O SONETO DE ARVERS
Félix Arvers teve a glória de produzir o
mais famoso soneto surgido na literatura universal. Soneto algum jamais foi tão
traduzido e imitado.
Um poeta de 24 anos escreveu-o no álbum
maravilhoso de uma jovem de 19 anos, comprometida e recatada, sem grande
beleza, mas dotada de muita inteligência, graça e simplicidade.
Poetisa de alma iluminada. Autora e
intérprete de melodias colocadas em poemas de Victor Hugo, Alfred de Musset e
Sainte-Beuve.
A afeição do poeta era imensa. E tão discreta
que, pelo menos, aparentemente, passou despercebida à moça dos seus sonhos.
Ao mesmo tempo feliz e desventuroso, subiu,
como uma estrela divina, ao céu azul da imortalidade, o amor sem esperança de
um cantor por sua Musa.
*
Quem era Marie Nodier, a Musa de Arvers?
Em 1808, Charles Nodier casou-se com uma
das filhas do magistrado Claude Charve. Estando em dificuldades, resolveu
aceitar a função de secretário do baronete inglês Herbert Croft, em Amiens, na
França, emprego que em nada lhe valeu porque Croft fazia-o trabalhar muito, mas
nem sempre lhe pagava o ordenado.
Nodier, cansado e endividado, deixou o
baronete e foi morar a casa de campo do sogro, em Quintigny. Ali, em 26 de
abril de 1811, nasceu Marie Nodier, a futura Musa de Arvers.
Em 1824, Nodier foi nomeado conservador da
biblioteca do Arsenal, que pertencera ao Conde de Artois; em Paris, e que fora seqüestrada
em 1793, pelo governo da França, por motivos políticos.
Essa biblioteca, transformada em biblioteca
pública, ainda hoje existe, com mais de um milhão de obras impressas, além de
12.000 manuscritos e 120.000 gravuras. Num apartamento para ele reservado no
edifício, Charles Nodier se instalou com a família; e ali passou a receber,
diariamente, os amigos literatos mais íntimos.
Dentre eles, Dumas, Taylor, Cailleux,
Soulié.
Aos domingos, à noite, abria o salão, para
reuniões mais numerosas. Compareciam às recepções, poetas, dramaturgos,
pintores e artistas de todos os matizes: Hugo, Saint-Beuve, Musset, Vigny, Lamartine,
Louis Boulanger, Fontaney, Gigoux, Rességnier, Fourier, Francisque Michel,
Devéria, Ulric Guttinguer, Barye, Guiraud, Delacroix, Arvers... e muitos
outros, todos valores de renome no Paris da época. E, ao lado dos luminares da
arte romântica da capital francesa, as musas também compareciam: Amable Tastu,
Delphine Gay, Sophie Gay, Marceline Desbordes-Valmore, Mélanie Waldor,
Anais Ségalas.
Arvers freqüentava as reuniões do Arsenal
desde que abandonara os estudos universitários e fora despertado pelo amor às
artes, no convívio de Delacroix e Girardin. Forte, moreno, de barbas negras,
chegou a ser homem de prestígio nos meios teatrais.
Naquelas tertúlias, Hugo, Lamartine e
outros recitavam suas últimas poesias. Havia uma palestra sobre a doutrina
romântica.
E, afinal, Marie Nodier, a "musa do
Arsenal", ao piano, animava as danças, enquanto o pai e alguns amigos iam
jogar.
As reuniões prosseguiam até as primeiras
horas da madrugada.
Como funcionário público vitalício, Charles
Nodier podia, também, dedicar-se a atividades literárias fora do Arsenal.
Publicou diversas obras e veio a ocupar, em 1833, uma cadeira na Academia Francesa.
De 1824 a 1827, esses saraus domingueiros
influíram bastante na literatura francesa. Nodier chegou a chefiar o nascente
movimento renovador (Romantismo) durante esses três anos, até que Victor Hugo,
mais amadurecido e por ele animado, veio a sucedê-lo.
Em 1827, Hugo passou a reunir amigos em sua
casa, pois então assumiu a direção do movimento romântico.
O Arsenal, entretanto, não perdeu o seu
prestígio. Poetas, romancistas, pintores, continuaram a reunir-se ali. E foi
numa dessas reuniões que Félix Arvers escreveu, em fevereiro de 1831, no álbum pertencente
a Marie Nodier, o seu célebre soneto. Aliás, dois anos depois, em 1833, o poeta
o incluiu no seu livro "Mes heures perdues", como se fosse uma
simples paráfrase, com a nota "imitado do italiano", num gesto
altamente nobre, no intuito de preservar sua inspiradora, já então casada com
Ferdinand Jules Mennessier. Este, um modesto funcionário do Ministério da Justiça,
fora escolhido, ao que tudo indica, por pressão paterna.
Nodier sabia que Mennessier,
financeiramente, inspiraria mais segurança que os talentosos, porém boêmios,
intelectuais freqüentadores do Arsenal.
Era Marie Mennessier-Nodier, que se casara
em 18 de fevereiro de 1830, esposa virtuosa, inteiramente dedicada ao marido e aos
filhos.
A Arvers não faltou o carinho das mulheres,
entre as quais a atriz Virginie Déjazet; mas sua paixão recôndita, seu amor, de
certa forma desiludido, pertenciam a Marie. Sofria elegantemente,
superiormente.
Escreveu e viu representadas 17 peças
teatrais. Publicou apenas aquele livro de versos, e nem mesmo isso precisaria
fazer. Para imortalizar o seu nome bastaram quatorze versos que desafiam os anos,
como obra consagrada. Bastaram quatorze alexandrinos, com presença obrigatória
em todas as seleções de poesia francesa e em todos os florilégios da poesia
mundial.
Ele, àquela época, era ignorado em sua
própria pátria e houve quem, maldosamente, quis atribuir a Hugo ou a Musset a
autoria do soneto famoso.
