coração da infância”, eu lhe dizia,
“é
manso.” E ele me disse: “Essas estradas,
quando,
novo Eliseu, as percorria,
as
crianças lançavam-me pedradas...”
Falei-lhe,
então, na glória e na alegria;
e
ele – alvas barbas longas derramadas
no
burel negro – o olhar somente erguia
às
cérulas regiões ilimitadas...
Quando
eu, porém, falei no amor, um riso
súbito
as faces do impassível monge
iluminou...
Era o vislumbre incerto,
era
a luz de um crepúsculo indeciso
entre
os clarões de um sol que já vai longe
e
as sombras de uma noite que vem perto!...
Via
Láctea – XIII
Olavo
Bilac
(1865-1918)
-
“Ora (direis” ouvir estrelas! Certo
perdeste
o senso!” E eu vos direi, no entanto,
que,
para ouvi-las, muita vez desperto
e
abro as janelas, pálido de espanto...
E
conversamos toda a noite, enquanto
A
Via-Láctea, como um pálio aberto,
cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
inda
as procuro pelo céu deserto.
Direis
agora: “Tresloucado amigo!
Que
conversas com elas? Que sentido
tem
o que dizem, quando estão contigo?”
E
eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois
só quem ama pode ter ouvido
capaz
de ouvir e de entender estrelas.”
Velho
tema I
Vicente
de Carvalho
(1866-1924)
Só
a leve esperança, em toda a vida,
disfarça
a pena de viver, mais nada;
nem
é mais a existência, resumida,
que
uma grande esperança malograda.
O
eterno sonho da alma desterrada,
sonho
que a traz ansiosa e embevecida,
é
uma hora feliz, sempre adiada
e
que não chega nunca em toda a vida.
Essa
felicidade que supomos,
árvore
milagrosa que sonhamos
toda
arreada de dourados pomos,
existe,
sim: mas nós não a alcançamos
porque
está sempre apenas onde a pomos
e
nunca a pomos onde nós estamos.
Nihil
Guimarães
Passos
(1867-1909)
Sem
aos outros mentir, vivi meus dias
desditosos
por dias bons tomando,
das
pessoas alegres me afastando
e
rindo às outras mais do que eu sombrias.
Enganava-me
assim, não me enganando;
fiz
dos passados males alegrias
do
meu presente e das melancolias
sempre
gozos futuros fui tirando.
Sem
ser amado, fui feliz amante;
imaginei-me
bom, culpado sendo;
e,
se chorava, ria ao mesmo instante.
E
tanto tempo fui assim vivendo,
de
enganar-me tornei-me tão constante,
que
hoje nem creio no que estou dizendo.
Os
cisnes
Júlio
Salusse
(1872-1948)
A
vida, manso lago azul algumas
vezes,
algumas vezes mar fremente,
tem
sido, para nós, constantemente,
um
lago azul, sem ondas, sem espumas.
Sobre
ele, quando, desfazendo as brumas
matinais,
rompe um sol vermelho e quente,
nós
dois vagamos, indolentemente,
como
dois cisnes de alvacentas plumas.
Um
dia, um cisne morrerá, por certo:
quando
chegar esse momento incerto,
no
lago, onde talvez a água se tisne,
que
o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca
mais cante, nem sozinho nade,
nem
nade nunca ao lado de outro cisne!
Rústica
Francisca
Júlia
(1874-1920)
Da
casinha, em que vive, o reboco alvacento
reflete
o ribeirão na água clara e sonora.
Este
é o ninho feliz e obscuro em que mora;
além,
o seu quintal; este, o seu aposento.
Vem
do campo, a correr; e úmida do relento,
toda
ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
que
parece trazer consigo, lá de fora,
na
desordem da roupa e do cabelo, o vento...
E
senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
com
seus olhos azuis onde a inocência bóia;
nessa
meia penumbra e nesse ambiente morno.
Pegando
da costura à luz da clarabóia,
põe
na ponta do dedo em feitio de adorno,
o
seu lindo dedal com pretensão de jóia.
Tarde
na praia
Emílio
de Menezes
(1866-1918)
Quando,
à primeira vez, lhe vi a grandeza,
foi
nos tempos da longe meninice.
E
quedei-me à mudez de quem sentisse
a
alma de pasmos e terrores presa.
Depois,
na mocidade, a olhá-lo, disse:
é
moço o mar na força e na beleza!
Mas,
ao dia apagado e à noite acesa,
hoje
o sinto entre as brumas da velhice.
Distanciado
de escarpas e barrancos,
vejo-o
morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo
das
grandes fúrias e os hostis arrancos.
E,
ao contemplá-lo assim, tristonho digo,
vendo-lhe,
à espuma, os meus cabelos brancos:
o
velho mar envelheceu comigo!
Se
eu fosse Deus...
Martins
Fontes
(1884-1937)
Se
eu fosse Deus seria a vida um sonho,
nossa
existência um júbilo perene!
nenhum
pesar que o espírito envenene
empanaria
a luz do céu risonho!
Não
haveria mais: o adeus solene.
A
vingança, a maldade, o ódio medonho,
e
o maior mal, que a todos anteponho,
a
sede, a fome da cobiça infrene!
Eu
exterminaria a enfermidade,
todas
as dores da senilidade,
e
os pecados mortais seriam dez...
A
criação inteira alteraria,
porém,
se eu fosse Deus, te deixaria
exatamente
a mesma que tu és!
Retrospecto
Humberto
de Campos
(1886-1934)
Vinte
e seis anos, trinta amores: trinta
vezes
a alma de sonhos fatigada,
e,
ao fim de tudo, como ao fim de cada
amor,
a alma de amor sempre faminta!
Ó
mocidade que foges! Brada
aos
meus ouvidos teu futuro, e pinta
aos
meus olhos mortais, com toda a tinta,
os
remorsos da vida dissipada!
Derramo
os olhos por mim mesmo... E, nesta
muda
consulta ao coração cansado,
que
é que vejo? que sinto? que me resta?
Nada:
ao fim do caminho percorrido,
o
ódio de trinta vezes ter jurado
e
o horror de trinta vezes ter mentido!
Fase simbolista
Acrobata
da dor
Cruz e Sousa
(1851-1898)
Gargalha, ri, num
riso de tormenta,
como um palhaço
que, desengonçado,
nervoso, ri, num
riso absurdo, inflado
de uma ironia e de
uma dor violenta.
Da gargalhada
atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e
colvulsionado
salta, gavroche,
salta clown, varado
pelo estertor dessa
agonia lenta...
Pedem-se bis e um
bis não se despreza!
Vamos! Retesa os
músculos, retesa
nessas macabras
piruetas d’aço...
