Maria Helena

Lisboa, Portugal (1906-1998)


OS MEUS VERSOS
Maria Helena

Os meus versos nostálgicos, sem cor,
— Folhas mortas pisadas pelo chão —
São cânticos de dor à minha dor,
Pedaços do meu próprio coração.

Se alegrias vividas com ardor
As não soube guardar a minha mão,
Na alma arrecadei todo o amargor
Da minha incompreendida inquietação.

Versos cheios de febre e de incerteza,
A escorrer sangue, acerbos como espinhos,
Só os entende quem não for feliz.

Poetas! Meus irmãos nesta tristeza!
Chorai ao ler meus versos pobrezinhos,
Que eu também chorei muito quando os fiz!

(Lisboa)



AMANHECER
Maria Helena 

Acordam as olaias desgrenhadas
Pelo frémito de asas em partida...
E alegremente, os dedos das ramadas
Apontam a vertigem da subida.

As serras, verticais, mal desenhadas,
Vestem a festa duma cor garrida.
Na expressão das papoilas encarnadas
Canta a certeza física da vida.

O azul do Céu tem laivos carmesins,
E no esplendor de uma alegria sã,
A terra germinou, cheia de graça.

E a vida sabe a fontes e jardins
Quando o deus Sol na orgia da manhã
Abre rosas na alma de quem passa.

(26-08-1949)



ORGULHO
Maria Helena

Minhas são as auroras cor das rosas
E astros em fogo pelo Céu sem-fim...
E águas do mar e nuvens caprichosas
Criou-as Deus apenas para mim.

Eu compreendo as noites silenciosas...
O luar fala comigo, no jardim...
E a minha boca - pétalas viçosas! -
Foi modelo dum cravo carmesim...
.............................................

...........................

Temendo sempre que outros me desmintam,
Se grito um bem que a vida me negou
E se apregoo dons celestiais,

É só para que os outros não pressintam
No quase nada que no mundo sou
A imensa dor de não poder ser mais!

(Lisboa)



INDECISÃO
Maria Helena

Posso lá prosseguir na caminhada!
Andar com segurança para a frente,
Se uma dúvida atroz e permanente
Enche de névoa a lucidez da estrada!

Se o sangue exige em voz alvoroçada
E tenta impor a sua cor presente,
Logo a renúncia ensombra de poente
O que nunca passou de madrugada.

Seja a hora confusa ou cristalina,
Sempre a mesma incerteza em combustão,
Sempre a dúvida a erguer-se em cada esquina.

Eu sei lá qual das duas tem razão:
Se a minha alma a afirmar que sou divina,
Se as minhas veias a gritar que não...!



COMPENSAÇÃO
Maria Helena

Foi a vida. Bem sei. O dia-a-dia
— Ao compasso das horas já vividas —
Que me levou, aos poucos, a alegria
E a certeza das coisas prometidas.

Foi a vida, bem sei, que fez sombria
A graça das manhãs acontecidas
E deixou a minha alma toda fria
E entornou fel nas minhas mãos caídas.

Foi a vida, nem sei, que fez do viço
A dor de uma ruína sem idade
E quebrou a harmonia do meu gesto.

Foi a vida, bem sei, mas que tem isso?
Se a morte me deixou uma saudade,
Que me importa que a vida leve o resto?



MÁSCARA
Maria Helena

Não digas a ninguém! Ninguém entenderia
As lágrimas de fel da tua imensa dor.
Da raiz que não tens, abre o espectro da flor
E faz nascer do pranto um riso de alegria.

Guarda a noite contigo e finge que tens dia
A ensopar de manhã o que em ti é sol-por.
Vive como os demais e enche as faces de cor,
Muito embora essa cor seja só fantasia.

Afivela no rosto uma expressão garrida
Inda que o amargor que te espedaça a vida
Tenha fundos de abismo e vastidões de mar.

Cala no coração o sofrimento fundo
E vive ao pé dos mais e entre os gozos do mundo
O orgulho de sofrer no orgulho de calar.



AMBICIOSA
Maria Helena

Mais, sim! Ainda mais! E mais ainda!
É pouco quanto tenho e quanto vejo!
Embora a rosa em flor seja a mais linda,
Mais linda sempre a quer o meu desejo.