Raymond Escholier, glosando a incompreensão
e a iniquidade que cercaram Félix Arvers, disse, pitorescamente, que o poeta
conseguiu chegar até nós "carregando o seu soneto".
Há quem veja nos versos e imagens do soneto
a repetição discreta de um tema surrado na lira dos românticos; há, mesmo, quem
lhe negue valor e sinceridade; há quem lhe atribua apenas uma atitude
literária. Há quem o incrimine de pobre de forma e de concepção.
São, porém, exagerados esses julgamentos. O
soneto tem valor e aquele enternecido mistério que envolveu a musa, não
identificada a princípio, foi, por certo, uma força decisiva para sua
sobrevivência.
E, sejamos francos, só espíritos de má-fé,
ou apressados julgadores, poderiam ver mediocridade na peça.
A indiferença com que foi recebido talvez
se deva ao fato de estar-se processando, então, sob a chefia de Hugo, um
movimento renovador da poesia. Não deixava de ser uma incômoda reminiscência
clássica. Um desafio aos que combatiam ferozmente os modelos tradicionais.
Isto, entretanto, é secundário. O
importante é que os amorosos de todos os países se deslumbraram. Pode-se
afirmar que Arvers voou do anonimato à glória, com as asas poderosas destes
quatorze versos.
Adèle Hugo, a leviana esposa de Victor
Hugo, vendo que o soneto ganhava popularidade, insinuava-se como a musa de
Arvers.
Outras mulheres que freqüentavam as
reuniões de Charles Nodier também se sentiam profundamente lisonjeadas com a
idéia de que pudessem ter sido as inspiradoras. Fascinava a algumas delas
aquele mistério envolvente, acariciante, do soneto que já nasceu amado.
Dezenas de anos após a morte do poeta,
muitos ainda conservavam a dúvida sobre a identificação da musa, inclusive
pessoas de sua própria família.
Afinal, ficou seguramente apurada a verdade
para o mundo:
a musa misteriosa era Marie Nodier. O
próprio texto do pequeno poema significava, aliás, uma prova convincente de que
Adèle, protagonista de escândalos rumorosos, não seria, jamais, a musa secreta de
Arvers. Além disso, lembremo-nos de que o soneto foi escrito no próprio álbum
pertencente a Marie Nodier, com a caligrafia clara do autor. A esta, sim, cabia
a referência elogiosa do verso: "à l'austère devoir pieusement fidèle.”
O poeta precisava dissimular suas
expressões, face ao compromisso de sua amada e, mais que isto, à sua inteireza
moral. O soneto, assim, não é um grito de paixão desvairada; é apenas uma
lamentação de amor, singela e respeitosa.
Alfred de Musset, em 1831, já se havia
afastado das reuniões do Arsenal, e, talvez por esse motivo, alimentava dúvidas
sobre nome da musa de Arvers. Mas, consultando a Ulric Guttinguer, obteve
deste, em carta de 3 de janeiro de 1835, a resposta decidida:
"Comment! Vous ne savez que c'est
Marie?"
Marie Mennessier Nodier, é claro, sabia da verdade. E, mesmo que ela não tivesse
aquela intuição que toda mulher tem, os fatos eram por demais eloqüentes. Não
fosse ela uma mulher culta, inteligente e discreta, teria saído a confirmar
abertamente o fato. Mas, a "musa do Arsenal" esteve sempre à altura
daquela homenagem silenciosa.
Aos 19 anos, em 1830, Marie Nodier se
casara e foi se afastando, aos poucos, das memoráveis reuniões que, por
coincidência ou não, foram perdendo, substancialmente, seu prestígio e seu
entusiasmo. Marie, em 1836, publicou uma pequena antologia de poetas contemporâneos,
sob o título "La Perceneige".
Arvers também se afastou, entregando-se à
literatura teatral e às aventuras femininas. Houve, porém, pelo menos outros dois
poetas que sofreram, talvez mais que Arvers, com o casamento de Marie Nodier:
Antoine Fontaney, que fugiu daquele convívio, desesperado, viajando para a
Espanha e depois para a Inglaterra, e Alfred de Musset, que a rodeava com maior
interesse, principalmente após as infidelidades de sua amante, a grande
escritora George Sand.
Musset chegou, mais tarde, a trocar
correspondência poética com Marie, enviando e recebendo dela vários sonetos,
diálogo rimado que foi suspenso apenas três dias depois, por uma velada advertência
da própria Marie, que, afinal, nunca passara mesmo de uma companheira de danças
e confidências literárias do poeta.
Arvers, que nascera em Paris a 23 de julho
de 1806, morreu em 7 de novembro de 1850, na "Maison Municipale de
Santé", em Paris, esquecido e abandonado. "Afecção da medula
espinhal", foi o diagnóstico do médico Dr. Duméril.
As primeiras palavras do soneto imortal
estão gravadas na pedra de seu túmulo modesto, ao lado da campa de sua mãe Jeanne
Vérien, no campo-santo de Cézy, próximo a Joigny:
CI —GIT
LE POÈTE FÉLIX-ALEXIS
ARVERS
NE' ET MORT À PARIS
1806-1850
IL A ÉCRIT
L'INOUBLIABLE SONNET
"MON ÂME A SON SECRET...”
E Marie foi envelhecendo, sempre virtuosa,
entre o seu dever de esposa e mãe e as recordações literárias que nunca deixaram
de assediá-la. Era tão grande sua jovialidade, que Ulric Guttinguer, cuja amizade conservou sempre viva e constante, lhe
dispensava, como às filhas, bem-humorado, o tratamento de
"mademoiselle".
Charles Nodier, seu pai, faleceu em janeiro
de 1844.
Em 1873, quando, de há muito, já abandonara
a poesia, Marie compôs versos dedicados ao marido amoroso, chamando-o "mon
cher compagnon", e dizendo:
.....................................................................
"Nous n'avons pas cessé de marcher
côte a cote...”
.....................................................................
"Les enfants ont rempli mon
coeur et ma maison,
et je crois bien qu'au fond peut-être ai-je
été mère".