E embora caias
sobre o chão, fremente,
Afogado em teu
sangue estuoso e quente,
ri! Coração,
tristíssimo palhaço.
Triunfo supremo
Cruz e Sousa
(1851-1898)
Quem anda pelas
lágrimas perdido,
sonâmbulo dos
trágicos flagelos,
é quem deixou para
sempre esquecido
o mundo e os fúteis
ouropéis mais belos!
É quem ficou do
mundo redimido,
expurgado dos
vícios mais singelos
e disse a tudo o
adeus indefinido
e desprendeu-se dos
carnais anelos!
É quem entrou por
todas as batalhas
as mãos e os pés e
o flanco ensanguentado,
amortalhado em
todas as mortalhas.
Quem florestas e
mares foi rasgando
e entre raios,
pedradas e metralhas,
ficou gemendo, mas
ficou sonhando!
Emparedado
Araújo Figueiredo
(1864-1927)
Por planície e
aspérrimas montanhas
andei errando como
um beduíno,
e contei ao luar o
meu destino,
velado por dragões
de atrás entranhas.
E a ti, ó sol, que
de purezas banhas
os campos verdes,
num clarão divino,
contei, também,
chorando, o desatino
das minhas ânsias
trágicas, estranhas.
Mas não contei ao
mar as minhas ânsias,
ao largo mar
perdido nas distâncias,
para não vê-lo,
desta vez, cavado.
Pois esse mar é um
coração doente,
igual ao meu, e
vive eternamente,
eternamente triste
e emparedado.
Corre mais
que uma vela...
Emiliano Perneta
(1866-1921)
Corre mais que uma
vela, mais depressa
ainda mais depressa
do que o vento,
corre como se fosse
a treva espessa
do tenebroso véu do
esquecimento.
Eu não sei de
corrida igual a essa:
são anos e parece
que é um momento;
corre, não cessa de
correr, não cessa,
corre mais do que a
luz e o pensamento...
É uma corrida doida
essa corrida,
mais furiosa do que
a própria vida,
mais veloz que as
notícias infernais...
Corre mais
fatalmente do que a sorte,
corre para a
desgraça e para a morte...
Mas que queria que
corresse mais!
Morte póstuma
Nestor Vítor
(1868-1932)
Et vraiment quand
la mort viendra que reste-t-il?
P. Verlaine
Desses nós vemos:
lá se vão na vida,
olhos vagos,
sonâmbulos, calados;
o passo é a
inconstância repetida,
e os sons que têm
são como que emprestados.
– Dia de luz. –
Respiração contida
para encontrá-los
despreocupados,
aí vem a morte,
estúpida e bandida,
rangendo em seco os
dentes descarnados.
Mas embalde ela
chega, embalde os chama:
ali não acha nem de
longe aqueles
grandes assombros
que aonde vai derrama!
E abre espantada os
cavos olhos tortos:
vê que se eles têm
os olhos vítreos, que eles...
Eles já estão há
muito tempo mortos!
Meu casal
Mário Pederneiras
(1868-1915)
Fica distante da
cidade e em frente
à remansosa paz de
uma enseada
esta dos meus
romântica morada,
que olha de cheio
para o Sol nascente.
Árvores dão-lhe a
sombra desejada
pela calma feição
da minha gente,
e ela toda se
ajusta ao tom dolente
das cantigas que o
Mar lhe chora à entrada.
Lá dentro o teu
olhar de calmos brilhos,
todo o meu bem e
todo o meu empenho,
e a sonora alegria
dos meus filhos.
Outros que tenham
com mais luxo o lar,
que a mim me basta,
Flor, o que aqui tenho,
árvores, filhos,
teu amor e o mar.
Hão de chorar por
ela
os cinamomos...
Alphonsus de
Guimaraens
(1870-1921)
Hão de chorar Poe
ela os cinamomos,
murchando as flores
ao tombar do dia.
Dos laranjais hão
de cair os pomos,
lembrando-se
daquela que os colhia.
As estrelas dirão:
“Ai! nada somos,
pois ela se morreu
silente e fria...”
E pondo os olhos
nela como pomos,
hão de chorar a
irmã que lhes sorria.
A lua, que lhe foi
mãe carinhosa,
que a viu nascer e
amar, há de envolvê-la
entre lírios e
pétalas de rosa.
Os meus sonhos de
amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão
no azul ao vê-la,
Pensando em mim:
“Por que não vieram juntos?”
Quando eu for bem
velhinho,
bem velhinho...
Alphonsus de
Guimaraens
(1870-1921)
Quando eu for
velhinho, bem velhinho,
- Não tarda muito,
não, meus companheiros!
Vós haveis de
florir de jasmineiros
a alameda final do
meu caminho.
Deitem-me flores,
vistam-me de linho
da cor dos sonhos
meus aventureiros,
e que eu fique a
rezar dias inteiros,
depois de feito o
meu caixão de pinho.
Como o aroma sutil
de um incensário,
minh’alma irá
galgando lentamente
a impiedosa ladeira
do Calvário...
Pobre ancião!
chegaste enfim ao poente.
Olha o que foste,
doce visionário,
e fecha os olhos
como um anjo doente!
Minha Senhora,
o amor...
Azevedo Cruz
(1870-1905)
... degenerou, por
fim, numa palavra falsa,
e hoje já não é
mais uma alucinação;
tudo o que doura e
o veste e o transfigura e o realça
da fantasia vem,
nunca do coração!
É uma frase feliz
no delírio da valsa,
uma chama no olhar,
um aperto de mão...
Um capricho, uma
flor, uma luva descalça
que alguém deixou
cair e que se ergue do chão.
Disse-lhe isto e
esperei. Um silêncio aflitivo,
longo e soturno
como os torvos pesadelos,
pairou no espaço
como um ponto sobre um i!
Dormi; quando
acordei, vi-me enterrado, vivo,
dentro da noite má
dos seus negros cabelos,
em cuja cerração
quase que me perdi!...
Súplica
Auta de Souza
(1876-1901)
Se tudo foge e tudo
desaparece,
se tudo cai ao
vento da Desgraça,
se a vida é o sopro
que nos lábios passa
gelando o ardor da
derradeira prece;
se o sonho chora e
geme e desfalece
dentro do coração
que o amor enlaça,
se a rosa murcha
inda em botão, e a graça
da moça foge quando
a idade cresce;
se Deus transforma
em sua lei tão pura
a dor das almas que
o ideal tortura
na demência feliz
de pobres loucos...
se a água do rio
para o oceano corre,
se tudo cai,
Senhor! Por que não morre
a dor sem fim que
me devora aos poucos?
