Portugal


A Alma Errante do Soneto




PORTUGAL


A Lusitânia, situada na parte ocidental da península ibérica, foi, como vimos, um dos países conquistados pelos romanos.

O latim Vulgar, alterado, gerou, nessa região, o galaico-português, que, mais tarde, se transformou em duas línguas: o galego e o português.
Nos documentos forenses do século IX, como também registramos, já surgiram vestígios da nossa língua no latim bárbaro então em voga, embora só viessem a aparecer no século XII os primeiros textos escritos em português.

Tivemos, ainda, oportunidade de abordar o que foram, em Portugal, as épocas medieval, clássica, romântica, etc.

Circunstâncias diversas influíram na formação da literatura, além do fator raça e dos meios físico e social. Referimo-nos às influências estrangeiras: a "provençal" ou "francesa", muito forte, porque esteve em relevo na própria fundação do reino; a "espanhola", principalmente durante o domínio de Espanha; e a "italiana", no Renascimento, quando os diplomatas italianos, quase sempre literatos, se espalhavam pela Europa.

Francisco da Silveira Bueno lembra que "a literatura portuguesa começa pela poesia"; e explica: "Era natural que assim o fosse: a prosa, produto da razão já desenvolvida e cultivada, não poderia surgir senão nos séculos posteriores, quando as condições de cultura já fossem outras. Mas a poesia, conseqüência natural da sensibilidade e da imaginação, pouco pede e pouco exige para existir".

É de se registrar, por outro lado, que "em prosa não havia ainda modelos a imitar. O pouco que existia era escrito em latim medieval. Mas a poesia provençal atingia o seu ponto culminante e os seus trovadores percorriam todo o sul da França, espalhando-se pela península hispânica".

O introdutor do soneto, em Portugal, foi Francisco de Sá de Miranda (1495-1558), trazendo-o diretamente da Itália, onde, entre 1521 e 1526, o colheu nas fontes cristalinas de Dante e Petrarca. Naquele país, esteve em contato com Sannazaro, Bembo, Bocaccio e Ariosto, entre outros grandes escritores renascentistas.

Está desfeita a lenda segundo a qual o êxito de haver trazido o soneto para Portugal coubera ao Infante D. Pedro (1392-1449), regente do Reino durante a menoridade de seu sobrinho D. Afonso V, de 1.438 a 1448. Fidelino de Figueiredo e D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos põem "completamente de parte a hipótese de haver sido o soneto cultivado (em Portugal) antes de Sá de Miranda".

Portugal foi um dos países em que o soneto melhor se aclimatou. Bastaria citar Camões — não só o autor da maravilhosa epopéia "Os Lusíadas", mas, ainda, o burilador incomparável de sonetos, muitos dos quais dignos de figurar numa Coletânea de poemas universalmente celebrados. Mas, podemos lembrar, de relance, outros nomes que, através dos tempos, honraram e honram o soneto, no que ele possa ter de mais belo ou perfeito, como: Francisco Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo, Filinto Elísio, Nicolau Tolentino, Bocage, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Antônio Feijó, Fernandes Costa, Antônio Corrêa de Oliveira, Virgínia Vitorino, Gomes Lial, Gonçalves Crespo (aliás nascido no Brasil), Antônio Nobre. Eugênio de Castro, Júlio Dantas, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Maria Helena... Isto, para citarmos, neste preâmbulo, apenas alguns sonetistas. Deles e de muitos outros, transcreveremos, a seguir, composições admiráveis.

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Francisco de Sá de Miranda (1495-1558). Esteve cinco anos (1521-1526) na Itália, de onde regressou trazendo a técnica do soneto, uma das formas próprias da chamada "medida nova". Com o soneto, Sá de Miranda trouxe, ainda, outras formas poéticas.
Passando, então, pela Espanha, travou relações com Juan Boscán e Garcilaso de La Vega, que, também, se entregavam, em sua pátria, à mesma tarefa de estabelecer o novo estilo da poesia italiana (o "dolce stil nuovo").
"Quando Sá de Miranda esteve na Itália — lembra Clóvis Monteiro — entrava ali o movimento renascentista em língua italiana no seu período propriamente clássico".

Em Portugal, até então, só se conhecia, praticamente, o verso de sete sílabas, que era empregado nos vilancetes, nas cantigas e nas trovas, conforme se vê, por exemplo, no Cancioneiro de Resende (1516).

Sá de Miranda usava, inicialmente, o setissílabo. Mas, a nova exigência do tempo passou a ser o decassílabo à italiana (hendecassílabo), apresentado em tercetos, odes, canções, oitava rima e, com destaque, nos sonetos. Com esse novo verso, iniciou, em Portugal, o estilo literário, a que acima aludimos, reformando o teatro e a poesia lírica.

Juntou discípulos fiéis, destacando-se, entre outros, Antônio Ferreira e Diogo Bernardes, podendo-se acrescentar a estes os nomes de Pedro de Andrade Caminha, Frei Agostinho da Cruz, Jorge de Montemór, André Falcão de Resende e D. Manuel de Portugal.

Sá de Miranda empregava a tortura da forma. Ele próprio dizia, numa imagem interessante, que "retocava os seus versos com o minucioso amor com que a ursa lambe os filhos mal proporcionados". Garret disse que ele "filosofou com as musas e poetizou com a filosofia".
Cognominado, por alguns, o "Malherbe português", escreveu, além de outras obras, 29 sonetos. Não se pode afirmar que tenha sido um grande sonetista. Mas é indispensável seja aqui lembrado, no mínimo, em homenagem ao seu pioneirismo.

Era filho do Cônego Gonçalo Mendes de Sá e D. Inês de Melo. Nascimento irregular, muito freqüente naquele tempo. Com os recursos deixados pelo Cônego, seu pai, conseguiu ir à Itália, realizando, assim, uma grande aspiração. Irmão de Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil. Parente longínquo da famosa Vitória Colonna, ilustre poetisa italiana. Foi ela quem aproximou o poeta das rodas da arte e da literatura, na Itália. O que reproduzimos, a seguir, é um dos seus sonetos mais citados, considerado por Manuel Bandeira como "obra-prima da poesia lusa":


O sol é grande; caem co'a calma as aves
do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que cai do alto acordar-me-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração que em vós confia?
Passando um dia vai, passa outro dia,
incertos todos, mais que ao vento as naves.

Eu vi já por aqui sombras e flores,
vi águas e vi fontes, vi verdura,
as aves vi cantar todas de amores.

Mudo e seca é já tudo; e, de mistura,
também mudando-me eu, fui de outras cores;
se tudo o mais renova, isto é sem cura.


Rodrigues Lapa acha que este "é um dos mais belos e dolorosos sonetos da poesia portuguesa, um pouco misterioso, que tem dado motivo a numerosos comentários". E acrescenta: "Ainda não se pode considerar definitivamente esclarecido; sente-se, porém, que o poeta, no limiar da velhice, exprime nele a amargura sutil de ver como tudo se transforma na Natureza, numa incessante renovação. A alma, envelhecida, contemplava essas surpreendentes mutações, a fuga incoercível do tempo, com impotente melancolia". É, também, de Sá de Miranda este soneto:


Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tão contínua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos meus rogos, no tormento!

E ver no mal que todo entendimento
naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem não fará crer que é tudo um vento?

Bem sei uns olhos, que têm toda a culpa,
e são os meus, que a toda parte vêm
após o que vêem sempre e os desculpa.

Ó minhas visões altas, meu só bem,
que vos a vós não vê, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!


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Antônio Ferreira (1528-1569), discípulo e grande admirador de Sá de Miranda, com ele colaborou na introdução da Escola italiana em Portugal.

Ao contrário de outros poetas de seu tempo, que escreviam em português e espanhol, fez questão de escrever apenas em português. Um dos motivos de garbo, desse poeta, foi o zelo pela língua pátria.
Poeta e dramaturgo, é justamente considerado um dos maiores clássicos da língua. Exibimos um de seus sonetos, o de nº  XIII, incluído nos "Poemas Lusitanos", de sua autoria —Lisboa, 1598, 1ª edição:


Ó olhos donde Amor suas frechas
tira contra mim, cuja luz m'espanta, e cega,
ó olhos onde Amor s'esconde, e prega
as almas, e em pregando-as, se retira!

Ó olhos, onde Amor amor inspira,
e amor promete a todos, e amor nega,
ó olhos onde Amor também s'emprega,
por quem tão bem se chora, e se suspira!

Ó olhos, cujo fogo a neve fria
acende, e queima; ó olhos poderosos
de dar à noite luz, e vida à morte!

Olhos por quem mais claro nasce o dia,
por quem são os meus olhos tão ditosos,
que de chorar por vós lhes coube em sorte!

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Verso 1 — tira = atira.
Verso 3 — prega = fere, traspassa.


São de Antônio Ferreira estes versos, dos quais o primeiro é muito citado, até hoje:

"Não fazem dano as Musas aos Doutores.
Antes ajuda às suas letras dão,
e com elas merecem mais favores,
que em tudo cabem, para tudo são".



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Diogo Bernardes (1520-1605), também discípulo de Sá de Miranda, foi poeta notável, principalmente no "gênero pastoril". Alguns de seus sonetos fazem lembrar Camões" — diz Jânio Quadros — que acrescenta ser Diogo possuidor de "notável senso de composição do soneto". O rei D. Sebastião, que morreu na batalha de Alcácer-Quibir, havia escolhido esse poeta para cantar suas façanhas na empresa em que viria perder a vida. Mostramos um de seus sonetos, que Mayer Garção incluiu na coletânea "Os Cem Sonetos" (1920):


Horas breves do meu contentamento,
nunca me pareceu quando vos tinha,
que vos visse tornadas tão asinha
em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres que fundei no vento,
o vento mas levou, que mas sustinha;
do mal que me ficou, a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece,
tudo possível faz, tudo assegura,
mas logo no melhor desaparece.

Ó cegueira tamanha! ó desventura!
Por um pequeno bem que desfalece
aventurar um bem que sempre dura!

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NOTA — Verso 3: asinha = depressa.



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Pedro de Andrade Caminha (1520-1589). Descendente de família ilustre, Camareiro do Infante D. Duarte, Duque de Guimarães, inimigo de Camões, contra quem escreveu muitos epigramas. Segundo Nuno Catharino Cardoso, "por suas relações com o pai de Caterina de Ataíde, contribuiu para o mau resultado dos amores de Camões com esta Dama". Diante dos leitores, um seu soneto:

"À Virgem Sacratíssima Nossa Senhora"
Pedro de Andrade Caminha

Virgem e Mãe de Deus, quem tanto atina,
que saiba em vós falar? Quem mais levanta
a vós o entendimento, mais se espanta,
e perde a luz em vossa luz Divina.

Ante vós todo o Céu se humilha, e inclina,
de vós, Senhora, toda a Igreja canta,
todos vos chamam Santa, Santa, Santa,
que assi a santa verdade no-lo ensina.

Fostes de vosso Filho tam amada,
que toda, como a si, vos quis na glória,
como d'um cremos, d'outro confessamos.

Só de relíquias de vosso uso ornada
deixou a terra indigna a tal memória,
essas amamos, essas veneramos.

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Verso 8 — assi = assim. O advérbio, desse modo grafado pelo autor, é conservado, para não prejudicar, ainda mais, o ritmo.



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André Falcão de Resende (1535-1599). Sobrinho de Garcia de Resende, juiz em Torres Vedras e, mais tarde, auditor da casa de Aveiro. Amigo particular de Camões, escreveu em português e espanhol as suas produções poéticas; e alguns desses versos foram publicados juntamente com os do insigne poeta. Talvez por isso é que Theóphilo Braga afirma ser "evidentemente apócrifo" o seguinte soneto atribuído a André Falcão de Resende:

Para se namorar do que criou,
te fez Deus, sacra Fênix, Virgem pura.
Vede que tal seria esta feitura
que para si o seu Feitor guardou!

No seu alto conceito te formou
primeiro que a primeira criatura,
para que única fosse a compostura
que de tão longo tempo se estudou.

Não sei se digo em tudo quanto baste
para exprimir as raras qualidades
que quis criar em ti quem tu criaste.

És Filha, Mãe, e Esposa: e se alcançaste
uma só, três tão altas dignidades,
foi porque, a Três de Um só, tanto agradaste.