Já aposentado, finou-se em 1877, aos 75
anos de idade, Ferdinand-Jules Mennessier, o homem que se casara com a namorada
de três poetas daquele romântico e inesquecível 1830. Fora feliz e deixara,
além da esposa extraordinária, três filhos também realizados: um homem e duas
mulheres.
E, em 19 de novembro de 1893, aos 82 anos
de idade, já com a alegria dos netos, Marie Mennassier Nodier expirou,
suavemente, cristãmente.
De todas as partes da França chegaram
coroas e flores para acompanhar seu caixão.
Nos últimos anos, ela vira passar, como em
um caleidoscópio, acontecimentos numerosos e marcantes: mudanças políticas;
dolorosas guerras que marcaram a face da França; a saudade dos poetas queridos;
e, esvaecendo um pouco as suas recordações literárias do tempo do romantismo, a
sucessão de outras escolas que vieram também a viver glórias semelhantes: o
realismo, o parnasianismo, o simbolismo...
Morreu, porém, resignada, porque as
tristezas eram envolvidas pelos carinhos de novos amigos, uma vez que os
antigos, como Musset e Arvers, já se tinham ido para o país do esquecimento.
*
Quando se realizaram as festas
comemorativas do centenário do Romantismo, na França, houve um documento
exposto que despertou, de maneira relampejante, a curiosidade pública: o álbum autógrafo,
pertencente a Marie Nodier e no qual se acham escritos, de próprio punho,
poemas de Victor Hugo, Alfred de Musset, Lamartine, Dumas, Sainte-Beuve,
Fontaney, Deschamps, Mélaine Waldor, Vigny, Louise Crombach, Soumet, e de
outros poetas da época. O que mais chamou a atenção foi, todavia, o soneto de Félix
Arvers.
*
Ao organizarmos as notas deste capítulo,
temos em mãos o livro "O Soneto de Arvers", de Mello Nóbrega. É tão
completo o trabalho desse crítico erudito e pesquisador incansável, que não temos
como fugir às suas informações que, inclusive, representam rigorosamente aquilo
que podemos chamar a verdade histórica.
Tanto assim que, em nosso resumo, haurimos,
tranqüilamente, o conteúdo de alguns de seus textos, com as necessárias
diferenças de redação, é lógico.
E é Mello Nóbrega quem transcreve, como se
segue, a versão original do célebre soneto, tal como se encontra no álbum
histórico, com respeito absoluto à ortografia e à pontuação do poeta; mantidos
alguns erros e faltas de acentos; e conservadas, ainda, as minúsculas iniciais
de vários versos, contrariando o uso então vigente de maiúsculas no início dos
mesmos — tudo isto atribuído à emoção que Arvers, naturalmente, não conseguiu
dominar:
"SONNET"
Mon ame a son secret, ma vie a son mystère,
Un amour eternel en un moment conçu;
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le
taire,
et celle qui l'a fait n'en a jamais rien
su.
Helas! j'aurai passé près d'elle inaperçu
Toujours à ses côtés et toujours solitaire;
et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur
la terre,
n'osant rien demander, et n'ayant rien
reçu.
Pour elle, quoique Dieu l'ait faite bonne et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans
entendre
Ce murmure d'amour elevé sur ses pas;
à l'austère devoir pieusement fidèle,
elle dira, lisant ces vers tout remplis
d'elle,
"Quelle est donc cette femme?" et
ne comprendra pas.
O soneto, como ressaltamos linhas atrás,
foi incluído, em 1833, no seu único livro de versos, "Mes heures
perdues".
Apresentava pequenas modificações nos
versos 6º e 9º, além de mudanças de pontuação.
Ei-lo:
"SONNET"
Imité de l'italien
Mon âme a son secret, ma vie a son mystère;
Um amour éternel en un moment conçu:
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le
taire,
Et celle qui l'a fait n'en a jamais rien
su.
Hélas! j'aurai passé près d'elle inaperçu,
Toujours à ses côtés, et pourtant
solitaire,
Et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur
la terre,
N'osant rien demander et n'ayant rien reçu.
Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce
et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans
entendre
Ce murmure d'amour élevé sur ses pas;
l'austère devoir, pieusement fidèle,
Elle dira, lisant ces vers tout remplis
d'elle.
Quelle est donc cette femme?" et ne
comprendra pas.
Eis aí, no pelourinho da posteridade, o
soneto mais famoso do mundo, escrito há mais de 150 anos!
Sua idéia era original? Talvez não o fosse,
mas disse Montaigne que "os literatos vivem a repetir-se". E depois,
poemas de pensamentos semelhantes exigem expressões equivalentes. Arvers, como poeta
de grande sensibilidade, conseguiu expressar o sentimento de todos aqueles que
amam sem ilusões. Musset dizia que tudo pertence a todos. Emerson achava que a
literatura, toda ela, é feita de citações. Para Sêneca, o seu e o alheio eram a
mesma coisa.
Sob esse aspecto, seria o caso de se
repetir, como Cristo:
... "atire a primeira pedra...“
Camões e até o nosso Raimundo Correia
sofreram criticas semelhantes.
A palavra humana se repete porque,
naturalmente, não dispõe de infinitos recursos de comunicação.
Cabe, agora, uma pergunta: o soneto de
Arvers tem defeitos de estrutura, de metrificação, de cesura, de pobreza nas
rimas, de repetição de palavras, de licenças poéticas, de estilo? Nem tanto assim.
Os defeitos, que os existem, são de pequena monta, principalmente se aceitarmos
a afirmação de Michel Salomon, segundo a qual Arvers improvisou o seu soneto,
numa das reuniões presididas por Charles Nodier.
Deixemos de lado os críticos severos para
recordarmos o seguinte: Saint-Beuve tachou-o de "sonnet adorable"; Jules
Janin disse que é o "sonnet sans défaut", sonhado por Boileau; e
Théodore de Banville declarou que é "le roi des sonnets".