Vida obscura
Saturnino de
Meirelles
(1878-1906)
Como um lírio que
nasce e que fenece
por entre as rochas
de uma grota escura,
tu foste assim do
berço à sepultura
com um sorriso de
anjo que adormece.
Não se ouviu de
teus lábios uma prece
que deixasse do
mundo uma censura.
Foste mesmo uma
rosa de ternura
que por entre os
espinhos estremece.
Levaste assim
contigo o teu segredo,
como se fosse uma
harpa não tocada
ou uma flor nascida
num degredo.
Foste só uma pálida
esperança,
uma saudade nunca
desvendada,
um sonho muito vago
de criança.
Vênus
Maranhão Sobrinho
(1879-1915)
Quando o seu corpo
à flor das ondas veio
guirlandado de
espumas e sargaços,
de tentações a vaga
encheu-lhe o seio
e a sirte de
traições encheu-lhe os braços.
Por todo o mar
houve um supremo anseio,
quase humano, de
beijos e de abraços.
O sol, de luz e de
calor mais cheio,
fulgiu mais alto
nos celestes paços!
Algas e espumas ,
sem querer, teceram,
juntas, um berço de
ideal cambraia,
e o seu corpo de
aurora receberam...
... Nunca o mar
vira tão celeste flor!
Quando o seu corpo
foi beijar a praia
a própria rocha
estremeceu de amor!
Pulvis
Durval de Morais
(1882-1948)
Homem, venho do pó
fecundo e miserando,
como a flor da
lagoa impura e deletéria,
e pós será meu
corpo airoso e leve, quando
a vida abandonar-me
ao seio da Matéria!
Sou feito de poeira
e feito de miséria,
e, sonhando o
esplendor de régias pompas, ando
como se fosse um
sol pela amplidão sidérea,
como se fosse um
deus o eterno Olimpo entrando!
Alguns anos...
alguém, depois do meu traspasse,
pisará... – sem
pensar que pisa na poeira,
meus olhos, minhas
mãos, meus lábios, minha face!...
... E à luz do sol
poente, e à luz das alvoradas,
quando o vento
rufar sua marcha guerreira,
minha alma feita em
pó voará pelas estradas!...
Poeta fui
José de Abreu
Albano
(1882-1923)
Poeta fui e do
áspero destino
senti bem cedo a
mão pesada e dura.
Conheci mais
tristeza que ventura
e sempre andei
errante e peregrino.
Vivi sujeito ao
doce desatino
que tanto engana,
mas tão pouco dura;
e ainda choro o
rigor da sorte escura,
se nas dores
passadas imagino.
Porém, como me
agora vejo isento
dos sonhos que
sonhava noite e dia,
e só com saudades
me atormento;
entendo que não
tive outra alegria
nem nunca outro
qualquer contentamento
senão de ter
cantado o que sofria.
Saudade
Da Costa e Silva
(1885-1950)
Saudade – olhar de
minha mãe rezando
e o pranto
deslizando em fio...
Saudade! Amor da
minha terra... O rio
cantigas de águas
claras soluçando.
Noites de junho. O
caboré com frio,
ao luar, sobre o
arvoredo, piando, piando...
E à noite as folhas
lívidas cantando
a saudade infeliz
de um sol de estio.
Saudade – asa de
dor do Pensamento!
Gemidos vãos de
canaviais ao vento...
Ai! mortalhas de
neve sobre a serra.
Saudade – o
Parnaíba – velho monge
as barbas brancas
alongando... E ao longe
o mugido dos bois
da minha terra...
Zero
Pedro Kilkerry
(1885-1917)
Belo Amor, a olhar
da Alma... E o Ódio é fusco! E é vesga a Inveja
por que atrás da
Ilusão, na vontade tem asas?
Por que, no orgulho
da Obra, após o do Eu, te abrasas,
se a Morte – Ursa
polar – invisível, fareja?
Homem-restos de
Raça, e corres tu e atrasas
esmagado de um pé
de deus, que te não veja
nem a dor que em
teu peito, um grande Sol, dardeja...
Oh! Os Sonhos caem,
como as pedras, como as casas...
Tudo se acabará! No
futuro, espreitando,
a figura do Caos,
sinistramente ansiada,
por um Como é que
espera e a tragédia de um Quando...
E comido do Frio ou
do Fogo comido,
o Mundo há de rolar
- um Zero desmedido –
tragado pela boca
espantosa do Nada!
Crianças
Rodrigues de Abreu
(1897-1927)
Somos duas
crianças! E bem poucas
no mundo há como
nós: pois minto e mentes
se te falo e me
falas; e bem crentes
somos de nos
magoar, abrindo as bocas...
Mas eu bem sinto,
em teu olhar, as loucas
afeições, que me
tens e também sentes,
em meu olhar, as
proporções ingentes
do meu amor, que,
em teu falar, há poucas!
Praza aos céus que
isto sempre assim perdure:
que a voz engane no
que o olhar revela;
que jures não amar,
que eu também jure...
Mas que sempre, ao
fitarmo-nos, ó bela,
Penses: “Como ele
mente” − e que eu murmure:
“quanta mentira têm
os lábios dela!"
Fase pré-modernista
Idealismo
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
Falas de amor, e eu
ouço tudo e calo!
O amor na
Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que
na minha lira
de amores fúteis
poucas vezes falo.
O amor! Quando
virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor
que a Humanidade inspira
é o amor do
sibarita e da hetaíra,
da Messalina e de
Sardanapalo?!
Pois é mister que,
para o amor sagrado,
o mundo fique
imaterializado
- alavanca desviada
do seu fulcro –
e haja só amizade
verdadeira
duma caveira para
outra caveira,
do meu sepulcro
para o teu sepulcro?!
Vozes da morte
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
Agora, sim! Vamos
morrer, reunidos,
tamarindo de minha
desventura,
tu, com o
envelhecimento da nervura,
eu, com o
envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a
noite dos Vencidos!
E a podridão, meu
velho! E essa futura
ultrafatalidade de
ossatura,
a que nos acharemos
reduzidos!
Não morrerão,
porém, tuas sementes!
E assim, para o
Futuro, em diferentes
florestas, vales,
selvas, glebas, trilhos,
na multiplicidade
dos teus ramos,
pelo muito que em
vida nos amamos,
depois da morte,
inda teremos filhos!
Minha alma é uma
casa abandonada
Amadeu Amaral
(1875-1929)
Minha alma é uma
casa abandonada
por cujos
tenebrosos corredores
volteia a ronda
volatizada
dos espectros de
mortos moradores.
Um dia a esta
mansão mal-assombrada,
afugentando a treva
e seus horrores,
entraste – alegre
aparição alada −,
num explodir de
claridade e olores;
mas de pronto
fugiste, e hoje, silente,
esconde a velha
casa à luz do dia
as mesmas sombras,
que volteiam juntas...