Nunca a Estrela do Norte me é bem-vinda
Porque eu anseio sempre outro lampejo.
Mais, sim! Ainda mais! E mais ainda!
Beijo que ascenda para além do beijo.

Deixai-me abandonada, ó meus Amigos!
Tenho a terra e o vento e o Céu, e vede
Esta ambição sem fim que me consome.

Fossem meus todo o mar, todos os trigos:
Não há água que baste à minha sede
Nem pão que chegue para a minha fome!



NOITE
Maria Helena

Não dormiram meus olhos fatigados.
Toda a noite contei, hora por hora,
Noite de febre, negra de cuidados,
Noite a que nunca mais chegava a aurora.

Chorei de novo os prantos já chorados
— Que é sempre viva a mente de quem chora —
E o vento uivava, uivava nos telhados
E a sua voz corria, noite fora...

O silêncio aterrava toda a casa.
Tinha nos olhos um calor de brasa
E dentro em mim um frio de luar.

Que estéreis são as noites por dormir:
A vida a ir-se embora, sem partir,
E a morte a aproximar-se, sem chegar...



HORA RUBRA
Maria Helena

Sou eu! Não ouves, Vida? Abre-me a porta!
Repara nos meus olhos-mar de pranto!
Olha esta mágoa que me pesa tanto,
Mágoa calada, que ninguém conforta!

Pois não vês a esperança quase morta,
Que os meus dias são dias sem encanto
E que o meu canto é sempre um triste canto...
Por que teimas em não me abrir a porta?

Quero esquecer insônias, ais, agravos,
E ver em derredor um ar de boda
E em cada olhar o mel de uma promessa.

Tenho uma boca doce como os favos
E um sangue ardente que me queima toda...
Ó Morte, Morte! Leva-me depressa!!!



DE MÃOS POSTAS
Maria Helena

Vento sem Norte, leva-me onde vais:
Aos Céus distantes, às planícies rasas!
Que eu rasteje contigo nos trigais
Ou me perca, a subir, num mundo de asas!

Fumo alastrando, lento, dos casais
— Alma das chamas a ascender em brasas! —
Leva a minha alma em tuas espirais
Quando, num beijo, o Céu e a terra casas.

Sol, girassol aberto em claridade,
Que iluminas o justo e o pecador,
Sê também meu irmão e meu amigo.

Ó vento! Ó fumo! Ó Sol! Tende piedade!
Quero ir seja onde for e com quem for,
Contanto que não fique só comigo!!!



SONETO À DESVENTURA
Maria Helena

Que eras muito mais forte do que eu
E podias dobrar-me como um vime
E esfacelar também quanto era meu
Sem sentires remorsos do teu crime.

E eu rojei-me no chão, que me acolheu,
Sob o poder da tua mão que oprime
E arrastei-me na noite cor de breu
Longe do Sol que doira e que redime.

Mas um dia quebrei elos e grade
E caminhando em plena liberdade
Ressuscitei de minha própria morte.

E agora que estou viva e sou feliz,
Olha-me bem de frente, olha-me e diz
Qual de nós duas é que foi mais forte!




ALTURA
Maria Helena

Longe! Seja onde for! Noutro lugar:
Novos Céus. Novos mundos. Novos ritos.
Perdida na extensão dos Infinitos
Onde nem mesmo o Sol possa chegar.

Subir e não temer e não cansar,
Numa ascensão sem peias e sem mitos,
Esquecida do horror de humanos gritos
Sob a mudez granítica do luar.

Porque hei-de ultrapassá-las e vencê-las,
A minha mão há-de apagar Estrelas
No silêncio imortal dos Céus absortos.

Hei-de ir além do fim de qualquer fim,
Deixando longamente atrás de mim
Um turbilhão suspenso de astros mortos!



MISTÉRIO
Maria Helena

Choro, por quê? Por quê, esta agonia
Que não tem um motivo definido?
Por que vejo tão pálido este dia
Quando o Sol é um cravo já florido?

Rio, por quê? Quem deu esta alegria
Ao meu peito inda há pouco entristecido?
Luar que não nasceu nem alumia:
Por que me beijas antes de nascido?

Sangue rebelde, faces de marfim,
Sou mar agora de ondas bem erguidas,
Logo rastejo, tímida e mesquinha.

Que mistério tão grande eu trago em mim:
Passam na minha vida tantas vidas,
Que eu nem chego a saber qual é a minha!




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