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Fernão Rodrigues Lobo Soropita (1562). Amigo e admirador de Camões, advogado e humanista. Preparou e dirigiu a primeira edição das "Rythmas de Luiz de Camões", aparecida em 1595, precedida de um elogioso prefácio. Teria findado seus dias no convento d'Arrabida. Em 1606 ainda vivia, uma vez que, nesse ano, parodiou "A Primavera", de Francisco Rodrigues Lobo, de quem era parente. Eis aqui um de seus sonetos:

Claros olhos azuis, olhos formosos,
que o lume destes meus escurecestes,
olhos que o mesmo Amor d'amor vencestes,
com vivos raios sempre vitoriosos;

olhos serenos, olhos venturosos,
que ser luz de tal gesto merecestes,
ditosos em render quantos rendestes,
e em nunca ser rendidos mais ditosos.

Que morra eu por vos ver, e que vos traga
nas meninas dos meus perpetuamente
cousa é que justamente Amor ordena.

Mas que de vós não tenha mais que a pena,
com que Amor tanta fé tão mal me paga,
nem o diz a razão, nem o consente.


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Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) — Agostinho Pimenta, na mocidade, escreveu versos 'de amor profano. Mas, em 3 de maio de 1560, segundo Augusto C. Pires de Lima, "começou o noviciado no convento de Santa Cruz de Sintra, e um ano depois vestia o hábito de capuchinho, tomando o nome de Frei Agostinho da Cruz". Pires de Lima, em "Poesias Seletas de Frei Agostinho da Cruz" (1941), publicou, do poeta, 27 sonetos, dentre os quais este "A Cristo na Cruz":

Assim como Vos vejo nessa cruz,
nu, despido de todo, assim me veja,
e como vós estais, meu Deus, esteja,
sem haver em mim mais que o meu Jesus.

Que, pois eu fui aquele que vos pus
despido nessa cruz, despido seja
de quanto me desvia, turba e peja,
para não contemplar a Vossa luz.

Quisestes Vós morrer na cruz despido
sendo Vós Senhor meu, eu servo vosso,
não pago Vossa morte com morrer.

Que, pois por mim já tendes padecido,
nem com morrer por Vós pagar-vos posso,
pois o morrer por Vós é mais viver.

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NOTA — Era irmão de Diogo Bernardes.



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Essas vozes antigas, muitas vezes, não soam bem aos ouvidos afinados de hoje. Mas, devemos reconhecer que continuam vigorando em nossos dias aquelas mesmas regras poéticas que vinham sendo seguidas, inclusive antes de Camões e Rodrigues Lobo, ou seja, desde o quinhentismo.

A língua lusitana, que veio dos trovadores dos "Cancioneiros", teve. obviamente, um início titubeante, mas os poetas da época construíram um pedestal digno do monumento que mais tarde veio a se erguer, belo, rico, maravilhoso.

Os poetas portugueses, do século XVI para cá, são portadores de nomes que escutamos constantemente invocados pelo seu valor e pelo gênio de suas inspirações. E isto é mais uma prova evidente da perenidade do soneto, que, em Portugal, viveu eras de esplendor com Camões, Bocage e Antero de Quental, respectivamente nos séculos XVI, XVIII e XIX. Aliás, esses três poetas se equiparam ao seu mestre Petrarca.


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Luís Vaz de Camões (1524-1580) era de origem fidalga, filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá de Macedo. De sua infância., quase tudo se ignora. Sabe-se, sem segurança, que adquiriu sua rica erudição no Colégio Santa Cruz, dirigido pelos padres de Santo Agostinho, em Coimbra. Além disso, hauriu conhecimentos profundos lendo Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio e Petrarca.

Além de "Os Lusíadas", em que se acham relatadas, com "engenho e arte", as incomensuráveis dificuldades que os portugueses arrostaram, intrépida e heroicamente, Camões escreveu centenas de outros poemas, destacando-se os seus sonetos, arrolados, muitos deles, entre os melhores da língua.

Lisboa, Coimbra, Santarém e Alenquer disputam a honra de sua terra natal. Mas, de acordo com as investigações mais dignas de crédito, parece ser Lisboa seu verdadeiro berço.

Diz a Delta Larousse: "Descendente de família de prosápia, mas decaída, talvez tenha feito o curso de artes no colégio do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dirigido pelos cônegos regrantes de Santo Agostinho, onde adquiriu os conhecimentos humanísticos patentes em toda a obra. Por volta de 1542, Camões se teria transferido para Lisboa, freqüentando círculos palacianos e, porventura, o próprio paço" (a corte de D. João III). Wilhelm Storck (1829-1905), escritor alemão, foi, de acordo com a 7ª edição, sem data, do livro "A chave dos Lusíadas" (Livraria Figueirinhas — Porto, com prefácio, paráfrase e notas de José Agostinho), "o mais seguro guia no estudo da vida de Camões". Pois bem, Storck afirma que Camões freqüentou a Universidade de Coimbra, segundo a opinião mais corrente, voltando, porém, de súbito, a Lisboa, no ano de 1545". E acredita que "esse repentino regresso seria devido a desavenças com seu tio D. Bento, frade do convento de Santa Cruz, e que lhe enrostava certos amorosos devaneios". Esclarece, ainda, que "na corte foi-lhe adversa a fortuna. Muito brigão e galanteador, muito invejado e guerreado por medíocres..."

Camões se apaixonou pela dama do paço D. Caterina de Ataíde, que imortalizou sob o anagrama de "Natércia", a musa lendária do poeta.

Caterina era filha do mordomo-mor do infante D. Duarte D. Antônio de Lima —, que, naturalmente, se opunha ao romance. A castelhana D. Maria Bocanegra, mãe de Caterina, também era contrária. Ao mesmo tempo, cresceram as hostilidades dos inimigos do poeta, que passou a ser o centro de um pretenso escândalo.
Diante desse quadro, o monarca exilou-o para o Ribatejo, em 1547. Tinha 23 anos e, inquieto, rogou a D. João III que o transferisse para o presídio de Ceuta (cidade da costa marroquina, que pertenceu a Portugal, de 1415 a 1580, quando passou para o domínio espanhol). O monarca o atendeu, e ele partiu para Ceuta, em 1549. Lá, como efetivamente desejava, Camões procurou na sorte das armas o esquecimento de si próprio e de suas infelicidades.

Conta-nos, porém, José Agostinho: "Mas Ceuta não lhe agradou muito mais do que o Ribatejo. Faltavam as sonhadas grandes pelejas, havia apenas escaramuças mesquinhas. A monotonia da vida e as saudades de Natércia dilaceravam-no, tanto que tentou suicidar-se".
Num ataque de mouros, bateu-se bravamente contra eles, perdendo o olho direito. A fama de sua valentia deu-lhe a esperança de comover os pais de Natércia.

Voltou a Lisboa em 1551. Em uma desordem, feriu, a espada, Gonçalo Borges, moço das cavalariças do rei. Por esse motivo, foi condenado a um ano de prisão e recolhido aos calabouços do Tronco, onde escreveu o primeiro canto de "Os Lusíadas". Lia as "Décadas", de João de Barros, quando arquitetou sua obra.

Passados nove meses, pediu o indulto, que lhe foi concedido pela corte, sob a condição de ir, imediatamente, servir na Índia. Agradecido, partiu, chegando a Goa em setembro de 1553.

Saudoso da pátria e de Natércia, aceitou o destino que lhe coube, de escrever e pelejar sempre. Distinguiu-se em várias batalhas, entre as quais as da expedição ao Chembe. Cumpriu missões guerreiras no estreito de Bab el Mandab, nas proximidades de Aden; e depois, em 1556 (mesmo ano em que Caterina teria morrido), foi designado para o cargo de "Provedor-mor de defuntos e ausentes". em Macau, onde permaneceu até 1558. Na verdade, o exercício de tal função, naquela distância, não era senão o disfarce de mais um degredo. E isto foi muito bom... pelo menos para a literatura(!).

Vamos ler o que, a respeito, nos revela o "Dicionário Popular": "Dois anos, aproximadamente, demorara Camões na China, e foi durante esse tempo que, segundo a fama, meditara e compusera na gruta de Macau a maior parte do seu poema" (do segundo ao sexto canto). "Foi aí, nessa "soidão querida", como diz Garret (“ó gruta de Macau, soidão querida") que a saudade da pátria completou, para assim dizer, todas as aptidões poéticas de Camões".

Por motivos ignorados, teve de voltar, preso, a Goa. A nau em que viaiava (de Macau para Goa) naufragou no mar da China (costa Cambodja), junto à foz do rio Mekong. O poeta, porém, conseguiu salvar-se a nado, segurando em uma das mãos o manuscrito de seu já quase terminado poema,

"o canto, que molhado
vem do naufrágio triste e miserando
dos procelosos baixos escapado".

Viveu algum tempo em Cambodja e só em 1560 chegou a Goa. Lá. sofreu, como sempre, acusações caluniosas, sendo novamente preso. Conseguiu justificar-se, foi posto em liberdade e, não obs-tante, continuou a ser perseguido. Mas, se tinha inimigos, também tinha amigos e admiradores. E um deles, o capitão de Moçambique, Pedro Barreto, trouxe-o, em 1567, para a sua capitania.

Camões, então, já havia terminado o poema, e em Moçambique deu-lhe forma definitiva. A consecução de seu ideal maior custou-lhe mais de vinte anos de trabalho sofrido, porém completo e fruto de um gênio poético dificilmente superável, onde quer que seja.

Afinal, pôde retornar a Lisboa, à custa de alguns amigos. Em 1570, cansado, humilhado, desiludido, em estado de miserabilidade, voltou a pisar o solo idolatrado. E logo após, em 1572, graças a alguns amigos e, principalmente, a D. Manuel de Portugal, o grande vate viu publicada a sua obra-prima, que serviria para, com esse infindável colar de maravilhas, compensar as desventuras da terra subjugada.

A primeira edição de "Os Lusíadas" saiu da oficina do impressor Antônio Gonçalves. Com a publicação do poema, D. Sebasião concedeu ao poeta uma tença anual de 15.000 réis, que nem sequer chegava para seu sustento. Embora "Cavaleiro Fidalgo da Casa Real", morreu pobre e abandonado.

Mercê da magnitude da epopéia camoniana, a história portuguesa não ficou truncada, de 1580 a 1640, período doloroso da dominação espanhola.

É tão soberbo esse poema, que nem a humildade da língua lusa impediu que ele fosse elevado às culminâncias da literatura universal, traduzido para várias línguas.

É "o evangelho cívico da pátria portuguesa" e uma das cinco grandes epopéias de todos os tempos. Uma epopéia como igual não possui a própria França, "a mãe intelectual dos povos".

Foi escrito em dez cantos e 1.102 estrofes em oitavas-rimas (ABABABCC), versos decassílabos heróicos. O tema principal é a descoberta do caminho das Índias via Ocidente, conseguida pelo navegador Vasco da Gama. Encerra, porém, retrospectos de episódios dramáticos da vida de Portugal, ocorridos desde a viagem descobridora até a época em que viveu o poeta.

A Delta Larousse registra: "Poema da cristandade conquistadora e dos novos horizontes ecumênicos do Ocidente, põe no centro da ação os lusíadas, os portugueses, descendentes de LUSO, companheiro de Baco e que foi o fundador mítico da Lusitânia. Pela projeção que teve e tem na língua literária portuguesa, é o seu monumento maior".

Diz o Lello Universal: "É o primeiro poema regular na literatura do Renascimento; tem ecos de Homero e de Virgílio, mas observa unidade e equilíbrio entre os seus elementos. Profundamente cristão, está cheio de eruditas recordações do paganismo. Atinge o sublime nos episódios de Inês de Castro, do Adamastor..." (....) "Termina profetizando altos destinos aos Portugueses. Um grande sopro patriótico anima o poema". (....) "O poema de Camões espelha a alma portuguesa com a sua feição sonhadora e amorosa, o seu entusiasmo, o seu espírito de aventura, o seu belicoso ardor. Camões criou um estilo seu, enriquecendo a língua do seu tempo com formas elegantes e originais, que ainda hoje são admiradas e estudadas".