Ah! Terei de
guardar eternamente
na solidão desta
alma escura e fria
estas saudades de
ilusões defuntas!
Aspiração
Hermes Fontes
(1888-1930)
Eu quis amar, pelo
prazer sereno
de amar, sem a
ambição de ser amado:
sacrificar-me, como
o Nazareno
− rolar do alto de
um grande apostolado.
Quis dar meu sangue
virgem, por ameno
bálsamo ao
lazarento e ao deserdado...
Mas vi que é só
mentira e é só veneno
tudo o que, um dia,
me haja emocionado!
E vejo que a alma
apenas é, na vida,
a inteligência
efêmera, intermédia
entre a carne que
pede e a que é pedida!
E – alma que sou,
por último castigo –
fujo ao Mundo, e
definho, na tragédia
de me isolar, sem
ser feliz comigo!...
História antiga
Raul de Leoni
(1895-1926)
No meu grande
otimismo de inocente,
eu nunca soube por
que foi... um dia,
ela me olhou
indiferentemente,
perguntei-lhe por
que era... Não sabia...
Desde então,
transformou-se, de repente,
a nossa intimidade
correntia
em saudações de
simples cortesia
e a vida foi
andando para frente...
Nunca mais nos
falamos... vai distante
Mas, quando a vejo,
há sempre um vago instante
em que seu mudo
olhar no meu repousa,
e eu sinto, sem no
entanto compreendê-la,
que ela tenta
dizer-me qualquer cousa,
mas que é tarde demais
para dizê-la...
PORTUGAL
Fase
clássica
O sol é grande,
caem coa calma as
aves
Sá de Miranda
(1481-1558)
O sol é grande,
caem coa calma as aves,
do tempo em tal
sazão, que sói ser fria;
esta água que
d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de
cuidados graves.
Ó cousas, todas
vãs, todas mudaves,
qual é tal coração
qu’em vós confia?
Passam os tempos
vai dia trás dia,
incertos muito mais
que ao vento as naves.
Eu vira já aqui
sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi
tanta verdura,
as aves todas
cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo;
e, de mestura,
também mudando-m’eu
fiz doutras cores:
e tudo o mais
renova, isto é sem cura!
Tanto de meu estado
me acho incerto...
Luís de Camões
(1524-1580)
Tanto de meu estado
me acho incerto,
que em vivo ardor
tremendo estou de frio;
sem causa,
juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco
e nada aperto.
É tudo quanto sinto
um desconcerto;
da alma um fogo me
sai, da vista um rio;
agora espero, agora
desconfio,
agora desvario,
agora acerto.
Estando em terra,
chego ao céu voando,
numa hora acho mil
anos, e é de jeito
que em mil anos não
posso achar uma hora.
Se me pergunta
alguém por que assim ando,
respondo que não
sei; porém suspeito
que só porque vos
vi, minha Senhora.
Sete anos
de pastor Jacob
servia...
Luís de Camões
(1524-1580)
Sete anos de pastor
Jacob servia
Labão, pai de
Raquel, serrana bela;
mas não servia ao
pai, servia a ela,
e a ela só por
prêmio pretendia.
Os dias, na
esperança de um só dia,
passava,
contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando
de cautela,
em lugar de Raquel
lhe dava Lia.
Vendo o triste
pastor que com enganos
lhe fora assim
negada a sua pastora,
como se a não
tivera merecida,
começa de servir
outros sete anos,
dizendo: - Mais
servira, se não fora
para tão longo amor
tão curta a vida!
Aquela, cujo nome
a meus escritos...
Antônio Ferreira
(1528-1569)
Aquela, cujo nome a
meus escritos
que a meu amor dará
melhor ventura,
toda a virtude,
toda a formosura,
qu’após si leva os
olhos, e os espíritos,
aquela, branda em
tudo, só aos gritos
meus surda, áspera
aos rogos, a Amor dura,
podia com sorriso,
u’a brandura
d’olhos curar meu
mal, ornar meus ditos.
Mas que dará de si
u’a estéril veia?
Um desprezado amor?
U’a cruel chama?
Senão desconcerto e
triste pranto?
Quem de tristezas
vive, só me leia:
cante a quem
inspire Amor mais doce canto,
busco piedade só,
não glória, ou fama.
Quanto cuido,
senhora,
quanto escrevo...
Pero de Andrade
Caminha
(152?-1589)
Quanto cuido,
senhora, quanto escrevo,
tudo em vossos
fermosos olhos leio,
neles, ante quem
tudo é escuro e feio,
aprendo e vejo como
amar-vos devo.
Vejo que ao vosso
amor todo me devo,
mas não vos sei
amar, e assi me enleio
que não sei se vos
amo ou se o receio,
e a julgar em mim
isto não me atrevo.
Em vós cuido, em
vós falo o dia e ora,
mouro por ver-vos,
ir-vos ver não ouso,
por não ver quanto
mais devo do que amo;
ó sol e ó sombra o
vosso nome chamo,
fora destes
cuidados não repouso;
se isto é amor, vós
o julgai, senhora!
As plantas
rindo estão...
Diogo Bernardes
(1530-1605)
As plantas rindo
estão, estão vestidas
de verde variado de
mil cores;
cantam tarde e
manhã os seus amores
as aves, que d’Amor
andam vencidas.
As neves, já nos
montes derretidas,
regam nos baixos
vales novas flores;
alegram as cantigas
dos pastores
as Ninfas pelos
bosques escondidas.
O tempo, que nas
cousas pode tanto,
a graça, que por
ele a terra perde,
lhe torna com mais
graça e formosura.
Só pera mim nem
flor nem erva verde,
nem água clara tem,
nem doce canto,
que tudo falta a
quem falta ventura.
Gastando se me vai
de lanço a lanço...
Fernão Álvares do
Oriente
(1540-1599)
Gastando se me vai
de lanço a lanço
a vida, que a mor
pressa vai correndo.
O tempo em
variedades mil despendo
té que à vida
m’outorgue o Céu remanso.
Trabalho, quanto
posso, mas alcanço
o contrário
daquilo, que pretendo:
qu’então me foi
descanso falecendo,
quando cuidei, que
tinha mais descanso.
Vendo-me pois assim
tão peregrina,
metida no sertão
destes enleios
incerta entrego as
rédeas à ventura.
Qu’outro cuidado,
que alma ao Céu m’inclina,
de novo me propõe
por vários meios
a quanto se dispõe,
quem se aventura.
Fermoso Tejo meu,
quão diferente...