Para nós, basta; como basta verificarmos —
e isto é irrefutável — que o soneto de Arvers é, sem dúvida, um dos mais
formosos e admiráveis poemas de amor, já escritos em qualquer língua.
Arvers conseguiu resumir em quatorze versos
um instante de excepcional sensibilidade de sua vida. Instante tanto mais
expressivo por se tratar de um sentimento que não foi somente dele.
Muitos amantes gostariam de ter a
capacidade e a inspiração que ele teve para exprimir, com tanta beleza, um amor
sem esperança.
*
E aqui estamos, de novo, a nos valer de
Mello Nóbrega, para oferecer aos leitores várias traduções do alexandrino
imortal.
Mal publicada a segunda edição de "Mes
heures perdues", em 1878, com prefácio de Théodore de Banville, os poetas
portugueses e brasileiros se atiraram, de corpo e alma, à tradução do soneto.
Centenas delas foram realizadas com
certeza, nenhum poema foi tantas vezes traduzido para o nosso vernáculo.
Mello Nóbrega, na 2ª edição de seu
magnífico livro, arrolou 91 traduções, dizendo saber da existência de outras
dez, com o que seriam 101. Dessas, 68 de autores brasileiros e 33 de
portugueses.
É ele de opinião que, até hoje, o soneto de
Arvers não teve, quer no Brasil, quer em Portugal, uma tradução à altura do
original, mas admite que são felizes e brilhantes algumas dessas transposições.
Justificando seu parecer, escreve:
"Não basta o conhecimento de dois
idiomas, nem a técnica poética, nem a paciência, nem a honestidade. Antes de
tudo, faz-se indispensável o entendimento sutil da peça original: o tradutor deve
encharcar-se de suas intenções, senti-la e vivê-la para o milagre da recriação.
Os dotes intelectuais apenas darão corpo a essa verdadeira reencarnação
literária. Poucas vezes, entretanto, isso tem sido conseguido. Há, na poesia,
um quê sagrado e hermético, íntima e indissoluvelmente ligado à expressão, mas
independente de seus termos. Dir-se-ia a própria alma do poema, a banhar e a
animar o todo, escapando à localização e à análise.
Acrescentem-se a essa impossibilidade
essencial as barreiras psicológicas de cada língua".
Disse Mallarmé: "Porque a poesia se
faz com palavras, e não com idéias, é difícil transportar de uma língua para
outra o conteúdo comunicativo de qualquer poema".
Diante de tantas dificuldades foi que
surgiu a confissão do poeta Robert Frost: ele não lia poemas traduzidos ou os
conhecia na língua original, ou os ignorava.
*
O primeiro tradutor brasileiro do Soneto de
Arvers foi Pedro Luiz (1880), que logo após passou a ocupar a pasta do Ministério
dos Negócios Estrangeiros:
Guardo um mistério n'alma e na vida um
segredo,
um sempiterno amor que há muito me
enlouquece;
não tem remédio o mal — por isso o oculto a
medo
e aquele que o causou jamais quis que o
soubesse.
Perpasso junto dela e abafo ardente prece!
Ao seu lado respiro e sempre em um degredo.
A romagem da vida acabarei bem cedo,
sem que eu nada pedisse e nada ela me
desse.
Terna
formou-a Deus, mas — bela peregrina —
na
trilha do dever não vê, não imagina
que
eu — mísero — sagrei-lhe amores imortais.
E, um dia, talvez, diga ao ler em doce
calma
estes versos que assim vibraram de sua
alma:
—"E essa mulher quem é?" — Não
cismará jamais.
Lúcio de Mendonça fez, ainda em 1880, uma
tradução, que, afinal, com retoques, foi publicada, em 1902, no livro
"Murmúrios e Clamores", com a seguinte redação:
Tenho um mistério n'alma e um segredo na
vida:
É um eterno amor nascido em um momento.
É mal que não tem cura; assim, nenhuni
lamento
jamais o revelou à cândida homicida.
Por ela passarei, sombra despercebida,
sempre a seu lado, sempre, e em mudo
isolamento;
e há de chegar assim meu último momento
sem nenhuma ventura, ousada, ou recebida!
Criou-a meiga Deus, e boa, e carinhosa,
mas distraída segue, e surda à voz ansiosa
deste amor que murmura a seus pés, onde
está.
Fiel a seu dever, que austeramente zela,
dirá talvez, ao ler meus versos cheios
dela:
—"Que mulher será esta?" — e não
compreenderá.
Eis o trabalho do poeta baiano José Augusto
de Carvalho (1890):
Um segredo cruel tenho nalma escondido:
imenso, eterno amor num instante criado.
Sem remédio ao meu mal, padeço resignado,
pois quem me faz sofrer não sabe se hei
sofrido.
Por ela eu passarei talvez despercebido;
mesmo que junto esteja, eu me sinto
isolado,
e toda minha vida assim terei findado,
sem nada ousar pedir, nem tendo recebido.
Embora Deus lhe desse uma alma carinhosa,
ela irá seu caminho, alheia, descuidosa
desta queixa de amor, que sempre a seguirá!
E lendo este soneto, assim tão cheio dela,
dirá pelo dever que compaixão revela:
—"Que mulher será essa?" — E nada
entenderá.
Oferecemos uma versão de Álvaro Reis
(1917):
Guardo na alma um segredo, e na vida um
mistério,
um grande e eterno amor de súbito nascido.
Ê um mal sem esperança e dor sem
refrigério;
e aquela que o inspirou nada tem
pressentido.
Perto dela, atraído ao seu mágico império,
ai! triste eu passarei, sempre
despercebido!
E hei de chegar da vida ao término funéreo,
nada ousando pedir e nada tendo obtido...
E ela, se bem que Deus terna e boa a
fizesse,
seguirá sem ouvir meu amor como um canto
elevado a seus pés, num murmúrio de prece!
E fiel a seu dever compassiva dirá,
ao ler os versos meus, tão cheios dela,
entanto:
— "Que mulher será esta?" — E não
compreenderá!
