Faz-se soneto a favor da idealização da forma e contra o transcendentalismo da própria forma
Marcelo Diniz
(Glória eterna ao inventor do soneto. Todavia, malgrado tantos belos sonetos que foram feitos, o mais belo resta ainda a fazer)
Paul Valéry (Varieté)
Tensão, multiplicação, multiplicidade
Aqui vem ao caso a citação de Valéry, menos pelo esteticismo em que ela se implica do que pela lógica potencial em que o soneto é concebido. Essa forma fixa escrita, letrada e recente (8 séculos de idade), como afirma Jacques Roubaud (Soleil du soleil – le sonnet français de Marot à Malherbe. POL: 1990), é presente não somente entre significativos nomes da poesia bem como é a forma em que se realizaram alguns de seus poemas mais representativos desde o século de sua invenção até nossos dias. Roubaud ainda nos diz de um traço específico que a história de forma confirma: seu poder multiplicador. Trata-se de um poder associado tanto ao seu prestígio, à tradição emulatória de seu formalismo, quanto ao descrédito e reprovação desses mesmos valores. Faz-se soneto a favor da idealização da forma, faz-se soneto contra o transcendentalismo da própria forma. No que diz respeito à história do soneto, seu poder multiplicador em muito corresponde às tensões do que cada soneto mobiliza em sua realização.
Neste sentido, vale a menção de um dos projetos
poéticos mais ousados da contemporaneidade no que no que tange o soneto:
a reimpressão recente (Gallimard: 2014) do livro-objeto Cent mille millards de poèmes (1961),
de Raymond Queneau. O livro-objeto consiste em dez sonetos franceses com as
mesmas rimas, cujos versos são cortados na página como linguetas, o que permite
ao leitor a operação comutatória que há de conduzir à leitura imponderável
de 100.000.000.000.000 de sonetos. Trata-se de um projeto que concebe a
forma como potencial maquínico como diz em sua epígrafe retirada do matemático Alan
Mathison Turing: Somente uma máquina pode apreciar um soneto escrito por outra
máquina. A
adoção do soneto em tal projeto explora a tensão entre a finitude da forma
breve e a infinitude de sua reprodutibilidade, não sem ironizar os lugares que
ocupam as categorias de autor e leitor na produção efetiva dos textos. O
leitor, literalmente, opera a produção do que lê, imaginado por quem leu apenas
em sua virtualidade matemática. O soneto, aqui, age como um dispositivo de
virtualidade, se não refratário, em constante tensão com o esteticismo com que
essa forma se canoniza na tradição poética.
Procedimentos em negativo
Pode-se considerar o prisma da tensão, especificamente com o seu
próprio cânone, como sendo um dos traços mais fortes do soneto moderno que o
soneto contemporâneo desdobra segundo a clave da oficina
irritada de Carlos
Drummond de Andrade. Não são poucos os sonetos que hoje reiteram os
procedimentos em negativo do soneto que podem ser conferidos no primeiro soneto
drummondiano publicado em Brejo das Almas, 1934, O soneto da perdida esperança.
Os versos brancos e octassilábicos, a tensão dos enjambements e o tema
conduzido entre o prosaico e o metafísico denotam uma atitude de franca ruptura
com o tratamento de versos decassílabos e as rimas ricas, bem como a temática
da ascese estética do cânone clássico e parnasiano. O efeito de prosa que
produzem os enjambements recorrentes confere à plasticidade da estrutura do
soneto uma discursividade avessa à melopeia tradicional da forma, a ponto de, em
muitos casos, como nesse soneto de Drummond, dar ao leitor a impressão imediata
de não se tratar de um soneto.
É o que se pode observar nos sonetos de Paulo Henriques Brito, por
exemplo, acrescentando um procedimento a mais que parece aprofundar a tensão com
a tradição do soneto como unidade expressiva do gênero lírico. Refiro-me aqui à
série Até segunda
ordem (Trovar
Claro, 1997), em que, os sonetos se desdobram sob a forma
narrativa epistolar. A narrativa se desenrola pela correspondência em uma
linguagem cifrada sugerindo um não dito de contrabandos e fugas, de tal modo
que, se o soneto se evidencia como unidade narrativa, representa uma gama de
acontecimentos fora dele mesmo, dando ao leitor a impressão de ler o fragmento
de uma circunstância que extrapola à própria forma. As rimas encaminham a
engenhosidade, o achado, não no sentido de uma ascese da forma, e sim no
sentido da sátira e paródia da própria forma. O contraste do rigor da forma com
o prosaico e o coloquial resulta no efeito de humor da metalinguagem com que a
forma se dessacraliza.
Esses procedimentos em negativo, a incidência dos enjambements, o
tratamento das rimas em ruído com a melopeia tradicional do soneto, também se
conferem em outras vozes que fazem uso da forma fixa. Lemos em Antonio Cicero o
soneto em redondilhas, em rimas toantes e sem estrofes. A insinuação da prosa
retira a pomposidade de um tema de tradição clássica, expressando menos a
atitude de ruptura com a tradição do que a possibilidade de equilíbrio
entre forma e matéria, clareza e intensidade, concisão e ascese, que revitaliza
a própria dicção clássica na poesia contemporânea. De certo modo, o soneto de
Cicero é um soneto escondido, quase denegado, um soneto esquecido que, todavia,
surpreende a leitura de forma irônica quando flagrado. Aqui, o contraste e o
ruído aparecem atenuados, os procedimentos em negativo atendem ao abrandamento,
quase apagamento, da estrutura do soneto, a fim de revitalizá-lo como
expressão, de concebê-lo em seu elogio.