Francisco Rodrigues
Lobo
(1579-1621)
Fermoso Tejo, quão
diferente
te vejo e vi, me
vês agora e viste:
turvo te vejo a ti,
tu a mim triste,
claro te vi eu já,
tu a mim contente.
A ti foi-te
trocando a grossa enchente
a quem teu largo
campo não resiste:
a mim trocou-me a
vista em que consiste
o meu viver
contente ou descontente.
Já que somos no mal
participantes,
sejamo-lo no bem.
Oh, quem me dera
que fôramos em tudo
semelhantes!
Mas lá virá a
fresca Primavera:
tu tornarás a ser
quem eras dantes,
eu não sei se serei
quem dantes era.
Fase barroca
A uns noivos que se
foram receber,
levando ele os
vestidos emprestados,
e indo ela muito
doente e chagada
D. Tomás de Noronha
(? -1651)
Saiu a noiva muito
bem trajada,
saiu o noivo muito
bem trajado,
o noivo em tudo
muito conchegado,
a noiva em tudo
muito conchagada.
Ela uma anágoa
muito bem bordada,
ele um capote muito
bem bordado;
do mais do noivo
tudo de emprestado,
do mais da noiva
tudo de emprastrada.
Folgamos todos os
amigos seus
de ver o noivo
assim com tanto brio,
de ver a noiva
assim com tantos brios.
Disse-lhe o cura
então: - Confia em Deus.
E respondeu o
noivo: - E eu confio.
E respondeu a
noiva: - E eu com fios.
Vida que não acaba
de acabar-se...
Violante do Céu
(1602-1693)
Vida que não acaba
de acabar-se,
chegando já de vós
a despedir-se,
ou deixa por
sentida de sentir-se,
ou pode de mortal
acreditar-se.
Vida que já não
chega a terminar-se,
pois chega já de
vós a dividir-se,
ou procura vivendo
consumir-se,
ou pretende matando
eternizar-se.
O certo é, Senhor,
que não fenece,
antes no que padece
se reporta,
por que não se
limite o que padece.
Mas, viver entre
lágrimas, que importa?
Se a vida que entre
ausências permanece
é só vida ao pesar,
ao gosto morta?
Contra
as fadigas do
desejo
D. Francisco Manuel
de Melo
(1608-1666)
E quem me compusera
do desejo,
que grande bem, que
grande paz me dera!
Ou, por força, com
ele hoje fizera,
que me não vira, em
quanto assi me vejo!
O que eu reprovo,
elege; e o que eu elejo,
ele o reprova, como
se tivera
sortes a seu
mandar, em que escolhera,
contra as quais só
por ele em vão pelejo.
Anda a voar do
árduo ao impossível:
e para me perder de
muitos modos,
finge que a honra é
certa no perigo.
Pois se nunca
pretende o que é possível,
como posso esperar
ter paz com todos,
quando não posso
nem ter paz comigo?!
A uma despedida
Antônio Barbosa
Bacelar
(1610-1663)
Agora, que o
silêncio nos convida,
discursemos um
pouco, ó pensamento;
demos um desafogo
ao sofrimento,
pois lhe demos a
pena sem medida.
Enfim, chegou
aquela despedida
em que, perdido meu
contentamento,
o mais que me ficou
foi meu tormento,
o menos que deixei
foi toda a vida.
Para que era
ficar-me na memória
as lembranças de um
bem tão malogrado?
Falta-me o bem,
faltaram-me as lembranças.
Se verei outra vez
tão doce glória?
Mas ó suave engano,
ó vão cuidado!
Inda eu cuido outra
vez em esperanças!
À vaidade
do mundo
Antônio da Fonseca
Soares
(1631-1682)
É a vaidade, Fábio,
desta vida
rosa que na manhã
lisonjeada
púrpuras mil com
ambição coroada
airosa rompe,
arrasta presumida;
É planta que de
Abril favorecida
por mares de
soberba desatada;
florida galera
empavezada,
sulca ufana, navega
destemida;
É nau, enfim, que
em breve ligeireza,
com presunção de
fênix generosa,
galhardias apresta,
alentos preza.
Mas ser planta,
rosa e nau vistosa
de que importa, se
aguarda sem defesa
penha a nau, ferro
a planta, tarde a rosa?
A um rouxinol
cantando
Francisco de
Vasconcelos
(1665-1723)
Ramalhete animado,
flor do vento,
que alegremente
teus ciúmes choras
tu, cantando teu
mal, teu mal melhoras,
eu, chorando meu
mal, meu mal aumenta.
Eu digo minha dor
ao sofrimento
tu cantas teu pesar
a quem namoras,
tu esperas o bem
todas as horas,
eu tenho qualquer
mal tudo o momento.
Ambos agora estamos
padecendo
por decreto cruel
do deus mínimo;
mas eu padeço mais
só porque entendo.
Que é tão duro e
cruel o meu destino
que tu choras o mal
que estás sofrendo,
eu choro o mal que
sofro e que imagino.
Maior tormento
do alívio
Francisco de Pina e
de Melo
(1695-1773)
Pela sombra de um
bosque se metia,
seguindo o giro de
um inculto atalho;
Fido, um triste
pastor, sem que agasalho
Tenha no desamparo,
em que se via.
Cada vez mais
turbado discorria,
vendo sem esperança
seu trabalho,
cuja história no
tronco de um carvalho,
por ser o último
bem, deixar queria.
Já no tosco papel
as letras grava
a vacilante mão,
quando arrebenta
o pranto, com que a
árvore regava.
Com as águas a
planta mais se aumenta;
e juntamente a dor,
que aliviava
no mesmo desafogo
se acrescenta.
Fase neoclássica
Marília,
alva lua
Correia Garção
(1724-1772)
Três vezes vi,
Marília, de alva lua
cheio de luz o
rosto prateado,
sem que dourasse o
campo matizado
a linda aurora da
presença tua.
Então subindo a
serra calva e nua,
de um íngreme
rochedo pendurado,
os olhos alongando
pelo prado,
chamava-a, mas em
vão, a morte crua.
Ali, comigo vinham
ter pastores,
que meus suspiros
férvidos ouviam,
cortados do alarido
dos clamores.
Tanto que a causa
do meu mal sabiam,
julgando sem
remédio minhas dores,
por não poder me
consolar, fugiam.
De tiranas
lembranças combatido...
Cruz e Silva
(1731-1799)
De tiranas
lembranças combatido
a vida vou
passando; e tal estado
a lembrança me tem
do bem passado,
que antes quisera
nunca haver nascido.
O coração em partes
dividido
corre do peito aos
olhos apressado;
e por mais que o
suspenda violentado,
sai em lágrimas
todo convertido.