Luiz Pistarini trasladou o soneto da
seguinte maneira:
Tenho n'alma um arcano e um mistério na
vida,
amor que me nasceu num eterno momento.
E aquela que o causou não conhece o
tormento
e sem remédio a dor trago n'alma escondida.
Por ela passarei, névoa não percebida
vendo-a ao lado de mim num vago isolamento...
Sem nada desejar, sem sequer um lamento,
irei por certo ao fim da existência
esquecida.
E aquela a quem Deus fez serena,
harmoniosa,
há de ir pela estrada, indiferente e surda
ao sussurro do Amor que sempre a seguirá.
Fiel ao seu dever de esposa carinhosa,
ao ler-me então dirá, sem que nada lhe
aturda:
— "Que mulher será esta?" — e não
me entenderá.
O poeta Raul Machado assim converteu, em
1924, o famoso soneto:
Tenho n'alma um segredo e um mistério na
vida:
um amor eternal, que num momento aflora!
Uma infeliz paixão, que urge ser escondida,
e que a própria mulher, que me inspira,
ignora!
Ai de mim! Hei de ir só, pela existência
afora,
conquanto sempre junto a esta visão
querida,
e morrer, sem pedir ou merecer, embora,
um sorriso... um olhar... uma frase perdida...
E ela, que a alma possui só de ternura
cheia,
seguirá seu caminho, indiferente e alheia
ao murmúrio de amor que, a seus pés, se
erguerá.
Fiel ao nobre dever, a um tempo honesta e
bela,
dirá, por certo, ao ler meus versos cheios
dela:
—"Que mulher será esta?"... E não
compreenderá...
Agora, a tradução (texto definitivo) de
José Oiticica:
Tenho um segredo na alma e um mistério na
vida:
este infinito amor nascido sem querer.
Ela nunca entreviu esta febre contida,
pois, sendo o mal sem cura, o melhor é
esconder.
Ai! passarei, despercebido, em minha lida,
sempre a seu lado e sempre só, a padecer,
recalcando, até o fim, esta paixão
proibida,
nada ousando implorar, sem dela nada obter.
Ela, entretanto, absorta, irá no seu
caminho
sem ouvir murmurar, em derredor, baixinho,
este arrulho de amor que, ansiante, a
seguirá.
Fiel ao rude dever, erguendo a fronte bela,
dirá, depois de ler meus versos cheios
dela:
— "Que mulher será essa?" — e não compreenderá.
Apresentamos, a seguir, a interpretação de
Guilherme de Almeida, que, na opinião de Mello Nóbrega, é "a mais
apreciável, talvez, de quantas, entre nós, se fizeram até hoje". Foi
publicada na segunda edição de "Poetas de França" (1944):
Tenho na alma um segredo e um mistério na
vida:
um amor que nasceu, eterno, num momento.
É sem remédio a dor; trago-a, pois,
escondida,
e aquela que a causou nem sabe o meu
tormento.
Por ela hei de passar, sombra inapercebida,
sempre a seu lado, mas num triste
isolamento.
E chegarei ao fim da existência esquecida,
sem nada ousar pedir e sem um só lamento.
E ela, que entanto Deus fez terna e
complacente,
há de, por seu caminho, ir surda e
indiferente
ao murmúrio de amor que sempre a seguirá.
A um austero dever piedosamente presa,
ela dirá, lendo estes versos, com certeza:
— "Que mulher será esta?" — E não
compreenderá.
Vamos à colaboração de Osvaldo Orico:
Guardo um segredo n'alma; existe em minha
vida
um mistério; este amor que não pude evitar.
Jamais lhe revelei esta paixão proibida,
que para um mal sem cura o remédio é calar.
Andarei por aí, como sombra perdida,
sem que imagine que a seu lado vim pousar,
e, que assim ficarei para o resto da vida,
sem lhe pedir sequer a graça de um olhar.
Ela, que é toda amor e que é toda ternura,
há de ser sempre a mesma insensível
criatura
indiferente à voz que vibra, onde ela está.
Escrava do dever, que a torna tão feliz,
ainda dirá, lendo estes versos que lhe fiz:
— "Que mulher será esta?" — E não
compreenderá.
Estampamos a recriação de Antônio Filgueiras
Lima, uma das mais fiéis em relação aos consoantes do soneto original:
Tenho n'alma um segredo e na vida um
mistério:
um grande e eterno amor num momento
nascido.
Sem esperança, oculto, é um mal sem
refrigério,
daquela que o inspirou nunca jamais sabido.
Ai de mim! ao seu lado irei despercebido,
junto dela e sozinho, embevecido e etéreo.
E chegarei ao fim do meu viver funéreo
sem nada haver ousado e nada recebido.
E Ela, a quem o Senhor fez de ternura
cheia,
irá em seu caminho inteiramente alheia
ao murmúrio de amor que a seus pés cantará.
— E fiel ao dever que austeramente zela,
dirá, talvez, ao ler meus versos cheios
d'Ela:
— "Que mulher será esta?" — E não
compreenderá.
A seguir, a contribuição do poeta Carlos
Sá:
Tenho na alma um segredo e um mistério na
vida,
um infinito amor de súbito a nascer.
Tenho-o, porém, calado: a esperança é
perdida,
e ela desta paixão nunca veio a saber.
A seu lado, sozinho e de alma comovida,
sigo, sem um olhar ao menos merecer.
Assim terminarei na terra a minha lida,
sem nada ousar pedir, sem nada receber.
Ela, feita por Deus tão pura e tão formosa,
há de passar no mundo ingênua e descuidosa
e este canto de amor jamais escutará.
E um dia, ao ler, talvez, os versos que lhe
faço,
dirá, piedosa e austera, interrogando o
espaço:
— "Quem foi essa mulher?" — E não
compreenderá.
Em 1951, a imprensa divulgou esta
readaptação de Olegário Mariano:
Tenho um mistério na alma e um segredo na
vida:
eterno amor que, num momento, apareceu.
Mal sem remédio, é dor que conservo escondida
e aquela que o inspirou nem sabe quem sou
eu.