O mesmo elogio da forma, encontramos também nos sonetos de Nelson
Ascher, embora com procedimento estilístico bem distinto. Frase única,
articulada em versos hexassilábicos conduzidos pelo enjambement extremado da
estrofe à tmese (atenção à rima extre/mestre que encadeia os quartetos da homenagem
a Mallarmé), o soneto de Nelson Ascher eleva a plasticidade da forma à sua
quase deformação. De franca linhagem mallarrmaica, de verso e sintaxe
cabralinos, o soneto aqui apresenta a tensão da racionalidade concisa e
artificiosa de oficina e emulação, uma espécie irônica de neoparnasianismo,
como concebe Antonio Candido ao apresentar sua poesia em O
sonho da razão (1993).
O rigor hiperbólico da forma parece atender ao dispositivo do que Candido
descreve como uma surpresa metodicamente construída.
De novo, a tensão da plasticidade da forma e a metalinguagem irônica, o
tratamento que profana a tradição clássica do soneto e, ao mesmo tempo,
revigora seu uso.
A escrita de si
Poder multiplicador e procedimento em negativo, o uso do soneto na
poesia contemporânea segundo os modos da tensão com a forma e sua tradição
encontra no projeto da escrita de si de Glauco Mattoso o que seria sua mais
ousada e sistemática realização na atualidade. Quantidade e negatividade
assumem no sonetário mattosiano a culminância de um verdadeiro curto-circuito
no que tange à tradição da forma. Seus mais de 5.000 sonetos, versando acerca
do autobiográfico ou autoficcional, em séries narrativas que reiteram o
masoquismo autovexatório, a obscenidade despudorada do vocabulário, a franca
atração pelo desagradável e abjeto, pelo baixo sexual, social e linguístico,
assumem a configuração de um imenso paradoxo com que a tradição do soneto é
assumida contemporaneamente.
Essa quantidade adquire relevância estética. Ela é índice de uma
escrita para além da forma. É nesse sentido que salta aos olhos a tensão
entre o medido (o próprio soneto, a própria contagem de cada soneto, a
celebração da quebra) e o record, o registro do
deslimite, o desmedido. A tensão entre a forma e a quantidade, assumindo uma
enunciação propriamente pré-moderna, barroca, em que a medida da forma fixa é
unidade de uma contagem desmedida, própria do desmedido, a reiteração do gozo per-verso.
Essa qualidade da quantidade parece estar prevista pela própria escrita
mattosiana, como mais um requinte de seu sadismo travestido de masoquismo, pois
ela corresponde ao estilo propriamente sadeano, enumerativo, repetitivo, em que
o soneto é assumido segundo a febre sonefífera (In.
Pegadas Noturnas, Lamparina, 2004), como o próprio Glauco define.
Esse aspecto quantitativo é um traço formal que combina sentidos heterogêneos:
por um lado, é expressão do sentido pulsional de que se reveste seu conteúdo –
a quantidade repetitiva da fantasia perversa da humilhação e da podolatria,
decantando causos e mitos do próprio fetichismo e que, não raro, atribuem à
própria escrita a franca condição de sintoma. Ao mesmo tempo, esse mesmo traço
da quantidade é o motivo de orgulho, como demonstra o soneto da quebra que celebra,
atribuindo à quantidade e à desmedida o sentido da paródia da emulação. O
orgulho quantitativo assume o valor de afronta à tradição clássica do soneto:
Glauco se orgulha, mais do que da qualidade do
soneto de sua lavra, sempre ciosa do formalismo de tradição petrarquista, da
superação quantitativa que sua escrita elabora. Ou seja: a quantidade é traço
expressivo de dois sentidos simultâneos e contraditórios: o masoquismo
autovexatório, sua condição sintomática e passiva; e do orgulho paródico, sua
perversão expandida, ativa e, decerto, vingativa.
A extensão em que esta prática do soneto está implicada faz do
soneto como unidade narrativa um dos modos de sua multiplicação: seja nos
sonetos narrativos, cautos
causos que podem tomar a extensão de um romance lyrico, como classifica
seu Raymundo
Curupyra: o caipora (Tordesilhas, 2012), onde se narra a vida
e a morte de Raymundo, em cuja trama encontra-se o
próprio Glauco Mattoso como personagem em um affaire masoquista;
seja nos ciclos temáticos, especial atenção ao Letra da Ley (Annablume: 2008) ,
– em que se elabora a expansão da lógica pessimista da Lei de
Murphy, nos mais diferentes referentes cotidianos ( a fila, a burocracia, o
papel higiênico, o sabonete etc ), até a Ley formular-se como duplo metafísico do
poeta masoquista cego. O modo de dispersão dessa imensa quantidade de sonetos
aciona a forma fixa em gêneros que se tornaram incomuns na lírica moderna. A
narratividade que ele opera parece corresponder à ambição propriamente
romanesca e, decerto, teatral. Um novo deslocamento e um novo curto circuito: o
soneto, que a tradição petrarquista monumentaliza como forma quase exclusiva do
gênero lírico, portanto sério e elevado, na escrita mattosiana é a experiência
do baixo, da polifonia, do tragicômico, da narratividade e da teatralidade da
persona Glauco Mattoso.