Oh se a morte,
vibrando cruelmente
a curva foice, me
roubasse o alento!
Ou ao menos, se o
Fado o não consente,
de todo me faltara
o entendimento!
Pois se a razão
perdesse, juntamente
com ela perderia o
sentimento.
Ao longo de uma
praia
um triste dia
Domingos dos Reis
Quinta
(1728-1770)
Ao longo de uma
praia um triste dia,
já quando a luz do
Sol se desmaiava,
o saudoso Alcino
caminhava
com seus cuidados
só por companhia.
Os olhos pelas
águas estendia,
porque alívio a seu
mal nelas buscava,
e entre os tristes
suspiros que exalava,
em lágrimas banhado
assim dizia:
Os suspiros, as
lágrimas que choro,
levai, ondas,
levai, ligeiro vento,
para onde me
levastes quem adoro.
Oh se podeis ter dó
do meu tormento,
que me torneis o
bem, só vos imploro,
que pusestes em
longo apartamento.
A uma senhora a
quem
o autor chamava Mãe
Filinto Elísio
(1734-1819)
Comigo minha Mãe
brincando um dia
a namorar c’os
olhos me ensinava,
mas Amor que em
seus olhos me esperava
com mil brilhantes
farpas me feria.
De quando em quando
mais formosa ria
porque incapaz do
ensino me julgava.
Porém tanto a lição
me aproveitava
que suspirar por
ela já sabia.
Em poucas horas
aprendi a amá-la.
Ditoso se tal arte
não soubera:
não me custara a
vida não lográ-la.
Certo que aprender
menos melhor era,
pois não soubera
agora desejá-la
nem de tão louco
amor enlouquecê-la.
Pôs-se
o sol...
João Xavier de
Matos
(1730/35-1789)
Pôs-se o sol...
Como já na sombra feia,
do dia pouco a
pouco a luz desmaia!
E a parda mão da
Noite, antes que caia,
de grossas nuvens
todo o ar semeia!
Apenas já diviso a
minha Aldeia;
já do cipreste não
distingo a faia:
tudo em silêncio
está. Só lá na praia
se ouvem quebrar as
ondas pela areia...
Com a mão na face,
a vista ao Céu levanto;
e, cheio de mortal
melancolia,
nos tristes olhos
mal sustenho o pranto;
e, se ainda algum
alívio ter podia,
era ver esta Noite
durar tanto,
que nunca mais
amanhecesse o dia!
Vai,
mísero cavalo...
Nicolau Tolentino
de Almeida
(1741-1811)
Vai, mísero cavalo
lazarento,
pastar longas
campinas livremente;
não percas tempo,
enquanto to consente
de magros cães
faminto ajuntamento.
Esta sela, teu
único ornamento,
para sinal da minha
dor veemente,
de torto prego
ficará pendente,
despojo inútil do
inconstante vento.
Morre em paz, que,
em havendo algum dinheiro,
hei-de mandar, em
honra do teu nome,
abrir em negra
pedra este letreiro:
“Aqui piedoso
entulho os ossos come
do mais fiel, mais
rápido sendeiro,
que fora eterno, a
não morrer de fome”.
Retratar
a tristeza...
Marquesa de Alorna
(1750-1839)
Retratar a tristeza
em vão procura
quem na vida um só
pesar não sente,
porque sempre
vestígios de contente
hão de apar’cer por
baixo da pintura:
Porém eu, infeliz,
que a desventura
o mínimo prazer me
não consente,
em dizendo o que
sinto, a mim somente
parece que compete
esta figura.
Sinto o bárbaro
efeito das mudanças,
dos pesares o mais
cruel pesar,
sinto do que perdi
tristes lembranças;
condenam-me a
chorar e a não chorar,
sinto a perda total
das esperanças,
e sinto-me morrer
sem acabar.
Proposição
das rimas do poeta
Manuel Maria du
Bocage
(1765-1805)
Incultas produções
da mocidade
exponho a vossos
olhos, ó leitores:
vede-as com mágoa,
vede-as com piedade,
que elas buscam
piedade, e não louvores:
Ponderai da Fortuna
a variedade
nos meus suspiros,
lágrimas e amores;
notai dos males
seus a imensidade,
a curta duração de
seus favores:
e, se entre versos
mil de sentimento
encontrardes algum
cuja aparência
indique festival
contentamento,
crede, ó mortais,
que foram com violência
escritos pela mão
do Fingimento,
cantados pela voz
da Dependência.
Achando-se
avassalado
pela formosura de
Jônia
Manuel Maria du
Bocage
(1765-1805)
Enquanto o sábio
arreiga o pensamento
nos fenômenos teus,
oh Natureza,
ou solta árduo
problema, ou sobre a mesa
volve o sutil
geométrico instrumento;
enquanto, alçando a
mais o entendimento,
estuda os vastos
céus, e com certeza
reconhece dos
astros a grandeza,
a distância, o
lugar, o movimento:
enquanto o sábio,
enfim, mais sabiamente
se remonta nas asas
do sentido
à corte do Senhor
onipotente:
eu louco, eu cego,
eu mísero, eu perdido
de ti só trago
cheia, ó Jônia, a mente;
do mais, e de mim
mesmo ando esquecido.
Fase romântica
Ventura
João de Deus
(1830-1896)
O sol na marcha
luminosa voa
lançando à terra
majestoso olhar;
passa cantando quem
o mar povoa,
e a praia abraça
venturoso mar.
No bosque o vento
doce canto entoa,
ouvem-se em coro as
multidões cantar;
que a um só triste
o coração lhe doa,
que eu seja o único
a sofrer, penar!
Por ti, saudade...
de quem vai tão perto
e a quem dos olhos
e das mãos perdi
neste tão ermo,
lúgubre deserto!
Por ti, ventura...
que uma vez senti;
por ti que às vezes
a meu peito aperto
e... o peito sem te
ver a ti!
Fase realista
Lamúrias
João Penha
(1838-1919)
“Que pena! Tenho o
corpo tão bonito,
e nenhum amoroso me
procura!
e, quem sabe?
Talvez à sepultura
eu me vá, de capela
e de palmito!
“Em tempos, um
rapaz muito esquisito,
inda imberbe, mas
lindo de figura,
passava, mas fugiu!
Que desventura:
era da raça dos
Josés do Egipto!
“E os dias vão
passando, sem que veja
a mais ligeira
mutação de cena!
por sobre mim uma
ave negra adeja!
“De corpo tão
bonito, alta e morena
à própria Vênus
causaria inveja,
e assim tão bela...
durmo só! Que pena!”
Uma amiga
Antero de Quental
(1842-1891)
Aqueles que eu
amei, não sei que vento
os dispersou no
mundo, que os não vejo...