Reafirmando as palavras do Lello, lembramos que Camões, quando criava lendas, como a do Adamastor, seu entusiasmo poético refervia e se agitava na luz sinistra dos relâmpagos e no rugir medonho dos trovões.

Schlegel disse que "Camões vale por si só uma literatura inteira". Humbolt chamou-lhe "o Homero das línguas vivas". Aliás, Camões foi poeta tão eminentemente nacional para Portugal, como Homero o foi para a Grécia.

Pimentel Maldonado, falando nas cortes de 1821, disse que "a Luís de Camões devemos a língua que falamos, e com ela a independência".

Ezra Pound, referindo-se ao poeta épico, chamou-lhe o "Rubens do verso".

Evaristo Leoni observou. "O conquistador que pretender subjugar a nossa querida pátria, há de primeiro rasgar, até a última página, o poema imortal dos Lusíadas".

Camões era um apaixonado de sua pátria. Quando, em 1580. Portugal caiu sob o domínio da Espanha, ele não resistiu. O coração do soldado e a alma do poeta sofreram o mesmo infortúnio incomensurável do seu povo. E morreu a 10 de junho daquele mesmo ano, na certeza de que Portugal também morria.

Eis aqui, a respeito, palavras expressivas estampadas pelo "Dicionário Popular" (Portugal):

— "Luís de Camões, no leito de morte, pensou, na sua fraqueza de moribundo, que tudo acabara com Alcacerquibir, ele e a pátria. Não, ó divino cantor das glórias portuguesas, quando um país possui um livro como o teu, esse país tem no livro imortal o braço miraculoso de um novo Cristo capaz de ressuscitar o cadáver deste grande Lázaro. E o teu livro, poeta, ou antes o sentimento profundamente patriótico que ele encerrava, estava destinado a fazer propaganda através de sessenta anos de cativeiro, e a restituir a liberdade, a vida, a independência do país escravizado".

Além das injustiças e dos sonhos perdidos, amargou padecimentos físicos e sofreu as maiores privações, a ponto de viver, nos últimos dias, das esmolas que seu escravo fiel "Jaú" (de nome António) ia pedir, de porta em porta, nas noites de Lisboa, sem revelar ao poeta o que estava fazendo. Esse escravo, que muito se lhe afeiçoara, era natural de Java, e o acompanhara de volta a Portugal.

Nem mesmo o seu túmulo existe mais, para receber as homenagens a que fez jus um dos mais eminentes portugueses de todos os tempos.

Sobre o fato, leiamos este excerto do "Dicionário Popular": "Dizem uns que Luís de Camões falecera no hospital; outros que morrera numa enxerga miserável do próprio domicílio, ou seja, na casa da calçada de Sant'Ana, que hoje tem uma lápide comemorativa. O que parece certo é que o cadáver de Camões, envolto num lençol que mandara a casa de Vimioso, fora conduzido à igreja das religiosas de Sant'Ana, e aí sepultado em campa rasa, até que, passados anos, segundo se diz, D. Gonçalo Coutinho fez trasladar as cinzas ilustres para um jazigo privativo, em cuja tampa mandou inscrever um epitáfio honroso, e digno do grande poeta. Mas, no dobrar dos tempos, uma grande calamidade pesara sobre Lisboa inteira: o terremoto de 1755, derruindo as paredes da igreja de Sant'Ana, confundira ossos e pedras, e nunca mais foi possível encontrar a sepultura de Camões. Todavia, o que os homens perderam, achou-o a glória".


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Camões não era, apenas, o poeta de "Os Lusíadas". Cantou também o amor, com uma inspiração que o ergueu à mais alta escala da lírica universal. E, a exemplo do que aconteceu com Petrarca, foi no soneto que ele conseguiu esse destaque extraordinário.

Não há desdouro para Camões, se lembrarmos que ele teve, em Petrarca, o seu modelo, não só na parte estrutural do soneto, como no platonismo do amor. De resto, não foi, apenas, discípulo, mas rival do poeta italiano.

Camões era um criador; não podia, porém, fugir à influência de Petrarca, a quem imitou, com inovações. Imitava-o, não por falta de originalidade, pois não precisava dos versos do grande poeta italiano para aumentar seu merecimento. Tratava-se de prática vulgarizada na literatura da Renascença. Valiam; então, os liames da escola.

As idéias de Platão influíram, também, na cultura e na sensibilidade de Camões. E a mística puríssima com que Petrarca divinizava a mulher amada, também existiu na poesia camoniana.

O oceano de sentimentos que nos transmite até hoje a lírica de Camões, terá, iniludivelmente, e sempre, a marca da imortalidade, mesmo que a sua linguagem venha a envelhecer muito mais do que tem envelhecido nestes quatro séculos.

Camões sofreu mais que Petrarca; daí a razão de ser mais enternecido, mais humano, o seu estro. Na lira camoniana não existiu apenas "a bem amada". Existiram várias fontes onde ele se deliciava em haurir a sua inspiração poderosíssima. Sua vida, pontilhada de esperanças e desenganos, de paixões e amargores, era, ao mesmo tempo, um romance de sofrimentos e um breviário de ternura.

Camões, poeta bilíngüe (português e castelhano), quando escrevia sobre o amor, fazia-o, também, iluminado pela luz suave e mágica das auroras e dos poentes. Ele deu ao Soneto, na língua portuguesa, a mesma dignidade, o mesmo valor, a mesma auréola de beleza que lhe conferiu Petrarca, na maviosa língua italiana.

Mas, vamos tratar da obra lírica de Luís de Camões!

Foi Natércia (Caterina de Ataíde) a verdadeira musa de seus Sonetos? Teria sido D. Francisca de Aragão? Isabel Tavares? A Infanta D. Maria, filha de El-rei D. Manuel I? Ou Dinamene, a amante, ou apenas musa, chinesa?

Foram todas, ou talvez não tenha sido nenhuma, porque Camões era, antes de tudo, um solitário. De qualquer maneira, a esta altura, não é mais possível apagar o nome de Natércia da imaginação popular. Para o povo português e para o mundo, Natércia foi o romance amoroso do poeta, embora jamais tivesse, ele, qualquer tipo de contato com a dama do paço de D. João III, desde que, ainda moço, foi afastado de Lisboa, vivendo exilado, ou desterrado, 16 anos. Quando voltou à pátria, para morrer, Natércia havia falecido 14 anos antes.
Desejamos relembrar que Camões, em seus sonetos de amor. citou, nominalmente, apenas Natércia e Dinamene.

Sabe-se que as poesias líricas do famoso épico foram roubadas em vida do autor. E só com o rodar do tempo se conseguiu reconstituir essa obra realmente maravilhosa.
O hercúleo trabalho foi iniciado por Fernão Rodrigues Lobo Soropita, contemporâneo do poeta. E vários outros homens de letras continuaram a tarefa, que teria sido terminada, ou quase terminada, com os esforços do Visconde de Juromenha, autor de uma excelente biografia do poeta. Assim, não se perderam tantos tesouros líricos do grande cantor das façanhas portuguesas.

Seus sonetos formam uma coleção de ditirambos capaz de, pelo menos, igualar-se aos mais flamejantes hinários compostos em louvor à graça, à beleza, à espiritualidade da mulher. Bastariam, eles, para consagrá-lo como gênio da humanidade. Mais que isto: o gênio do poeta conservou o Soneto no seu pedestal de luz.

Camões foi, portanto, um perfeito reflexo da alma lusitana do século XVI, distinguindo-se, não só nas lutas de cavalaria, como nas empresas do amor.

O soneto com que abrimos estas páginas à arte camoniana é uma pequena amostra de sua lírica multiforme. Tenta explicar o que é o Amor; e, nessa explicação, perde-se num emaranhado de sentimentos conflitantes, chegando à conclusão poética de que o Amor é contrário a si mesmo:

Amor é um fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;

é um não querer mais que bem querer!
É solitário andar por entre a gente;
é um não contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é um ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo Amor?


Aqui, é um canto de louvor e um ato de humildade à sua musa, talvez Natércia:


Quem vê, Senhora, claro e manifesto
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só com vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e a alma por querê-los;
donde já me não fica mais de resto.

Assim, que alma, que vida, que esperança,
e que quanto for meu, é tudo vosso:
mas de tudo o interesse eu só o levo;

porque é tamanha bem-aventurança
o dar-vos quanto tenho e quanto posso,
que quanto mais vos pago, mais vos devo.


Continua o preito de amor. Agora, porém, com profundas marcas de tristeza, pedindo a todos e a tudo que ouçam, para se consolarem, a história de seus amargores:

Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas não cansadas de cansar-me;
pois não se abranda o fogo em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar.

Não canse o cego Amor de me guiar
onde nunca de lá possa tornar-me;
não deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto a fraca voz me não deixar.

E, se em montes, se em prados, e se em vales
piedade mora alguma, algum amor
em feras, plantas, aves, pedras, águas;

ouçam a longa história de meus males,
e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.



Se aquela que o poeta chama "Senhora" tiver de penalizar ou matar a quem pretenda o seu amor, então comece por ele. Quer ser imolado em primeiro lugar:

Se pena por amar-vos se merece,
quem dela estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
no instante em que vos vê não obedece?

Qual mor glória na vida se oferece,
que a de ocupar-se em vós o pensamento?
Não só todo o rigor, todo tormento
com o ver-vos não magoa, mas se esquece.

Porém se heis de matar a quem, amando,
ser vosso de amor tanto só pretende,
o mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim podeis, Senhora, ir começando,
pois bem claro se mostra e bem se entende
amar-vos quanto devo e quanto posso.



No momento em que Camões concebia este soneto, seu lirismo era mais puro que a taça de uma flor, transbordante de perfume, arte, beleza e resignação:

Presença bela, angélica figura,
em quem quanto o Céu tinha nos tem dado;
gesto alegre de rosas semeado,
entre as quais se está rindo a Formosura;

olhos, onde tem feito tal mistura
em cristal puro e negro marchetado,
que vemos já no verde delicado
não esperança, mas inveja escura;

brandura, aviso, e graça, que aumentando
a natural beleza co'um desprezo,
com que mais desprezada mais se aumenta:

São as prisões de um coração que, preso,
seu mal ao som dos ferros vai cantando,
como faz a sereia na tormenta.


A serena labareda de uma vela que alumiava o rosto da Musa, foi alimentada por outra muito mais poderosa, a do desejo, formando, juntas, uma flama que se igualou à luz do sol. E essa flama, assim fortalecida, foi beijar a amada, apagando os seus ardores:

O fogo que na branda cera ardia
vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
da grande impaciência fez despejo,
e remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama que se atreve
a apagar seus ardores e tormentos
na vista a quem o sol temores deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.


Natércia foi, verdadeiramente, a musa maior de Camões, que lhe dedicou seus melhores sonetos líricos. Mas, o que se segue é o único em que o poeta a ela se refere, nominalmente:

Na margem de um ribeiro, que fendia
com líquido cristal um verde prado,
o triste pastor Lyso debruçado
sobre o tronco de um freixo assim dizia:

Ah, Natércia cruel! quem te desvia
esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
enganado de ti viver queria.

Que foi daquela fé que tu me deste?
Daquele puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?

Quando esses olhos teus n'outro puseste,
como te não lembrou que me juraste
por toda a sua luz que eras só minha?


O poeta, desesperançado e dramático, não consegue esconder seu sofrimento:

Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
pois mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê.


Os historiadores falam pouco em Dinamene, a musa chinesa de Camões. Não há dúvida de que existiu, sabendo-se que morreu afogada, à sua vista. O poeta a ela se refere, sem lhe citar o nome, pelo menos em alguns de seus sonetos; e, nominalmente, neste, em que alude, não só à morte, mas, servindo-se de imagens, à própria causa do desaparecimento de Dinamene:

Ah! minha Dinamene! assim deixaste
quem nunca deixar pôde de querer-te!
que já, Ninfa gentil, não possa ver-te!
que tão veloz a vida desprezaste!

Como por tempo eterno te apartaste
de quem tão longe andava de perder-te!
Puderam essas águas defender-te
que não visses quem tanto magoaste?

Nem somente falar-te a dura morte
me deixou, que apressada o negro manto
lançar sobre os teus olhos consentiste.

o mar, ó céu, ó minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
se inda tenha por pouco o viver triste?