A seu lado serei sempre a sombra esquecida
de um pobre homem de quem ninguém se
apercebeu.
E hei de esse amor levar ao fim da humana
lida,
certo de que dei tudo e ele nada me deu.
E ela que Deus formou terna, pura e
distante,
passa sem perceber o murmúrio constante
do amor que, a acompanhar-lhe os passos,
seguirá.
Fiel ao dever que a fez tão fria quanto
bela,
perguntará, lendo estes versos cheios dela:
— "Que mulher será esta?" — E não
compreenderá.
Os poetas portugueses se dedicaram,
igualmente, à tradução do soneto, embora em muito menor escala.
Aqui, a peça de Xavier Cordeiro, premiada
em concurso organizado por um jornal de Lisboa:
Há nesta alma um segredo, em mim vive
escondido
um mistério ignorado, um íntimo tormento:
é este eterno amor, nascido num momento,
só por ela inspirado e nunca pressentido.
Vejo-a, mas não me vê, na multidão perdido
.. .
Se junto dela estou, mais sinto o
isolamento!
E assim me hei de extinguir de ignoto
desalento,
sem nada obter jamais, sem nada haver
pedido!
Austera no dever, mas terna e carinhosa,
ela seu rumo irá seguindo, descuidosa,
sem pensar que eu existo, alheia para mim...
E se estes versos ler, onde arde a chama
intensa
do amor que os inspirou — dirá com indiferença:
— "Quem será a mulher que alguém adora
assim?"
Houve também os que resolveram fazer a
transposição em versos decassílabos, prática que não poderia dar resultado
satisfatório.
Mas, por que continuarmos as traduções?
Seria quase que repetirmos os mesmos versos, com poucas divergências, como se
mostrou. Vimos rimas e expressões fartamente repisadas e até versos inteiros
iguais em tradutores diferentes.
A semelhança e até a igualdade de
expressões empregadas pelos tradutores, empenhados na fidelidade ao original,
ficam provadas neste pasticho curioso e hábil do Professor Júlio Nogueira, que armou o soneto com cinco versos de José
Oiticica (1-5-7-12-14); três de Lúcio de Mendonça (2-6-13); três de
Raul Machado (3-9-10) e três de Guilherme de Almeida (4-8-11).
Foi publicado no "Jornal do Comércio", do Rio, edição de 23.10.49:
Tenho um segredo na alma e um mistério na
vida:
é um eterno amor nascido em um momento,
uma infeliz paixão, que urge ser escondida
e aquela que a causou nem sabe o meu
tormento.
Ai! passarei, despercebido, em minha lida,
sempre a seu lado, sempre, e em mudo
isolamento,
recalcando, até o fim, esta paixão
proibida,
sem nada ousar pedir e sem um só lamento.
E ela, que a alma possui só de ternura
cheia,
seguirá seu caminho, indiferente e alheia
ao murmúrio de amor, que sempre a seguirá.
Fiel ao rude dever, erguendo a fronte bela,
dirá, talvez, ao ler meus versos cheios
dela:
— "Que mulher será esta?" — e não
compreenderá!
Para terminarmos esta série de versões,
oferecemos mais uma, que é curiosa por se tratar de um acróstico formado por um
nome de mulher: Maria de Lourdes. Da autoria de João Coelho Nogueira Ribeiro, é
a seguinte:
Mora em mim um segredo, em minh'alma um
mistério,
Ardente e eterno amor um dia concebido.
Reprimi-lo é meu fado e, do silêncio ao
império,
Ignorado mantém-se e nem d'Ela é sabido.
Ah! Não terei sequer o doce refrigério
De um olhar! Vendo-a embora, eu não sou
percebido
E hei de alcançar, assim, a paz do
cemitério,
Longe d'Ela e sem ter nada ousado ou
pedido.
O caminho da vida (embora o Criador
Uma santa a fizesse) há de segui-lo, sem
Reparar, nem sequer, nesta prece de amor.
Dedicada e fiel ao seu dever, dirá
Estes versos ao ler, tão cheios d'Ela:
"Quem
Será esta mulher?" e não compreenderá...
Vamos, agora, transcrever uma quadrinha em
que Medeiros e Albuquerque resumiu o extraordinário soneto:
Presa a outro,
honesta e fria
meu amor não viu
sequer.
Lendo meus versos,
diria:
"Quem será
esta mulher?"
O público talvez se tenha cansado das
traduções, pela sua impressionante semelhança, que, aliás, não podia, nem
poderá, ser evitada, porque os tradutores têm de se aproximar, ao máximo, do
texto original.
Bastos Tigre, o incorrigível humorista, deu
um final diferente ao soneto:
Guardo um segredo n'alma e um mistério na
vida:
imorredouro amor que irrompeu de momento.
Se o mal é sem remédio, a queixa é
descabida
a que me fez o mal, nunca ouviu meu
lamento.
Por ela já passei — sombra despercebida,
ao meu lado a senti, no meu isolamento!
Ao termo chegarei dessa terrena lida,
não ouso pedir, e receber não tento.
Quanto a ela, apesar da doçura e carinho
com que Deus a dotou, seguirá seu caminho,
sem ouvir que a acompanha um murmúrio de
amor...
E fiel ao seu dever que austeramente zela,
ela dirá, lendo os meus versos plenos dela:
"O soneto de Arvers tem mais um
tradutor!"
O Soneto de Arvers vem sendo repetido em
inúmeras antologias, traduzido para várias línguas.
Dante, Petrarca, Shakespeare, Camões,
Herédia, Leconte de Lisle, Elisabeth Browning, Antero de Quental, tiveram
sonetos célebres, mas nenhum com a notoriedade, a divulgação, a sobrevivência
daquele que foi inspirado por Marie Menessier-Nodier.
No Brasil, as próprias produções originais
de muitos de nossos poetas ficaram impregnadas do pensamento contido no soneto.
E até o nome do autor, Arvers, passou a ser rima obrigatória para mulher...