Estendo os braços e
nas trevas beijo
visões que a noite
evoca o sentimento...
Outros me causam
mais cruel tormento
que a saudade dos
mortos... que eu invejo...
Passam por mim...
mas como que tem pejo
da minha soledade e
abatimento!
Daquela primavera
venturosa
não resta uma flor
só, uma só rosa...
Todo o vento
varreu, queimou o gelo!
Tu só foste fiel –
tu, como dantes,
inda volves teus
olhos radiantes...
Para ver o meu
mal... e escarnecê-lo!
Parasitas
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
No meio duma
feira, uns poucos palhaços
andavam a mostrar,
em cima dum jumento,
um aborto infeliz,
sem mãos, sem pés, sem braços,
aborto que lhes
dava um grande rendimento.
Os magros
histriões, hipócritas, devassos,
exploravam assim a
flor do sentimento,
e o monstro
arregalava os grandes olhos baços,
uns olhos sem calor
e sem entendimento.
E toda a gente deu
esmola aos tais ciganos:
deram esmolas até
mendigos quase nus.
E eu, ao ver esse
quadro, apóstolos romanos,
eu lembrei-me de
vós, funâmbulos da cruz,
que andais pelo
universo, há mil e tantos anos,
exibindo,
explorando o corpo de Jesus.
Heroísmos
Cesário Verde
(1855-1886)
Eu temo muito o
mar, o mar enorme,
solene,
enraivecido, turbulento,
erguido em
vagalhões, rugindo ao vento;
o mar sublime, o
mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar
rebelde, informe,
de vítimas
famélico, sedento,
e creio ouvir em
cada seu lamento
os ruídos de um
túmulo disforme.
Contudo, num barquinho
transparente,
no seu dorso feroz
vou blasonar,
tufada a vela e
n’água quase assente,
e, ouvindo muito ao
perto o seu bramar,
eu rindo, sem
cuidados, simplesmente,
escarro, com
desdém, no grande mar!
Pálida
e loura...
Antônio Feijó
(1860-1917)
Morreu. Deitada no
caixão estreito,
pálida e loura,
muito loura e fria,
o seu lábio
tristíssimo sorria
como num sonho
virginal...
Lírio que murcha ao
despontar do dia,
foi descansar no
derradeiro leito,
as mãos de neve
erguidas sobre o peito,
pálida e loura,
muito loura e fria...
Tinha a cor da
rainha das baladas
e das monjas
antigas maceradas,
no pequenino
esquife em que dormia...
Levou-a a morte em
sua garra adunca!
e eu nunca mais
pude esquecê-la, nunca!
Pálida e loura,
muito loura e fria...
Fase simbolista
Ao cair
da noite
Eugênio de Castro
(1869-1944)
Numa das margens do
saudoso rio,
contemplo a outra
que sorri defronte:
lá, sob o Sol, que
baixa do horizonte,
verdes belezas,
enlevado, espio.
- Ali (digo eu),
será menos sombrio
o viver que me põe
rugas na fronte...
E, erguendo-me,
atravesso então a ponte,
com meu bordão,
cheio de fome e frio.
Chego. Desilusão!
Da margem verde
eis que o encanto,
de súbito, se perde:
bem mais bela era a
margem que eu deixei!
Quero voltar atrás.
Noite fechada!
E a ponte, pelas
águas destroçada,
por mais que a
procurasse, não a achei!
Ó Virgens
que passais...
Antônio Nobre
(1867-1900)
Ó Virgens que
passais, ao Sol-poente,
pelas estradas
ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma
canção ardente,
que me transporte
ao meu perdido Lar.
Cantai-me, nessa
voz onipotente,
o sol que tomba,
aureolando o Mar,
a fartura da seara
reluzente,
o vinho, a Graça, a
formosura, o luar!
Cantai! Cantai as
límpidas cantigas!
Das ruínas do meu
Lar desenterrai
todas aquelas
ilusões antigas
que eu vi morrer
num sonho, como um ai.
Ó suaves e frescas
raparigas,
adormecei-me nessa
voz... cantai!
Caminho II
Camilo Pessanha
(1867-1926)
Encontraste-me um
dia no caminho
em procura de quê,
nem eu o sei.
− Bom dia,
companheiro, te saudei,
que a jornada é
maior indo sozinho.
É longe, é muito
longe, há muito espinho!
Paraste a repousar,
eu descansei...
Na venda em que
poisaste, onde poisei,
bebemos cada um do
mesmo vinho.
É no monte
escabroso, solitário.
Corta os pés como a
rocha d’um calvário,
E queima como a
areia!... Foi no entanto
que choramos a dor
de cada um...
E o vinho em que
choraste era comum:
tivemos que beber
do mesmo pranto.
Quem poluiu, quem
rasgou
os meus lençóis de
linho...
Camilo Pessanha
(1867-1926)
Quem poluiu, quem
rasgou os meus lençóis de linho,
onde esperei
morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim
exíguo os altos girassóis
quem foi que os
arrancou e os lançou no caminho?
Quem quebrou (que
furor cruel e simiesco!)
a mesa de eu cear –
tábua tosca de pinho?
E me espalhou a
lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o
vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre
mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha
o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o
lume a extinguir-se em breve.
Não venhas mais ao
lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha
mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar
às portas dos casais.
Para quê?
Afonso Lopes Vieira
(1878-1945)
Como quem pára ao
fim duma jornada,
extenuado, exangue,
e foi deixando
o seu sangue no pó
da imensa estrada
por onde vinha, há
muito, caminhando...
E sua vista, de
chorar quebrada,
ao caminho que
andou e vai botando,
e reconhece enfim
que andou pra nada
e pra nada foi que
andou penando...
Assim eu, que
gastei o sentimento,
pus nua a alma e
escrevi com sangue
o que em meus olhos
a tua alma lê,
pergunto ao fim do
áspero tormento:
− Alma que vais
perdida e vais exangue,
Pra que chorastes e
andastes... para quê?
Soneto de Ávila
Antônio Sardinha
(1888-1925)
Sobre as ventanas
do seu velho Paço
o senhor bispo
mandou pôr cortinas.
Não é para rir que
este louvor lhe faço,
porque, em verdade,
não as há mais finas!
No casarão
adormecido e baço
sorriem-se as
ligeiras musselinas.
Oh, quem me dera a
mim deitar o laço
a essas pombas
brancas, pequeninas!
Namoro-as da
muralha longamente,
cuidando ver o teu
perfil ausente,
- cuidando ver-te o
melodioso traço!
E não me esqueço
nunca das cortinas
que o senhor bispo
mandou pôr, tão finas,
sobre as ventanas
do seu velho Paço.