O soneto que adiante assinalamos é, como tantos e tantos outros, repassado de angústia e descrença:

Quando os olhos emprego no passado,
de quanto passei me acho arrependido;
vejo que tudo foi tempo perdido,
que todo emprego foi mal empregado.

Sempre no mais danoso mais cuidado;
tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
de desenganos menos advertido
fui, quando de esperanças mais frustrado.

Os castelos que erguia o pensamento,
no ponto que mais altos os erguia,
por esse chão os via em um momento

Que erradas contas faz a fantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
triste o que espera! triste o que confia!


Desta vez, contrariando o seu amargo e habitual platonismo, Camões tece ao "desejo meu" um hino de majestosa euforia. E exorta o coração a ampliar esse ousado sentimento:

Crescei, desejo meu, pois que a ventura
já vos tem nos seus braços levantado;
que a bela causa de que sois gerado
o mais ditoso fim vos assegura.

Se aspirais por ousado a tanta altura,
não vos espante haver ao sol chegado;
porque é de águia real vosso cuidado,
que quanto mais o sofre, mais se apura.

Ânimo, coração; que o pensamento
te pode inda fazer mais glorioso,
sem que respeite a teu merecimento.

Que cresças inda mais é já forçoso,
porque se foi de ousado o teu intento,
agora de atrevido é venturoso.


De Camões, oferecemos, agora, aos leitores, um dos mais belos, mais perfeitos e mais populares sonetos da língua portuguesa:

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só, por prêmio, pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que, com enganos,
assim lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começou a servir outros sete anos,
dizendo: "Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida".


O mais conhecido e um dos mais belos entre os sonetos de Luís de Camões é o seguinte:

Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente
e viva eu, cá na terra, sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente,
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te;

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


Segundo lembra Cruz Filho, este soneto "foi dedicado à memória de Dinamene, moça chinesa a quem se teria afeiçoado o poeta, no Oriente, e que pereceu afogada, à sua vista".

Outros, e são muitos, entre os quais o Lello Universal, pretendem tenha sido Caterina de Ataíde (Natércia) a musa inspiradora do grande soneto.

Cabe-nos fazer, a respeito, não qualquer tipo de confirmação ou, mesmo, de reparo, mas, apenas, alguns registros que podem aguçar o raciocínio de observadores porventura desejosos de tirar conclusões.
Caterina, que jamais deixou de habitar o coração e o pensamento de Camões, morreu, moça ainda, no ano de 1556, época em que o poeta chegava a Macau. Ele, porém, só foi tomar conhecimento do fato em 1558 ou 1559, quando, levado preso de Macau, achava-se em Goa.

Dinamene era chinesa e Camões conheceu-a entre 1556 e 1558. Amou-a sem saber da morte de Caterina.

Ambas, portanto, haviam "partido" pouco antes de o poeta escrever este soneto, "Alma minha...” Teria escrito os famosos quatorze versos, abalado com a morte de Dinamene? Ou o teria feito já em Goa, ao receber a notícia do falecimento de Caterina?

A dúvida tem de persistir, considerando-se, inclusive, que o tratamento de "tu", como está aí, o poeta usava mais quando se dirigia a Dinamene. A Caterina, pelo menos em noventa por cento de seus sonetos de amor, dava o tratamento de "vós" e “Senhora".

Além disso, Camões, no soneto que há pouco destacamos, dedicado, nominalmente, a Dinamene, expressa pensamentos algo semelhantes aos de "Alma minha", pois também pranteia, com versos sentidos, a morte da chinesinha, a quem diz: “Ah minha Dinamene... deixaste quem nunca deixar pôde de querer-te... Ninfa gentil, que tão veloz a vida desprezaste... qual vida perderei que valha tanto, se inda tenha por pouco o viver triste?"

Alguém poderia, talvez, julgar que tomamos o partido de Dinamene. Absolutamente, não! Apenas registramos os acontecimentos. não fugindo à sua cronologia. Na verdade, a indecisão existe, e continua de pé.

Vamos adiante, pois, em torno desse soneto, temos, ainda, dois pontos a abordar: o primeiro, sobre o discutido plágio de Camões: e o segundo, sobre o cacófato "alma minha".

Primeiro ponto:
Inúmeros comentadores apressados da lírica de Camões, entre os quais Hernani Cidade, professor, jornalista e ensaísta português, acham que o soneto de Petrarca "Anima bella, da quel nodo sciolta..." serviu de tema para este soneto de Camões "Alma minha gentil que te partiste...”

O professor Silveira Bueno, brasileiro, escreveu, a respeito, um interessante e judicioso trabalho, publicado pela "Revista Brasileira" (Academia Brasileira de Letras — Março, 1943 — nº 5).

Depois de repetir os dois sonetos, italiano e português, assim se manifestou:
— "Para as pessoas que podem ler estes dois sonetos em suas línguas originárias, deve haver grande espanto de existir unanimidade de opinião sobre a influência do primeiro no segundo. Influência de quê? Do primeiro hemistíquio do primeiro verso: "Anima bella" sobre o correspondente "Alma minha gentil?"

Prossegue o ilustre professor comparando as duas produções, verso por verso, pensamento por pensamento. E conclui:
— "Não se sabe por que foram todos encontrar semelhanças de inspiração e, mais do que semelhanças, por que foram dar o primeiro como fonte do segundo, quando muito pouco, um quase nada de longínqua reminiscência de tema e, assim mesmo, com boa vontade, se poderia encontrar no confronto de ambas as composições".

Silveira Bueno acha, isto sim, que Camões, para escrever o seu soneto., foi buscar inspiração, não em Petrarca, mas em Giovanni Guidiccioni, um poeta lírico do século XVI (1500-1541).

Diz Silveira Bueno:
— "Comparando a letra e o espírito desta canção italiana com a letra e o espírito do soneto camoniano, veremos que há entre ambos muito maior afinidade que entre os pálidos versos de Petrarca e a dolorosa tristeza de Camões". (....) "Ver-se-á que o poeta português, tocado de genialidade, disse tudo o que o outro dissera, mas de um modo insuperável, com uma elegância e sobriedade de expressões que o outro jamais conseguiu obter. Longe, portanto, de nós a sombra de plagiato. Camões é muito grande para necessitar de flores alheias e somos muito pequenos para pensar em arremessar-lhe o mais mínimo dos salpicos de lama com que iríamos macular a refulgência de sua imortalidade".

No capítulo inicial deste livro, tentamos explicar que os clássicos modernos não copiam, apenas imitam os clássicos antigos. Citamos, inclusive, os exemplos de Virgílio, de Tasso e do próprio Camões, que imitaram Homero.

O mesmo pensamento podemos aplicar ao lírico Luís de Camões, em relação a Petrarca, ou a Giovanni Guidiccioni. E, para tanto, basta-nos reproduzir o que, nesse sentido, escreveu Silveira Bueno:
"Os gênios não plagiam. Os gênios são como essas torres poderosas que captam as ondas esparsas na atmosfera e as transformam em som, em música inspirada. Em todos os tempos há sempre um determinado número de pensamentos, de sentimentos que vivem palpitando nas ondas do céu como expressões iguais de almas também iguais. Os grandes inspirados apanham essas idéias, apreendem esses sentimentos que são também seus e os transformam em poesia, em sonetos, em canções, em poemas. O pensamento é o mesmo, é o mesmo sentimento, porque o coração humano é sempre igual ao coração humano; mas a forma, a maneira de expressar esse comum sentir é que difere".

Segundo ponto:
A expressão "alma minha", geralmente criticada por formar um cacófato, era própria do século XVI, quando diversos clássicos empregavam frases como estas: "amigo meu", "amiga minha", "alma minha", etc. Todos, principalmente os literatos, estudavam o latim puro, onde se usavam "amicus meus" (e não "meus amicus"), "anima mea" (e não "mea anima"). E os escritores da época mostravam, normalmente, a influência marcante da sintaxe latina.

O mesmo Camões fez isto outras vezes. Por exemplo: o soneto que começa com o verso "Ah Fortuna cruel! Ah duros Fados", termina com estes:

De queixar-te, alma minha, te retira:
alma, de alto caída em penas graves,
pois tanto amaste em vão, em vão te queixa".


*

Tivemos, já, oportunidade de registrar que, em vida de Camões, publicou-se, apenas, o seu poema épico. Quanto às poesias líricas, foram-lhe roubadas, e ele, assim, não as viu em letra de forma. Até o dealbar do século XX, supunha-se que, graças ao extraordinário empenho de Soropita e Juromenha, estava reconstituído o restante da obra do famoso poeta. Mas, compreensivelmente, teria havido equívocos. Sonetos dele, atribuídos a outros. Sonetos alheios, a ele creditados. Sonetos que se perderam. Talvez, até, sonetos que o poeta rabiscou, não chegando a retocá-los. Dá para se notar que, a muitos dos sonetos ditos de sua autoria, falta algo daquele fulgor intenso e inultrapassável que estamos habituados a ver em suas produções geniais. Contudo, o resultado da recolha foi muito auspicioso: Camões teria escrito, além de outros poemas, 285 sonetos.

Temos diante de nós uma coletânea intitulada "Sonetos", editada, em 1911, pela Livraria — Editora Garnier Irmãos (Rio de Janeiro e Paris), contendo 230 "Sonetos de Amor", de Camões, e 375 "Sonetos Completos", de Bocage.

A Enciclopédia Delta Larousse, no verbete "Camões (Luís Vaz de)", registra o seguinte: "A totalidade da obra dramática, quase toda a lírica e as cartas são de publicação póstuma. As obras assim publicadas apresentam uma de duas características: ou incluíram mais coisas que o poeta escreveu, originando um intrincado problema de autoria"...  "ou, por justo escrúpulo, nem sempre isento de excessos, menos do que ele compôs".

Mas, essa própria Enciclopédia acha que, atualmente, graças ao trabalho conjunto de pesquisadores modernos, entre os quais Agostinho de Campos, Wilhelm Storck, José Maria Rodrigues, Afonso Lopes Vieira, Costa Pimpão, Hernani Cidade, e outros ainda, "pode atribuir-se a Camões, com toda a prudência, salvo revisão posterior: 211 sonetos, 15 canções, 3 sextinas, 13 odes, 11 elegias, 5 oitavas, 9 éclogas, 142 redondilhas, 3 autos e 4 cartas, afora "Os Lusíadas", sobre os quais nunca pairaram dúvidas".

Não deverá estar certa, salvo melhor juízo, nenhuma das três fontes. São grandes as diferenças verificadas nos diversos depoimentos em relação ao número de sonetos produzidos por Luís de Camões.  E há dúvidas, também, sobre a autoria, ou não, de produções do poeta.

Nós, que não temos por escopo estudar, em detalhes tão sutis, as vidas e as obras dos sonetistas — e nem disporíamos de condições para tal - deparamos, no decorrer de nossas pesquisas, com numerosos fatos dúbios e, mais que isso, polêmicos, dentre os quais recordamos dois, justamente envolvendo Camões e, portanto, com sobras de razão e de oportunidade para serem focalizados:

1) O soneto que figura na coletânea acima referida,  sob  o n° CXLII e começa pelo verso "Horas breves de meu contentamento.", não pertence a Camões, mas a Diogo Bernardes, assim mencionado pelo poeta Mayer Garção, no florilégio "Os cem sonetos" que organizou para a editora "Portugal-Brasil Ltda.” de Lisboa, 1920. Já o intercalamos folhas atrás, apontando seu verdadeiro autor.

2) O soneto estampado na coleção sob o n° CCXXIX e que principia pelo verso " Formoso Tejo meu, quão diferente...”, é transcrito na mesma coletânea como de autoria de Luís de Camões. Também o livro "Sonetos de Camões", editado pela "Empresa Literária Fluminense, Limitada — Lisboa" (Tip. da Imprensa Portuguesa — Rua Formosa, 116 — Porto MCMXXIV — 3ª edição), insere doze sonetos  “inéditos" de Luís de Camões, entre os quais este, extraídos de um manuscrito que pertenceu ao Visconde de Juromenha e publicados numa edição de 1861. O Visconde, porém, não deveria estar tão convicto de sua afirmativa, pois ele próprio disse que esse manuscrito se apresentava incompleto. Aliás, segundo voz geral e, principalmente, de acordo com as opiniões abalizadas de Camilo Castelo Branco, Theóphilo Braga e Carolina Michaëlis de Vasconcelos, este belíssimo soneto foi escrito, mesmo, por Francisco Rodrigues Lobo.