Além das traduções, há as paródias, as
paráfrases, que concorrem ainda mais para a sua propagação.
E há, por outro lado, as
"alusões" ao soneto, como esta de Hermes Fontes, intitulada "O
Soneto de Arvers":
Teu soneto imortal, meu velho irmão de sonho,
não o escreveras tu, mestre, escrevera-o
eu;
revirgino-o em minha arte, em mim o
recomponho.
O teu soneto, Arvers, o teu soneto é meu.
É a tragédia de um bem frustrado; o Amor
tristonho:
Flora nova, a murchar antes do Gineceu!
Pois, se o teu desespero em minha angústia
ponho,
e o teu soneto... foi meu Nume que o
escreveu...
Amor puro é o de quem se agonia a
escondê-lo;
nasce do eterno ideal, vive da expiação,
bruxoleia no olhar! desmaia de ânsia e
zelo.
Tudo o que sinto agora é o que sentiste
então;
ah! por amor de um sonho, a Vida é um
pesadelo!
E, por amor da Vida — a Morte é redenção!
Interessante é este Soneto decassílabo, da
lavra de Francisco Patti:
Você talvez conheça a história: um poeta
amava uma mulher comprometida;
era grande a afeição, mas tão discreta
que aos pés dela passou despercebida.
Chamava-se ele Arvers. A França inquieta
não guarda o nome da mulher querida.
Esse nome hoje é símbolo e projeta
uma estranha poesia sobre a vida.
Evangelho do amor inconfessado,
o "Soneto de Arvers", certo,
resume
o tédio dos amores sem pecado;
tédio, sim, porque o bem que se presume,
não sendo obtido, nem talvez gozado,
é inútil como flores sem perfume.
E, finalmente, recordemos esta alusão ao Soneto de Arvers, da autoria de Nogueira Tapeti (1916):
Como Arvers, também tenho um segredo na
vida,
um segredo e uma angústia igual à que ele
tinha.
E, apesar de trazê-la em minha alma
escondida,
alguém há que este mal misterioso adivinha.
A beleza imortal nos teus versos contida,
teu "Alguém" lia, Arvers, sem
saber de onde vinha,
e o meu sabe demais, vive a ler, linha a
linha,
toda a história fatal de minha alma
incontida.
E certa, como está, que os meus versos são
dela,
que vem do seu olhar a rima que os
constela,
finge crer que os inspira o amor de outra
mulher.
Isto só para ungir-me em tristeza e
amargura,
conservando-me, assim, nesta horrível
tortura,
que é mil vezes maior que a tortura de
Arvers.
O Soneto de Arvers teve, também, algumas
"respostas".
Louis Aigoin fez a revelação de duas
respostas a Arvers, usando as mesmas rimas do famoso soneto.
Uma delas, que transcrevemos a seguir,
Louis Aigoin afirmou havê-la encontrado nos papéis de Marie Menessier-Nodier,
em 1896, três anos após sua morte. Estava, comi isso, querendo insinuar que
havia sido escrita pela própria Marie:
"Resposta a Arvers"
Ami, pourquoi nous dire, avec tant de
mystère,
que l'amour éternel en votre âme conçu
est un mal sans espoir, un secret qu'il
faut taire
et comment supposer qu'Elle n'en ait rien
su?
Non, vous ne pouviez point passer inaperçu,
est un mal sans espoir, un secret qu'il
faut taire
Parfois, les plus aimés font leur temps sur
la terre,
n'osant rien demander et n'ayant rien reçu.
Pourtant Dieu mit en nous un coeur sensible et tendre
Toutes, dans le chemin, nous trouvons doux
d'entendre
le murmure d'amour élevé sur nos pas.
Celle veut rester à son devoir
fidèle
s'est émue en lisant vos vers tout remplis
d'elle.
Elle avait bien compris... mais ne le
disait pas.
Essa resposta apócrifa a Arvers,
"inventada por Louis Aigoin", teve, segundo Mello Nóbrega, doze
tradutores: Lúcio de Mendonça, Álvaro Reis, Oscar d'Alva (pseudônimo de Reis
Carvalho), Heitor Práguer Fróes, Edmundo Lys (pseudônimo conhecidíssimo do
excelente poeta Antônio Gabriel de Barros Vale), Glaura Alvarenga (pseudônimo
da poetisa e tradutora Agmar Murgel Dutra), Benedito Lopes, Pedro Barros,
Anísio Melhor, A. Jacinto Junior, Souza Cordeiro e Vera Costa Viana.
Eis a tradução de Edmundo Lys:
Meu amigo, por que, de forma tão sentida,
dizeis que o eterno amor nascido num
momento
é uma dor sem remédio, e há de estar
escondida,
e como supor que Ela ignora esse tormento?
Vós não fostes jamais sombra despercebida,
nem deveis vos julgar num triste
isolamento:
os mais amados vão, às vezes, pela vida,
sem nada receber e sem um só lamento.
Deus, entanto, à mulher, deu uma alma
complacente
e ela por seu caminho irá mais docemente,
se um murmúrio de amor a segue onde ela vá.
Aquela que ao dever deseja ficar presa,
os versos, cheios dela, os sentiu, com
certeza,
e tudo compreendeu... mas nunca ela o dirá.
E, também, uma das mais antigas entre nós
(1931), a de Glaura Alvarenga:
Por que tanto mistério, Amigo, e tanto medo
ao dizer que este amor em vossa alma
nascido
é mal sem esperança, é eterno segredo,
se aquela que o inspirou se há bem
apercebido?
Não podíeis passar jamais despercebido
e viver assim só nesse cruel degredo.
Sem terem — quanta vez! — ousado ou
recebido,
os mais amados vão-se deste mundo tredo.
Toda mulher adora o murmúrio que aos passos
seus se eleva, de amor muitas vezes eterno,
— pois em todas Deus pôs um coração tão
terno...
A que não quer romper do seu dever os
laços,
os vossos versos leu e chorou de feliz:
ela bem compreendeu, mas dizer, ai! não
quis.