Eu
Florbela Espanca
(1894-1930)
Eu sou aquela que
no mundo anda perdida,
eu sou a que na
vida não tem norte,
sou a irmã do
Sonho, e desta sorte
sou a
crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa
tênue e esvaecida,
e que o destino
amargo, triste e forte,
impele brutalmente
para a morte!
Alma de luto sempre
incompreendida!...
Sou aquela que
passa e ninguém vê...
Sou a que chamam
triste sem o ser...
Sou a que chora sem
saber por quê...
Sou talvez a visão
que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao
mundo pra me ver
e que nunca na vida
me encontrou!
A minha piedade
Florbela Espanca
(1894-1930)
Tenho pena de tudo
quanto lida
neste mundo, de
tudo quanto sente,
daquele a quem
mentiram, de quem mente,
dos que andam pés
descalços pela vida;
Da rocha altiva,
sob o monte erguida,
olhando os Céus
ignotos frente a frente;
dos que não são
iguais a outra gente,
e dos que se
ensangüentam na subida!
Tenho pena de
mim... pena de ti...
De não beijar o
riso de uma estrela...
Pena dessa má hora
em que nasci...
De não ter asas
para ir ver o Céu...
De não ter Esta...
a Outra... e mais Aquela...
De ter vivido, e
não ter sido Eu...
Fase moderna
Último soneto
Mário de Sá
Carneiro
(1890-1916)
Que rosas fugitivas
foste ali:
requeriam-te os
tapetes – e vieste...
- Se me dói hoje o
bem que me fizeste,
é justo, porque
muito te devi.
Em que seda de
afagos me envolvi
quando entraste,
nas tardes que apareceste –
como fui de percal
quando me deste
tua boca a beijar,
que remordi...
Pensei que fosse o
meu o teu cansaço –
que seria entre nós
um longo abraço
o tédio que, tão
esbelta, te curvava...
E fugiste... Que
importa? Se deixaste
a lembrança violeta
que animaste,
onde a minha
saudade a Cor se trava?...
A maior mágoa de
mulher
Marta de Mesquita
da Câmara
(1894-1980)
Cá dentro da
minh’alma de mulher,
alma feita de sonho
e de incerteza,
sedenta de afeição
e de beleza,
quantas coisas
sonhei p’ra te dizer!...
Quantas coisas
sonhei p’ra te escrever!...
Jamais mulher
alguma, com certeza,
cantou com tanto
amor, tanta tristeza,
o bem que desejou
sem nunca o ter!...
Porque a chaga mais
viva, que mais dói,
não é a saudade do
que a vida foi...
Ninguém nos rouba
um doce bem vivido.
A mágoa do que foi
é suportável;
é bem mais funda a
mágoa irreparável
daquilo que pudera,
enfim, ter sido!...
A agulha
António Alves
Martins
(1897-1929)
Houve um tempo em
que mandava
nas cartas que me
escrevia,
uma linha em
companhia
da agulha com que
bordava!
Com minhas mãos a
enfiava:
enfiada, então
partia...
À obra que ela
fazia,
assim, de longe,
ajudava!
Pobre agulha! Nas
mãos dela,
fazia a renda mais
bela,
de maior
habilidade!
E a caminho, cheia
de ânsia,
sobre o cetim da
distância
bordava a nossa
saudade!
Passos da cruz –
XIII
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Emissário de um rei
desconhecido,
eu cumpro informes
instruções de além,
E as bruscas frases
que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro
e anômalo sentido.
Inconscientemente
me divido
entre mim e a
missão que o meu ser tem
e a glória do meu
Rei dá-me desdém
por este humano
povo entre quem lido...
Não sei se existe o
Rei que me mandou.
Minha missão será
eu a esquecer,
Meu orgulho o
deserto em que em mim estou...
Mas há! eu sinto-me
altas tradições
de antes de tempo e
espaço e vida e ser...
Já viram Deus as
minhas sensações...
Olha, Daisy,
quando eu morrer tu
hás-de...
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Olha, Daisy,
quando eu morrer tu hás-de
dizer aos meus
amigos aí de Londres,
que, embora não o
sintas, tu escondes
a grande dor da
minha morte. Irás de
Londres pra York,
onde nasceste (dizes –
que eu nada que tu
digas acredito),
contar àquele pobre
rapazito
que me deu tantas
horas tão felizes
(embora não o
saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem
eu tanto julguei amar,
nada se
importará... Depois vai dar
a notícia a essa
estranha Cecily
que acreditava que
eu seria grande...
Raios partam a vida
e quem lá ande!...
..x..
Seleção muito primorosa. Um bálsamo para o intelecto poder apreciar tais obras... Obrigado pelo trabalho de curadoria e compartilhamento de tais textos!
ResponderExcluirO blog tem que ser enriquecido, pois a poesia, notadamente o soneto, dá nova alma ao povo, que deve amar e conhecer o idioma pátio e seus artífices e artistas.
ResponderExcluirOla, adorei a coleção de sonetos. Muitos ficaram faltando mas não fazem falta alguma nessa seleta de sonetos. Como sonetista que sou e um defensor da moral de dos bons costumes das métricas das cesuras e das rimas, alguns versos estão quebrados, como um de Guerra Junqueiro, e um outro que não me lembro mais... Ambos versos alexandrinos... o do Junqueiro está faltando uma sílaba do primeiro verso, e o outro não consegui contar as 12 sílabas tbm do primeiro verso. sempre dão 13 sílabas. o Amigo deveria revisar essas pequeníssimas falhas. Mas eu adorei. Conheci pelo menos 97 deles, talvez 95... alguns sei de cor até hoje... mas duro mesmo escolher um Camões, um Bilac, um Augusto dos Anos... e tantos outros que firam foram... o Gerra Junqueiro tem alguma coisa de admirável em sonetos, dentro do poema A Morte de Dom João... (Dom Juan) Castro Alves e o soneto Dulce é um primor, bilac se puser todos os sonetos que compôs ainda precisaram mais ainda... e vai por aí... me envie depois seu email que quero enviar a vc uma pequena coleção de meus sonetos... poderá gostar de alguns. TFA eis meu email: esiopoeta@bol.com.br
ResponderExcluirDeveria colocar o Soneto Versos Intimos, Augusto dos Anjos, ele representa muito claro a fase pré moderna em seus elementos cotidianos.
ResponderExcluirGregório de Matos é MARAVILHOSO! no poetar.
ResponderExcluirQue maravilha essa coleção de sonetos. Parabebs!
ResponderExcluirqueria um poema sobre o maranhao pra um trabalhho
ResponderExcluirA luz da sabedoria seja o amor de nossa vida.
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