*

Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622) foi, pela pureza de sua linguagem, clássica e impecável, um dos melhores escritores do seu tempo, considerado "o Teócrito português". Dizia ele que o homem de letras há de ser "bacharel em linguagem".

Bucolista delicado, natural e simples, sendo, nesse particular, um continuador da tradição de Bernardim Ribeiro. Escreveu, em espanhol, suas primeiras poesias. Foi o melhor poeta seiscentista de Portugal. Destacou-se na formação do estilo barroco na Península.

Sobre esse poeta, segundo observação de Fidelino de Figueiredo, exerceram atração "as águas vivas, os rios e os regatos, os mares e os lagos". E, como que cumprindo uma predestinação, morreu afogado no Tejo, em viagem de Santarém para Lisboa. Evoquemos o seu soneto "Formoso Tejo meu...”, que é como um diálogo com o rio que o tragaria:

Fermoso Tejo meu, quão diferente
te vejo e vi, me vês agora e viste:
turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
a quem teu largo campo não resiste;
a mim trocou-me a vista, em que consiste
o meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
sejamo-lo no bem. Ó quem me dera
que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca primavera:
tu tornarás a ser quem eras d'antes,
eu não sei se serei quem d'antes era.


(Apud Carolina Michaëlis de Vasconcellos, "As Cem
Melhores Poesias Líricas da Língua Portuguesa"
Londres, 1910).



*

Francisco Manuel de Melo (1608-1666) foi, com Rodrigues Lobo, dos escassos sonetistas de algum valor naquela época. Nas "Obras Métricas" publicou sonetos, além de éclogas e poemetos de grande beleza, destacando-se pela elegância da forma. Um grande lírico.

Desterrado para o Brasil, por se ter envolvido em uma aventura noturna no palácio da Condessa de Vila Nova do Portimão. Ali, se batera em duelo, à espada, altas horas da noite, com o monarca D. João IV, que, no palácio, também se encontrava por motivos idênticos...  

Foi um clássico das duas línguas: portuguesa e espanhola.

Rebelo da Silva, na sua "História de Portugal", diz que Francisco Manuel de Melo "era o primeiro erudito do seu tempo e talvez o prosador mais conciso e substancioso da língua portuguesa". Cogominado "o Tácito português".

Disse Theóphilo Braga que "os seus sonetos podem equiparar-se, em melancolia, verdade e delicadeza de expressão, aos de Camões". Um deles:

Melhor há de mil anos que me grita
uma voz que me diz: "És pó da terra"!
Melhor há de mil anos que a desterra
um sono, que esta voz desacredita.

Diz-me o pó que sou pó? e a crer me incita
que é vento, quanto neste pó se encerra:
Diz-me outro vento que esse pó vil erra.
Qual destes a verdade solicita?

Pois se mente este pó, que foi do Mundo?
Que é do gosto? que é do ócio? que é da idade?
Que é do vigor constante, e amor jucundo?

Que é da velhice? que é da sociedade?
Tragou-me a vida inteira o mar profundo?
Ora, quem diz sou pó, falou verdade.


Este outro soneto de D. Francisco Manuel de Melo é de estilo gongórico:

Junto do manso Tejo, que corria
para o mar, que nos braços o esperava,
jaz um pastor, que no semblante dava
mostras da dor que o coração cobria.

Falava o gesto quanto n'alma havia,
que, quiçá por ser muito, ela o calava;
mas, vencido do mal que o atormentava,
sem licença do mal, assim dizia:

Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo,
pois vives sem fortuna, de que esperes
que encaminhe teu passo a seu desejo.

Vás, e tornas, e irás como vieres.
Ditoso tu, que vês o que eu não vejo!
Ditoso tu, que vás adonde queres!



André Rodrigues de Matos (1638-1698) foi sócio das Academias dos "Generosos" e dos "Singulares". Escreveu, em 1690, o "Diálogo fúnebre entre o Reino de Portugal e o Rio Tejo", glosando o célebre soneto "Formoso Tejo meu, quão diferente te vejo e vi..." Desgostoso com o frio acolhimento obtido pela sua tradução da "Jerusalém Libertada", de Torquato Tasso, retirou-se para uma quinta, onde faleceu.

Em destaque, este belo soneto, que, segundo Alberto de Oliveira, está incluído, com o seu nome, na "Fênix Renascida", vol. V, ano de 1728:

Alegre Pintassilgo, flor vivente,
ão cantes, lisonjeia um desgraçado;
suave fontezinha, alma do prado,
não corras, acompanha um descontente.

Vejo que entre essas ramas, livremente,
festivo zombas do meu triste fado;
julgo que entre essas penhas, sem cuidado,
murmuras, rindo, do que peno, ausente.

Mas já que corres livre, sem demoras,
bate essas asas, acelera o passo,
e vai saber de um bem que ausente adoro.

E se queres chegar em breves horas,
voa com estas penas que aqui passo,
corre com estas águas que aqui choro.





*

A segunda metade do século XVIII marcou o prenúncio da fase romântica. As Arcádias literárias revelavam o crepúsculo do período anterior.

Domingos dos Reis Quita (1728-1770), Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772), João Xavier de Matos (1730/1735-1789), Antônio Diniz da Cruz e Silva (1731-1799), Domingos Maximiano Torres (1748-1810), Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811), Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818), Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), Filinto Elísio (1734-1819), Belchior Manuel Curvo Semedo (1766-1839), a Marquesa de Alorna (1750-1839), foram poetas responsáveis pela evolução do gênero, em fins do século, seguindo-se Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), que foi, segundo observação do crítico Sotero dos Reis, "o último poeta clássico digno desse nome, ou antes um intermediário entre clássicos e românticos". Semedo foi rival, depois amigo de Bocage.


*

Domingos dos Reis Quita (1728-1770). Órfão de pai, aos 13 anos, teve de ser aprendiz de cabeleireiro, mal ganhando para se manter e sustentar os seus familiares. Muito lhe adiantou a leitura das obras de Camões e de Francisco Rodrigues Lobo, dos quais era admirador. Com a proteção do conde de São Lourenço, pôde abandonar a modesta carreira que abraçara; e foi um dos fundadores da "Arcádia Ulissiponense", da qual também participaram Correia Garção e Cruz e Silva, entre outros nomes então muito ilustres. Poeta lírico, era considerado por Almeida Garret o melhor bucólico português. Salientamos um de seus sonetos:

Pelo campo cantando vai contente
o Lavrador seguindo o curvo arado:
e canta na prisão o desgraçado,
ao triste som de uma áspera corrente.

Aquele, canta alegre, e docemente,
nas suaves pensões de seu Estado;
este, só por vingar-se de seu fado,
com o Canto disfarça o mal que sente.

Eu também já em doces alegrias,
qual Lavrador, cantei nesta espessura,
sem conhecer do Fado as tiranias:


porém hoje de Amor na prisão dura,
com o Canto disfarço as agonias,
por vingar-me de minha desventura.



Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772). Como Reis Quita, um dos fundadores da "Arcádia Ulissiponense". Foi perseguido pelo Marquês de Pombal, que mandou prendê-lo. Ficou oito meses incomunicável, não se sabendo, ainda hoje, a causa determinante desse fato. Por incrível coincidência, morreu exatamente no instante em que sua esposa chegava à prisão com uma ordem de soltura para o poeta. Escreveu odes, comédias, epístolas, sonetos. A "Cantata de Dido", segundo Garret, "é uma das mais sublimes concepções do engenho humano, uma das mais perfeitas obras executadas pela mão do homem".

De Correia Garção, trasladamos um soneto que dedicou "A uma senhora a quem o autor chamava sua mãe":

Comigo minha mãe brincando, um dia,
a namorar c'os olhos me ensinava;
mas Amor, que em seus olhos, me esperava,
com mil brilhantes farpas me feria.

De quando em quando mais formosa ria,
porque incapaz do ensino me julgava;
porém tanto a lição me aproveitava,
que suspirar por ela já sabia.

Em poucas horas aprendi a amá-la:
ditoso se tal arte não soubera,
não me custara a vida não lográ-la.

Certo, que aprender menos melhor era;
pois não soubera agora desejá-la,
nem de tão louco amor enlouquecera!


*

João Xavier de Matos (1730/1735-1789) cursou Direito em Coimbra, mas renunciou à magistratura, entrando para a boêmia literária, inclusive dando-se ao vício da bebida. Teve grandes divergências com o poeta brasileiro José Basílio da Gama que, entretanto, lhe reconhecia os dons artísticos.
Pertencia à Arcádia Portuense, adotando o nome de Albano Eritreo.

É autor deste soneto "Pôs-se o sol", verdadeira página mitológica, de inspiração romântica:

Pôs-se o sol... Como já na sombra feia,
do dia pouco a pouco a luz desmaia!
E a parda mão da Noite, antes que caia,
de grossas nuvens todo o ar semeia!

Apenas já diviso a minha Aldeia;
já do cipreste não distingo a faia:
Tudo em silêncio está. Só lá na praia
se ouvem quebrar as ondas pela areia...

Com a mão na face, a vista ao Céu levanto;
e cheio de mortal melancolia,
nos tristes olhos mal sustenho o pranto;

e se ainda algum alívio ter podia,
era ver esta Noite durar tanto,
que nunca mais amanhecesse o dia!


*

Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) fundou, em 1756, a "Arcádia Lusitana", de que foi, com Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772), o animador principal. Na Arcádia, Cruz e Silva tinha o nome de "Elpino Nonacriense"; e Correia Garção o de "Coridon Erimanteu". Também figuraram entre os fundadores da Arcádia, Gomes de Carvalho e Esteves Negrão, juristas como Cruz e Silva.

Desembargador no Rio de Janeiro, em 1776, Cruz e Silva conheceu bem o Brasil, e aqui escreveu inúmeras poesias. Voltou para Lisboa, mas, em 1790, teve de regressar ao Rio, para cumprir missão ingrata: julgar os réus da Inconfidência Mineira, entre os quais, como se sabe, existiam poetas também como ele, que teve de condenar. É seu este soneto:

— "Esse barco, que corta velozmente
do claro Tejo a veia cristalina,
ó doce mãe do Amor, bela Ericina,
todo o meu bem me leva cruelmente.

Mas já que é tão feliz, Deusa, exprimente
de tua estrela a proteção divina:
de alegres auras viração benina
ao doce porto o leve felizmente".

Isto dizia Elpino, acompanhando
com os tristes olhos um batel ligeiro,
que quase no horizonte se ocultava.

Turva se foi a noite então cerrando,
e o pastor, entre o denso nevoeiro,
os olhos pelas ondas alongava...


*

Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811). Formado em Direito, não obstante ser filho de pais pobres. Professor de retórica e funcionário público de categoria elevada. Suas obras se caracterizam pela sátira e pela ironia, em que foi exímio esgrimista do verso. Não pertenceu a nenhuma agremiação literária. O soneto abaixo, "A um Cavalo", mostra as suas qualidades de poeta satírico por excelência:


Vai, mísero Cavalo lazarento,
pastar longas campinas livremente;
não percas tempo, enquanto t'o consente
dë magros cães faminto ajuntamento:

Esta sela, teu único ornamento,
para sinal de minha dor veemente,
de torto prego ficará pendente,
despojo inútil do inconstante vento:

Morre em paz; que em havendo algum dinheiro,
hei de mandar, em honra de teu nome,
abrir em negra pedra este letreiro:

"Aqui, piedoso entulho, os ossos come
do mais fiel, mais rápido sendeiro,
que fora eterno a não morrer de fome".


E, para confirmá-lo, trazemos este outro soneto seu, "A um penteado":

Chaves na mão, melena desgrenhada,
batendo o pé na casa, a mãe ordena
que o furtado colchão, fofo, e de pena,
a filha o ponha ali, ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada,
lhe diz co'a doce voz, que o ar serena:
— "Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
Olhe não fique a casa arruinada"...

— “Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
já a mãe não tem mãos?"— E, dizendo isto,

arremete-lhe à cara e ao penteado;
eis senão quando (caso nunca visto!)
sai-lhe o colchão de dentro do toucado.