A quantidade e a negatividade constituem procedimentos de uma
escrita do desagradável não só por se dirigir às zonas erógenas pouco exploradas,
sabores e odores menos preferidos, bem como por transgredir
retomando o molde tradicional (como o soneto) e praticar o experimentalismo
usando o próprio cânone como laboratório (In. Pegadas Noturnas,
Lamparina, 2004) Desagradável a quem, hipócrita leitor? Se Baudelaire se
dirigia ao leitor burguês, heteronormativo, pai de família, o leitor de certo
modo universalizado pela poesia e pela sociedade moderna, o desagradável
de Glauco Mattoso por vezes nos sugere o leitor pré-burguês, o leitor
sadeano, o leitor da aristocracia do gozo e do desejo, o leitor que pela erudição
dos infernos e
pela própria experiência concebe a natureza sexual perversa da humanidade, o
leitor que cultiva o humor da polifonia dos registros e da erudição da
linguagem, o leitor d’undiscoursimense (Sade, Fourier, Loyola,
ÉditionsduSeuil, Paris, 1971), como nos diz Barthes; por vezes, os leitores
de Glauco somos nós mesmos, pós-burgueses, de um mundo em que o
desejo é subsumido no consumo e a vida é capturada pelos dispositivos de
controle. De humilhado a dominador, a fantasia do teatro mattosiano elabora-se
da perversão à subversão: uma espécie de anti-lírica, cujo gênero é híbrido, a
língua polifônica, e o sexual recalcado por toda a tradição retorna de modo
obsessivo, reiterativo, enumerativo e fetichista. Neste sentido, a negatividade
transgressiva mattosiana e sua obsessão quantitativa transpõem a forma como
força, a perversão como subversão e o estético como político.
2 Sonetos de Paulo
Henriques Brito
(19 de janeiro)
Até esta chegar às
suas mãos
eu já devo ter
cruzado a fronteira.
Entregue por favor
aos meus irmãos
os livros da
segunda prateleira,
e àquela moça —a
dos “quatorze dígitos”-
o embrulho que
ficou com teu amigo.
Eu lavei com
cuidado o disco rígido.
Os disquettes
back-up estão comigo.
Até mais. Heroísmo
não é a minha.
A barra pesou.
Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que
coube na viatura,
mas deixei um
revólver na cozinha,
com urna bala.
Destrua este soneto
imediatamente após
a leitura.
De Trovar claro (1997), Companhia das
Letras.
2 sonetos de
Antonio Cicero
História
A história, que vem
a ser?
mera lembrança
esgarçada
algo entre ser e
não-ser:
noite névoa nuvem
nada.
Entre as palavras
que a gravam
e os desacertos dos
homens
tudo o que há no
mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais
impecável verso
breve afunda feito
o resto
(embora mais
lentamente
que o bronze,
porque mais leve)
sabe o poeta e não
o ignora
ao querê-lo eterno
agora.
(De A cidade e os livros, Record, 2002.)
2 sonetos de Nelson
Ascher
NO CENTENÁRIO DE
MALLARMÉ
Embora ao jogo
adestre
a língua que,
selvagem,
resolve-se em
linguagem,
o indecifrável
mestre
perscruta, além das
extre-
midades, na voragem
de estrelas que
interagem,
uma inscrição
rupestre
gravada desde o
início
na abóbada suprema,
em busca de um
indício
do verbo que se
queima
feito um minério
físsil
na origem do poema.
(De O Sonho da razão. Editora 34, 1993.)
2 sonetos de Glauco
Mattoso
SONETO PARA UMA
QUEBRA QUE SE CELEBRA (#2280)
A todos comunico:
agora acabo
de ultrapassar a
marca que comove
qualquer
pesquisador, e já me gabo
de não haver que
tanto assim desove!
Refiro-me aos
sonetos: que comprove
quem queira
contestar! Leva no rabo!
Dois mil, duzentos
e setenta e nove
deixara Belli, em
nome do Diabo!
Porém, sem fazer
pacto com o Demo,
nem ser temente a
Deus, que um Pai não temo,
supero aquele
número de Belli!
Agora nem me
importo se inda chego
aos três, aos
quatro mil, pois meu sossego
não vem, nem que um
milhão de paus eu fele!
(De Malcriados recriados: sonetário sanitário,
Anablume, 2011)
Wikipédia:
Alberto
Pucheu é poeta e ensaísta brasileiro, Professor Doutor de Teoria Literária do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação de Ciência da Literatura da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Nascimento: Rio de Janeiro, RJ, 25 de fevereiro de 1966
Fonte virtual:
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