Por fim, mostramos a paráfrase de Benedito
Lopes:
Tu não deves falar assim, desiludido
em tanta desventura e tanto sofrimento,
crente de que esse amor nascido em um
momento,
nunca fora, por mim, deveras percebido.
Bendize ai tua dor e teu grande tormento,
certo de que não foste um instante
esquecido:
somente cabe a Deus que nosso pensamento
muita coisa não diz, sobre o que é
proibido.
Como toda Mulher, prezo o nobre carinho
e sigo solitária o meu reto caminho,
sendo sempre do amor honesta e enamorada;
e assim, fiel vivendo, entre anseios
diversos,
confesso-te que li os teus sentidos versos
e bem os compreendi, mas... não te disse
nada.
Félix Arvers viverá para sempre, porque foi
o autor de quatorze versos imorredouros. E Marie Nodier só vive na memória dos
homens porque foi a inspiradora desses versos.
Disse Lamartine:
'São os Dantes que fazem as Beatrizes, e
não as Beatrizes que "fazem os Dantes".
OS "OUTROS DOIS" SONETOS DE
ARVERS
Mello Nóbrega, autor do excelente livro
"O Soneto de Arvers" (“Mon âme a son secret"...); lembrou, em
bilhete endereçado a J. G. de Araújo Jorge, que o poeta francês, além daquele
célebre soneto, deixou apenas mais dois outros, ambos incluídos, também, no seu
único volume de versos "Mes heures perdues".
Sinceramente, são dois bons sonetos, embora
inferiores ao primeiro, mundialmente louvado e até endeusado, com toda justiça.
E o próprio Mello Nóbrega traduziu-os.
Transcrevemo-los, mais a título de curiosidade, pois, mesmo que tivessem mais
valor que o outro, teriam de, obviamente, ser relegados a segundo plano.
Ei-los:
FÉLIX ARVERS (1806-1850)
Outro Soneto" (II)
(Trad. de Mello Nóbrega)
Sempre sonhei achar num lar felicidade,
recanto em que minha alma, há tanto perturbada,
encontrasse, afinal, paz e serenidade,
repousando de longa e penosa jornada.
Uma mulher virtuosa, assim de minha idade,
dois filhos a brincar, junto à mãe
desvelada;
alguns vizinhos, numa roda de amizade,
e, em noites de verão, conversa descuidada.
Eu deixaria o amor à juventude ardente;
só queria uma amiga, uma alma confidente,
consolo à minha dor, que só ela notasse...
Bem mais do que eu pedia a existência me
trouxe:
— a amizade acabou sendo muito mais doce
e o amor apareceu, sem que eu o procurasse.
FÉLIX ARVERS (1806-1850)
"Outro Soneto" (III)
(Trad. de Mello Nóbrega)
(Trad. de Mello Nóbrega)
Para que esconder-te o amor não procurado
que minha fronte encheu de rugas deste
jeito?
Por que não revelar o mistério sagrado
que, até hoje, guardei no íntimo do peito?
Diamantes a brilhar em vaso de ouro feito,
de dons Deus te quis dar este quinhão
dobrado,
acumulando em ti quanto é do humano agrado:
o esplendor do talento em um corpo
perfeito.
Não sei o que fazer, pois, perplexa e
aflita,
minha alma, entre esses dois atrativos,
hesita.
Sem piedade, atacado assim pela surpresa,
hei de sofrer sem esperança de conquista:
— ainda que sem beleza, eu amaria a
artista,
ainda que sem talento, amaria a beleza.
(Das páginas 191 a 214 de
"O Mundo Maravilhoso do
Soneto", de Vasco de Castro Lima)
(Das páginas 191 a 214 de
"O Mundo Maravilhoso do
Soneto", de Vasco de Castro Lima)
Texto bem elaborado e muito informativo. Obrigado!
ResponderExcluirSONETO DE ARVERS
ResponderExcluirFélix Arvers – (1806-1850) – poeta francês
Minh´alma tem segredo e a vida seu mistério,
um amor eternal no instante conhecido,
o mal sem esperança é também muito sério,
mas aquela que o fez jamais terá sabido.
Ai de mim ! Passarei perto dela perdido,
sempre junto a seu lado e, no entanto, gaudério,
e terei justamente aqui meu tempo térreo,
não ousando pedir e nada recebido.
Por ela, que Deus fez de espírito tão brando,
ela caminhará, distraída e ignorando
o murmúrio de amor que aos seus passos irá;
para o austero dever, piedosamente fiel,
dos meus versos dirá, repletos do seu mel:
“Que mulher será esta? E não compreenderá.
Tradução de Ialmar Pio Schneider
Porto Alegre – RS, 6 de novembro de 2011-11-06
Adorei o texto . Obrigada!
ResponderExcluirAdorou o meu texto? Sabes o que é gaudério? É o campeiro que anda solito pelos pagos como o foi o Rodrigo Cambaará de Érico Veeríssimo. Obrigado !
ExcluirSONETO DE ARVERS
ResponderExcluirFelix - Alexis Arvers (1806-1850)
Em minh’alma um segredo e na vida um mistério
Guardo, de um grande amor que nasceu num momento.
É uma queixa sem par, um mal sem refrigério
E a que deu causa a isto nem ouve o meu lamento.
Ai!... Passo-lhe despercebido – despautério! -
Sim, ela nem sabe quem sou! E o meu sofrimento
Hei de levá-lo até ao desenlace funéreo.
Mas, posso ter seu amor se nem pedir eu tento?
Quanto a ela, seguirá com carinho e doçura
O traçado de Deus, qual meiga criatura,
E meus murmúrios de amor sequer ouvirá...
E, assim, fiel ao dever que a faz pura e bela
Indagará lendo estes versos plenos dela:
“Que mulher será esta?!” E não compreenderá!
Tradução de Léo Frederico de Las Vegas (heterônimo de Jaime Adilton Marques de Araújo)
Melgaço/PA, 16 de janeiro de 2011