*

Filinto Elísio, nome arcádico do Padre Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819); destacou-se pelo seu imenso amor à língua portuguesa, que muito se esforçou por "opulentar e colorir",como lembra Rodrigues Lapa.

Denunciado à Inquisição, em 1778, "por ter livros proibidos de filosofias modernas que afetam seguir a razão natural", conseguiu escapar para a França. Estabeleceu-se em Paris, onde viveu pobremente, dando lições de português. Um de seus discípulos foi a notável poeta francês Lamartine, que o celebrou em uma conhecida ode.

Traduziu, para o português, Chateaubriand e Wieland, grandes autores românticos. O "sentimento do noturno", característico da alma romântica, aparece amiudadamente no poeta, adquirindo grande valor expressional neste soneto:

Estende o manto, estende, ó Noite escura
enluta de horror feio o alegre prado;
molda-o bem co'o pesar dum desgraçado,
a quem nem feições lembram da Ventura.

Nubla as estrelas, Céu; que esta amargura,
em que se agora ceva o meu cuidado,
gostará de ver tudo assim trajado
da negra cor da minha Desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,
rebente o mar em vão em ocos rochedos,
solte-se o Céu em grossas lanças de água:

consolar-me só podem já pesares;
quero nutrir-me de arriscados medos,
quero saciar de mágoa a minha mágoa.


*

Marquesa de Alorna (1750-1839) D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lancastre — Famosa poetisa e escritora, considerada a 'Madame de Staël portuguesa". Seus "salões" ficaram célebres em Portugal, pois eram freqüentados pela nata dos literatos da época, entre os quais Alexandre Herculano, que muito a admirava.
O soneto que se segue é da Marquesa:

Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos,
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
exalando suspiros tão queixosos,
que jamais os rochedos cavernosos
os respeitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
ave, fonte, montanha, flor, corrente,
comigo hão de chorar de amor enredos.

Mas, ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
que eu derramo os meus ais inutilmente.



*

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). Com 17 anos, entrou na Academia Real de Marinhagem. Apaixonou-se por Gertrudes, mas, mesmo assim, embarcou com destino às Indias, chegando a Goa, depois de passar pelo Rio de Janeiro. Promovido a tenente, foi para Damão e esteve, também, em Macau. Retornou a Lisboa, onde o esperava uma desilusão atroz: Gertrudes se casara com o irmão do poeta. Entregou-se, desesperado, à vida boêmia e a terríveis desregramentos, que lhe valeram várias prisões e dissabores, vindo a morrer praticamente na miséria. Não ouviu os conselhos de seus protetores, Filinto Elísio e Marquesa de Alorna.

Todavia, era um ser atormentado pelo desejo de perfeição espiritual. Escreveu odes, idílios, cançonetas e, principalmente, sonetos.

Poeta de grande vibração emocional, Bocage, segundo o crítico Sotero dos Reis, "excedeu neste gênero (o soneto), em que pode-se dizer que não tem rival em língua viva, não só aos italianos, mas ao próprio príncipe dos poetas portugueses (Camões), que nele até aí não tinha ainda sido igualado pelos seus". Esse mesmo crítico escreveu mais: "Assim é ele, ainda hoje, o primeiro poeta da língua portuguesa no soneto, e o será, provavelmente, por muito tempo, até que volte o gosto para esta espécie de poesia, e apareçam engenhos superiores ao seu, o que será raro".

Aubrey Bell acha que alguns de seus sonetos "têm força e grandiosidade, pairando nos confins da perfeita beleza".

Seu nome arcádico era "Elmano Sadino". Foi, além do mais, um notável repentista. Manuel Bandeira observou bem uma face triste de suas atividades: "Bocage cometeu a leviandade de escrever poesias obscenas, o que, acrescentando-se à sua vida desregrada, criou-lhe triste reputação, muito exagerada pela tradição oral, que passou a atribuir-lhe grande número de anedotas e versos do mais sórdido caráter".

Este soneto, "Insônia", é uma velha amostra do pessimismo que sempre assaltou o espírito e a inspiração do poeta. Foi escrito nos primórdios de sua mocidade, no chamado "período da vida militar", entre 1780 a 1787 (H. Garnier, Livreiro-Editor, Rio de Janeiro e Paris, 1911):

Já sobre o coche de ébano estrelado
deu meio giro a noite escura e feia;
que profundo silêncio me rodeia
neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
o Tejo adormeceu na lisa areia;
nem o mavioso rouxinol gorjeia,
nem pia o mocho, às trevas costumado:

Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
que o fio, com que está minha alma presa
à vil matéria lânguida, me corte:

Consola-me este horror, esta tristeza;
porque a meus olhos se afigura a morte
no silêncio total da natureza.


Vejamos mais este soneto admirável, intitulado "A Anália":

Se é doce no recente, ameno Estio
ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
e, lambendo as areias, e os verdores,
mole e queixoso deslizar-se o rio;

se é doce no inocente desafio
ouvirem-se os voláteis Amadores,
seus versos modulando, e seus ardores
dentre os aromas do pomar sombrio;

se é doce Mares, Céus, ver anilados
pela Quadra gentil, de Amor querida,
que experta os corações, floreia os prados,

mais doce é ver-te, de meus ais vencida,
dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, Morte de Amor, melhor que a vida.


Bocage foi um pré-romântico, e, mesmo, aquele que preparou a recepção do romantismo português:

O ledo passarinho, que gorjeia,
de alma exprimindo a cândida ternura,
o rio transparente, que murmura,
e por entre pedrinhas serpenteia:

o Sol, que o céu diáfano passeia,
a Lua, que lhe deve a formosura,
o sorriso da aurora alegre, e pura,
a rosa, que entre os zéfiros ondeia:

a serena, amorosa primavera,
o doce autor das glórias que consigo,
a deusa das paixões, e de Citera:

quanto digo, meu bem, quanto não digo,
tudo em tua presença degenera,
nada se pode comparar contigo.


Este soneto autobiográfico de Bocage, o último que escreveu, é de uma sinceridade infinitamente amarga:


Já Bocage não sou!... À cova escura
meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
leve me torne sempre a terra dura:

Conheço agora já quão vã figura
em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento
se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
brade, em alto pregão, à mocidade,
que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
manchei! Ó, se me creste, gente ímpia,
rasga meus versos, crê na eternidade!



*

O Romantismo literário foi implantado em Portugal através de Almeida Garret (1799-1854) e de Alexandre Herculano (1810-1877), cabendo, por certo, ao primeiro, os maiores méritos. Garret iniciou a sua carreira literária incentivado por Filinto Elísio. Os países que, no mundo, deram começo ao movimento romântico foram, em ordem cronológica, a Alemanha (de 1790 a 1830), a Inglaterra (de 1790 a 1832), a França (de 1825 a 1850). As primeiras manifestações contrárias às normas do Classicismo surgiram na França, embora tal fato lhe confira, apenas, o título de coordenadora do Romantismo, escola literária tipicamente germânica. Mais tarde, a própria França, a que a Poesia tanto deve, incumbiu-se de divulgar, estupendamente, os ideais do movimento romântico.

Antes, mesmo, da publicação do poema "Camões" (1825) que, em Portugal, correspondeu ao fim do Classicismo, Garret já escrevia poemas de inspiração romântica, influenciado pelos poetas franceses e ingleses. E, acrescente-se, em 1820, já se mostrava um defensor do liberalismo.

Alexandre Herculano de Carvalho e Araujo, que estudou muito, apesar de suas grandes dificuldades financeiras, foi, inclusive, o introdutor do "romance histórico" em Portugal, destacando-se, nesse particular, "O Monge de Cister", em que recompõe a época de D. João I. Na literatura de ficção, que também exerceu, ficou célebre "Eurico, o Presbítero", sua maior obra no gênero. É pequena, embora valiosa, a atividade poética.

Depois de Garret e Herculano, os românticos que mais se impuseram foram, entre outros, Antônio Feliciano de Castilho, Rebelo da Silva, Júlio Diniz, Camilo Castelo Branco, João de Lemos, Soares de Passos, Mendes Lial, João de Deus Ramos, Tomás Ribeiro, Antônio Fogaça.

O Romantismo, em Portugal, como na França, timbrou em desprezar o soneto. Herculano e Castilho, principalmente. Entretanto, ser-nos-á fácil apontar sonetos de poetas dessa escola. Repare-se que vários deles — aliás os primeiros — são vazados em linguagem nebulosa e até de difícil compreensão, sofrendo a influência dos modelos clássicos. Os últimos, entretanto, são mais suaves e chegam a agradar plenamente.



*

Almeida Garret (João Batista da Silva Leitão de), Visconde de Almeida Garret, nasceu em 1799 e morreu em 1854. Formado em Direito, deputado, político, diplomata, poeta, jornalista, orador famoso e escritor consagrado. Renovador do teatro português. Por motivos políticos, esteve exilado na Inglaterra e na França (1823 e 1828), tendo regressado a Portugal em 1832.
No Havre, ele escrevera os poemas "Camões" e "D. Branca". Retornando à sua pátria, exerceu funções de relevo, tendo sido nomeado Visconde e Par do Reino e, depois, Ministro dos Negócios Estrangeiros.

É de sua criação o soneto "A flor seca":

Vai, flor gentil, vai, prenda suspirada,
doce mimo de amor terno e fagueiro!
Vai, que ele mesmo, grato e prazenteiro,
ele te há-de levar à minha amada!

Cumpre o que ela te impôs, que é lei sagrada:
se mudada te achar, sem cor, sem cheiro,
se o viço, a gala do verdor primeiro
em tuas pálidas folhas vir crestada,

diz-lhe que, mais que a ti, mais me queimara
o intenso ardor daquela saudade
que a ambos n'este estado nos deixara.

Ó, se um benigno influxo de piedade
de seus formosos olhos te orvalhara...
qual de nós ambos reviver não há-de?


*

Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875). Foi um dos pioneiros da escola romântica, em Portugal, ao lado de Garret e Herculano, porém o que mais o seduzia era a cultura clássica. Grande influência exerceu nas letras de seu tempo e teve papel saliente como educador. Muitos o consideram o maior clássico da língua. Em 1855, visitou o Brasil. Cego aos seis anos, demonstrou, desde criança, uma inteligência rara e um esforço irresistível, estudando até o curso superior, graças à ajuda e à solicitude de um irmão. Era poeta e tradutor.

Apresentamos um de seus sonetos:

Se é lícita uma lágrima nas rosas,
com que, ó noite de Abril, nos ris coroada,
dos mártires da Pátria libertada
uma lágrima às sombras generosas!

Seus sepulcros dão palmas gloriosas:
heróis herdaram sua nobre espada;
e hecatomba de tigres lhe é votada
de dia a dia às cinzas sequiosas.

Mas no Elysio onde estão, hoje pensando
que um dia mais que o céu por Lysia passa, 
saudoso se reúne o egrégio bando.

Murmuram longo viva à jovem Graça,
e involuntária lágrima escapando
do néctar entre as mãos lhes turva a taça.



*

Júlio Diniz (pseudônimo literário de Joaquim  Guilherme Gomes Coelho). Nasceu em 1839 e morreu em 1871. Escreveu versos e contos. Sua consagração, porém, começou com o romance "As Pupilas do Senhor Reitor", que mereceu de Herculano os mais eloqüentes elogios. Romântico pelo sentimento, veio a ser, depois, um precursor do Realismo.

Publicamos, a seguir, uma de suas produções:

Hoje, quando te vi, estavas cismando;
em que cismavas tu, virgem formosa,
desmaiadas as faces cor-de-rosa
e o seio, o gentil seio, inquieto arfando?

Em que cismavas tu? De quando em quando
elevavas ao céu, triste, saudosa,
a vista amortecida, lacrimosa,
para a baixar depois em gesto brando.

No chão jaziam murchas, desfolhadas,
as rosas, que ainda há pouco te toucavam,
agora já por ti abandonadas.

Os últimos clarões do sol douravam
as tuas belas tranças desatadas;
diz, que íntimos anelos te turbavam?



*

Camilo Castelo Branco (1825-1890), considerado um mestre da língua e dotado de invulgar capacidade criadora, alcançou grande êxito, inclusive com livros de ficção. O famoso romance "Amor de Perdição" foi escrito em quinze dias e é, sem dúvida, sua obra-prima. Escritor genial, mas, também, poeta.

Teve adolescência aventureira e vida difícil. Finalmente, viu' se obrigado a escrever para ganhar a vida.

A cegueira de que foi acometido e, ainda, uma série de desgostos morais sofridos na velhice, levaram-no ao suicídio.

No capítulo deste livro, "Melodias da noite sem fim", estão reproduzidos dois belíssimos sonetos de Camilo. Realçamos, aqui, um outro, também de sua autoria, "A maior dor humana", inspirado pela morte sucessiva dos dois filhos de Theóphilo Braga, segundo esclarece Mayer Garção:

Que imensas agonias se formaram
sob os olhos de Deus! Sinistra hora
em que o homem surgiu! Que negra aurora,
que amargas condições o escravizaram!

As mãos, que um filho amado amortalharam,
erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o céu, que respondeu? As mãos baixaram
para abraçar a filha morta agora.

Depois um pai em trevas vai sonhando,
e apalpa as sombras deles onde os viu
nascer, florir, morrer! Desastre infando!

Ao teu abismo, pai, não vão confortos...
És coração que a dor empederniu,
sepulcro vivo de dois filhos mortos.



*

João de Deus Ramos (1830-1896) concluiu o curso de direito em Coimbra. Nuno Catharino Cardoso escreveu sobre ele: "Lírico inspiradíssimo, algumas das poesias de João de Deus figuram entre as mais belas da língua portuguesa. O "Campo de Flores" é o maior monumento lírico que poetas portugueses têm construído". Camilo Castelo Branco assim se manifestou sobre ele: "João de Deus não tem escola. É ele". Popularíssimo, sua poesia é de uma suavidade rara.

O soneto abaixo está incluído no seu imortal poema "A Vida":

 Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
a luz que nesta vida me guiava,
olhos fitos na qual até contava
ir os degraus do túmulo descendo.

Em se ela anuviando, em a não vendo,
Já se me a luz de tudo anuviava;
despontava ela apenas, despontava
logo em minha alma a luz que ia perdendo.

Alma gêmea da minha, ingênua e pura
como os anjos do céu (se o não sonharam...)
quis mostrar-me que o bem, bem pouco dura!

Não sei se me voou, se m'a levaram;
nem saiba eu nunca a minha desventura
contar aos que ainda em vida não choraram...



*

Tomás Ribeiro (1831-1901). Poeta suave e de grande inspiração. Autor de "D. Jaime", obra das mais estimadas da língua portuguesa. Formado em Direito, ocupou posições de grande relevo na política e na administração pública do país.

É de Tomás Ribeiro este belo soneto:

Nunca choras, mulher! Sempre o teu rosto,
formoso como um sonho de Ticiano,
há-de esconder esse tremendo arcano
que te consome à vida em tal desgosto!

Nunca! pois nunca, ó divinal composto,
vogando à beira do saudoso oceano,
perla de amor, em teu martírio insano,
beijar-te vem às horas do sol-posto?!

Ai, chora uma só lágrima na vida!
A gota rosi-argêntea das auroras
caia em tua alma triste e ressequida!

Às tuas negras, ermas, cruéis horas,
desça orvalho do céu! Chora, querida!
Tenho medo de ti! Por que não choras?



*

Antônio Fogaça (1863-1888), morreu muito jovem, ainda estudante em Coimbra. Romântico, de tendência realista, não chegou a estrear literariamente. Em 1887, tinha em preparo um livro, "Versos da Mocidade", que foi publicado postumamente.
Desse livro consta o seguinte soneto "Os rouxinóis":

No meu jardim, num cedro em que a frescura
e a flor da novidade vêm brotando,
pousa, por vezes, um ditoso bando
de alegres rouxinóis, entre a verdura...

Quando ali vou, tristíssimo, à procura
de sossego e de luz, de quando em quando,
sinto-os vir e pousar, ouço-os cantando
no doce idílio de uma paz obscura.

E, desditoso, eu lembro, com saudade,
último brilho do meu peito ardente,
que assim também, num íntimo vigor,

sobre o flóreo jardim da mocidade,
cantaram na minh'alma, alegremente,
como no cedro, os rouxinóis do amor!



*

Contra a chefia literária de Antônio Feliciano de Castilho, insurgiu-se Antero Tarquínio de Quental (1842-1891), o mestre inexcedível do soneto moderno em terras lusitanas. Fustigou, sem tréguas, o Romantismo e, também, o ultra-romantismo. Foi o líder da célebre "Questão Coimbrã", a qual, mais que um combate a Castilho, acabou por ser um golpe contra o Romantismo, consolidando-se, aí, o pensamento da chamada "geração de 1865".

Não chegou, entretanto, a ser um ardente admirador do Parnasianismo. Aliás, a impassibilidade dessa escola não estava na índole da poesia portuguesa, sempre lírica, sempre sentimentalista.

Não podemos classificar Antero de Quental em qualquer das escolas literárias. Acima de tudo, ele tinha um temperamento inquieto, muito imbuído de profundos pensamentos filosóficos. Preferimos afirmar que sua poesia era apenas "anteriana". Em Quental havia um Fundo místico, apesar de seu espírito oscilar entre a fé e a dúvida.

Inúmeros críticos e poetas acham que ele foi o maior sonetista português de todos os tempos. Não chegamos a tanto. Mas, de qualquer forma, encontra-se em nível semelhante ao de Camões e Bocage.

Na verdade, sua poesia se realizou com o soneto. Antero — lembra Manuel Bandeira — considerava o soneto "a forma superior do lirismo, pelo seu poder de concentração, de unidade e de simplicidade".

Solitário e pessimista, teve Antero uma vida agitada e dramática. A neurastenia, a amargura, o desalento, as torturas físicas e morais, levaram-no a pôr termo à vida, com uma bala na cabeça, gritando: "Esperança!". Para morrer, escolheu sua saudosa terra natal: Ponta Delgada, nos Açores. No próprio banco da praça pública em que se suicidou, está gravada uma inscrição lembrando o fim trágico do grande poeta.

Deliciemo-nos com três sonetos de Antero de Quental. O primeiro é "À Virgem Santíssima":

Num sonho todo feito de incerteza,
de noturna e indizível ansiedade,
é que eu vi teu olhar de piedade
e (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
feita só do perdão, só da ternura
e da paz da nossa hora derradeira...

Ô visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!


O segundo é "Divina Comédia":

Erguendo os braços para o céu distante
e apostrofando os deuses invisíveis,
os homens clamam: — "Deuses impassíveis,
a quem serve o destino triunfante,

por que é que nos criastes?! Incessante
corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
dor, pecado, ilusão, lutas horríveis;
num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
do nada e do que ainda não existe,
ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
dizem: — "Homens! por que é que nos criastes?"


Finalmente, "Na mão de Deus" é um soneto à procura de um lenitivo:

Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou, afinal, meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
desci, a passo e passo, a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
a ignorância infantil, despojo vão,
depus do Ideal e da Paixão
a forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
que a mãe leva no colo, agasalhada,
e atravessa, sorrindo vagamente,

selvas, mares, areias do deserto...
dorme o teu sono, coração liberto,
dorme na mão de Deus eternamente!



*

Neste ponto, passamos a recordar sonetos de poetas portugueses ainda não relacionados no presente trabalho.

São poetas de méritos excepcionais e que, por certo, valorizarão as nossas páginas:


Antônio Cândido Gonçalves Crespo (1846-1883) nasceu no Brasil, de onde saiu aos 14 anos, para residir em Portugal. Naturalizou-se português. Pertence às duas literaturas irmãs. Mas, a rigor, não podemos deixar de incluí-lo, com o destaque merecido, também entre os poetas portugueses. Casado com a escritora lusitana Maria Amália Vaz de Carvalho.

Vamos reler um dos excelentes sonetos desse grande poeta, que, aliás, influiu, de maneira ponderável, no movimento parnasianista do Brasil.

É o soneto "Odor di femina", um dos mais conhecidos no Brasil, e que, certamente (na mesma situação de "Pálida e loira...”, de Antônio Feijó), figuraria no capítulo deste livro, em que tratamos dos sonetos mais populares, não entrassem, ali, apenas os sonetos de poetas brasileiros:

Era austero e sisudo; não havia
frade mais exemplar nesse convento:
no seu cavado rosto macilento
um poema de lágrimas se lia.

Uma vez que na extensa livraria
folheava o triste um livro pardacento,
viram-no desmaiar, cair do assento,
convulso, e torvo sobre a lájea fria.

De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
ninguém m'a disse, explique-a quem puder.

Consta que um bibliófilo comprara
o livro estranho e que, ao abri-lo,
achara uns dourados cabelos de mulher...


*


Mendes Lial (José da Silva Mendes Lial). Nasceu em 1823 e morreu em 1886. Poeta, autor dramático, acadêmico e político. Foi, sobretudo, notável na poesia heróica. Seu teatro chegou a competir com o de Garret, nas preferências do público e da crítica.
Foi ministro plenipotenciário de Portugal, em Madri e em Paris. Conselheiro, Par do Reino, Presidente da Câmara dos Deputados, Sócio e Secretário da Academia Real de Ciências.

Escreveu vários romances e muitas peças teatrais. Algumas de suas poesias, como "Napoleão no Kremlin", "O Pavilhão Negro" e "Ave César!" tornaram-se conhecidíssimas, pois são, realmente, obras admiráveis.

O soneto que se segue, "Stabat Mater", é de Mendes Lial:


 Mulher que tanto amais, mulher que sofreis tanto,
ardente coração, espírito piedoso,
a quem chorais, a quem? O pai, o irmão, o esposo?
Uma ilusão perdida? Um súbito quebranto?

Dos mundanos desdéns, que vos tomam de espanto,
desejais recatar a dor que já foi gozo?
Ou desejais sumir, em delirar saudoso,
nas rosas do pudor as pérolas do pranto?

Mulher, seja qual for o vosso mal profundo,
secreto desengano ou sonho temerário,
não julgueis morta a flor, o porvir infecundo.

O rosto erguei com fé na paz do santuário:
Conforto, exemplo, guia e estrela, e aurora ao mundo,
achais a Virgem-Mãe no cimo do Calvário!



*

Caetano da Costa Alegre (1864-1890) morreu tuberculoso. quando cursava, com Antônio Nobre, Júlio Diniz e José Duro, o 3º  ano da Escola Médica do Porto. Tinha grande desgosto em ser preto. Escreveu um livro, "Versos", numa edição de apenas 500 volumes numerados, destinando o seu produto à "Caixa de Socorros a Estudantes Pobres".


Dele, o soneto "Quando eu morrer":

Não quero! Tenho horror que a sepultura
mude em vermes meu corpo enregelado.
Se no fogo viveu minha alma pura,
quero, morto, meu corpo calcinado.

Depois de ser em cinzas transformado,
lancem-me ao vento, ao seio da natura...
Quero viver no espaço ilimitado,
no mar, na terra, na celeste altura.

E talvez no teu seio, ó virgem linda,
tão branco como o seio da virtude,
eu, feito em cinzas, me introduza ainda.

E no teu coração, pequeno e forte,
(ó gozo triste!) viva eu na morte,
já que na vida lá viver não pude!


*

Fernando Caldeira (1842-1894) Poeta inspirado, pintor e autor de teatro muito aplaudido em seu país.

O soneto "A vida":

Abri meus olhos ao raiar da aurora
e parti. Veio o sol e, então, segui-a,
a sombra, que eu julgava guiadora,
a minha própria sombra fugidia.

E foi subindo o sol; ao meio-dia
escondeu-se-me aos pés a sombra; agora
se volvo o olhar onde passei outrora,
vejo-a a seguir-me, a sombra que eu seguia.

A gente é o sol de um dia; sobe, avança,
passa o zênite, e vai na imensidade
apagar-se no mar, onde se lança...

E a vida é a própria sombra; meia-idade,
somos nós que a seguimos, e é a Esperança;
depois segue-nos ela: é a Saudade.


*

Antônio Nobre (1867-1900). Seu livro "Só" é uma relíquia preciosa da poesia portuguesa. Poeta pessimista, mas de raro vigor e simplicidade, quase todos os seus versos são repassados de ternura. A poesia lusa teve, nele, um renovador de notável inspiração.

Alguns de seus sonetos são antológicos, como os dois que a seguir distinguimos:

"Soneto nº 4" (1886)

Ó Virgens que passais, ao Sol-poente,
pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
o Sol que tomba, aureolando o Mar,
a fartura da seara reluzente,
o vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
todas aquelas ilusões antigas

que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
adormecei-me nessa voz... Cantai!



"Soneto nº 12" (1891)

Não repararam nunca? pela aldeia,
nos fios telegráficos da estrada,
cantam as aves, desde que o Sol nada,
e, à noite, se faz sol a Lua cheia.

No entanto, pelo arame que as tenteia,
quanta tortura vai, numa ânsia alada!
O Ministro que joga uma cartada,
alma que, às vezes, d'Além-Mar anseia:

— Revolução! — Inútil. — Cem feridos,
setenta mortos. — Beijo-te! — Perdidos!
— Enfim, feliz! — ? — ! — Desesperado. — Vem!

E as boas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, Antônio, deves ser também.



*

Bulhão Pato (Raimundo Antônio Bulhão Pato) — Nasceu em 1829 e morreu em 1912. Amigo íntimo de Almeida Garret e Alexandre Herculano. Segundo Nuno Catharino Cardoso, "com a morte de Bulhão Pato, desapareceu, em Portugal, o último representante do romantismo".

Desperta, em "Confissão", a sua crença antiga:

Fui na infância católico exaltado;
tudo era para mim edificante;
ver o altar, ver o trono cintilante,
ouvir, na igreja, a voz do órgão sagrado!

Foi se apagando o amor arrebatado,
e a ciência levou-me, num instante,
com o sopro glacial e penetrante,
o edifício de luz do meu passado!

Deitei-me aos pés dos grandes missionários,
na eloqüência e na fé extraordinários;
mas nenhum me deu sombras de esperança!

Ó crenças infantis, talvez agora,
volteis a mim, ardentes como outrora:
diz-se que um velho torna a ser criança!...


*

D. João da Câmara (1852-1908). Poeta suave e dramaturgo eminente. Autor de dramas históricos em verso e comédias de costumes. Ocupou cargos públicos importantes.

Palmas a este delicado soneto:

Amortecera o lume da lareira;
no pálido clarão, que o fundo esmalta,
a minha fantasia, que se exalta,
vê passar mil visões, como em fileira.

Como as fagulhas correm na madeira
e morrem, passam elas na ribalta;
nem uma só lembrança ali me falta,
de tanto que passei na vida inteira!

Ó deixem-me sonhar um sonho infindo!
Dormir é reviver. Quero, dormindo,
viver o meu passado tão risonho!

Não me despertes, anjo da saudade...
Tanto sonho já foi realidade;
já foi realidade... e agora é sonho!



*

Antônio de Macedo Papança (Primeiro Conde de Monsaraz) 1853-1913. Poeta de peregrina inspiração, seus versos são de urna forma esmerada. Em 1880, quando da comemoração do tricentenário de Camões, publicou o poema "Catharina de Athayde", datando, daí, sua consagração como poeta.

Apreciemos este soneto, "Submisso", ou "Escravomania":


Mandas-me, cumpro. Eu sou o autômato modesto
que a tua mão dirige e o teu olhar fascina:
prende-se a minha vida à curva purpurina
de tua boca e à luz do teu sorriso honesto.

Só quero o teu amor (profundo amor!); de resto, 
em nada penso e creio.É esta a minha sina;
aos teus caprichos, flor, todo o meu ser se inclina,
seguindo a sua lei traçada no seu gesto!

E nesta escravidão cujos grilhões abraço
e beijo tanta vez, alarga-se-me o espaço,
em que ouço alegremente os rouxinóis cantar.

Eu fiz do meu segredo um cárcere risonho.
Ó déspota gentil, embala-me este sonho,
olha-me, eu quero luz! fala-me, eu quero ar!



*

Narciso de Lacerda (1858-1913). Veio muito cedo para o Brasil, onde se alistou no Exército Brasileiro; mas, aos 17 anos voltou para Portugal, quando passou a ocupar cargos do serviço público. Recebeu, como poeta, os elogios de Camilo, João de Deus e Silva Pinto.

Foi excelente sonetista, como se vê:

Se creio em ti, meu Deus! Pois quem há posto
lumes no céu e rosas na campina,
na pedra o musgo, a relva na colina
e a fé nas almas cheias de desgosto?

Se creio em ti! Pois quem há dado ao rosto
da mulher dois faróis de luz divina
e à rocha a gota de água cristalina
e a sombra aos dias cálidos de Agosto?

Se creio em ti, meu Deus!... Quando eu, outrora,
quis meus olhos cerrar à luz da aurora,
por que não visse pelo ar disperso

tanto sonho de amor, que em vão sonhara,
lembrei-me, então, de quanto me ensinara
a voz de minha mãe, junto ao meu berço...



*

Antônio Feijó (1862-1917) Diplomata, por muitos anos representou Portugal na Suécia. Tido como o mais destacado discípulo de Gonçalves Crespo e do parnasianismo francês. Poeta lírico primoroso, é o autor do soneto "Pálida e loira", dos mais conhecidos e admirados em todo o Brasil, e que, por certo (do mesmo modo que "Odor di femina", de Gonçalves Crespo), entraria no capítulo deste livro dedicado aos "sonetos mais populares", não estivessem ali incluídos apenas os de poetas brasileiros.

Ei-lo ("Pálida e loira"):

Morreu! Deitada no caixão estreito,
pálida e loira, muito loira e fria,
o seu lábio tristíssimo sorria,
como num sonho virginal desfeito!

Lírio que murcha ao despontar do dia,
foi descansar no derradeiro leito,
as mãos de neve erguidas sobre o peito,
pálida e loira, muito loira e fria!...
  
Tinha a cor das rainhas das baladas
e das monjas antigas, maceradas,
no pequenino esquife em que dormia...

Levou-a a morte em sua garra adunca!
E eu nunca mais pude esquecê-la...
Nunca... pálida e loira, muito loira e fria!


*


José Duro (1875-1919). Poeta-revelação de alto talento, muito inspirado. Morreu tuberculoso, como Júlio Diniz, Soares de Passos, Antônio Nobre, Cesário Verde, Guilherme Braga, e muitos outros poetas portugueses. Seu único livro, "Fel", foi publicado poucos dias antes de sua morte. Livro de dor profunda.

Admiremos um de seus sonetos, bastante realista:

Margarida Gautier, o teu amor assombra;
teu corpo é um bordel; mas a tua alma é chama...
E a flor também se dá num pântano de lama,
como em qualquer jardim ou em qualquer alfombra.

Embriaga-me o sol; mas gosto mais da sombra,
por que o sol não me escuta, e a sombra é que me chama...
E eu, que desprezo tudo, eu amo só quem ama, 
amo talvez a dor que o meu olhar ensombra.

Para que um astro brilhe, é necessária a noite; 
porém, estrelas há que antes que o sol se acoite,
já elas, pelo azul, desfolham malmequeres.

Assim, o teu amor, estranhamente raro,
rasgando a podridão em pleno dia claro,
mostrou que tinhas alma às almas das mulheres!



*

Maria da Cunha, excelente poetisa, jornalista, conferencista. Depois de viver algum tempo no Brasil, morreu, em 1917, em São Paulo, com pouco mais de trinta anos.

Apresentamos um de seus sonetos:


Solta o canto de guerra a Valquíria formosa!
Vai galgando a campina azul do firmamento;
montada em seu corcel mais rápido que o vento,
corta o espaço, marcial, selvagem, vitoriosa.

Baixa o sol na floresta; os céus são um portento! 
Solto o manto auroreal, solta a juba radiosa, 
fulgindo-lhe o elmo alado e a couraça escamosa, 
passa como num sonho e num deslumbramento.

A caminhada louca através do Infinito!
Cavalgada febril sobre as nuvens ardentes!
Enche os ares, reboa em clamoroso grito...

E a guerreira, ao passar de escudo e lança em riste, 
acorda os alcantis e as florestas dormentes,
da Escandinávia branca, e nebulosa, e triste.




*

Antônio Sardinha (1888-1925) foi poeta inspirado, além de jornalista e ensaísta.

Ressaltamos o seu soneto "Velho motivo":

Soneto de Jacó, pastor antigo,
— soneto de Raquel, serrana bela...
Ó! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras ela!

O que eu servira, pra viver contigo,
tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!

E vou sofrendo a minha pena amarga,
pena que não me deixa, nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacó pastor!

Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!


*

José Fernandes Costa (1848-1920) General de Artilharia, poeta, tradutor, sócio da Academia de Ciências de Lisboa; fundador, coordenador e redator único do famoso "Almanach Bertrand". Excelente sonetista.

Dele, vamos evocar o seguinte soneto:

Desde as fainas campestres de Virgílio
até as negras espirais do Dante,
da tragédia cruel ao doce idílio,
do brando arrulho à voz altissonante;

da palavra dos deuses em concílio
até o soluçar de um peito amante,
chorando ausências de forçado exílio,
há tanta coisa que um poeta cante!

Dele o domínio é pasmoso, imenso!
Mas, do céu — tem o espírito suspenso
não desce nunca ao ínfimo paul!

Sobre o que é baixo e vil, perpassa leve,
e só desdobra as asas, cor de neve,
na vastidão sem fim do eterno azul!



*

Antônio Duarte Gomes Lial (1849-1921). Escreveu várias obras de alta inspiração e beleza lírica. Um dos maiores poetas de Portugal, em seu tempo. Também foi panfletista vigoroso. Chegou pobre e doente à velhice.
Sua decadência o levou a uma loucura mansa. Autor de páginas maravilhosas, como este soneto "As Eras Patriarcais":


 Feliz do que viveu nas épocas preclaras,
em que a rude alma antiga era simples e sã,
e Patriarcas Hebreus, de grandes barbas claras, 
tinham a alegre paz de uma oriental manhã!...

Eram tempos leais! — Desde o Horeb a Canaan,
o Senhor abençoava as águas e as searas,
e as serranas gentis, as Rebecas, as Saras,
iam, cantando alto, aos poços de Madian...

Sim, eram tempos chãos, brancos, simples, lavados,
em que Ruth e Booz ceifavam nos seus prados,
e as princesas reais iam lavar nos rios...

O Pai dava, em seu lar, asilo aos caminhantes.
A Mãe criava ao peito os futuros gigantes.
E a Avó fiava a lã, com seus dedos macios.





Mais este, agora cheio do pessimismo e da amargura que, felizmente, abandonou no fim da vida:

O primeiro conviva, em punho a taça,
ergueu-se, de repente, e com voz rouca
bradou: "Amigos! Permiti que faça
uma saúde à Morte, a velha louca!

A minha história é triste, e muito pouca...
Sou, como vós, um filho da desgraça.
Amei uma mulher. Que mimo e graça!
Ó que pé andaluz! Que olhar! Que boca!

Na noite do noivado — ouvi, devassos! —
beijei-a doidamente entre meus braços,
e arremessei-a ao mar, trêmula e nua.

Ninguém não mais a gozará um dia!
Repousa ali a minha noiva, fria,
guardada pelo olhar frio da lua!"


E, afinal, este soneto, de emocionante beleza:

Maria, com seus olhos magoados,
céus espirituais, lavava em pranto
as largas chagas de Jesus, enquanto
ria ao pé um dos três crucificados. 

Semblantes de mulher, amargurados,
escondiam a dor no casto manto.
Uma mulher de Hennon chorava a um canto,
jogavam, sobre a túnica, os soldados.

Marta, os pingos de sangue, alva açucena,
dir-se-ia no bom seio recolhê-los.
Alguns riam, brutais, daquela pena.

Salomé tinha um mar nos olhos belos,
João fitava a Cruz. Mas Madalena
limpava a Cristo os pés com os seus cabelos.



*


Abílio Manuel de Guerra Junqueiro (1850-1923). Poeta dos mais notáveis, dos mais inspirados da língua portuguesa. Foi, mesmo, o grande poeta português de seu tempo. Imaginação ardente. Grande manejador de ritmos. Era um mestre inimitável do alexandrino, de forma e imagens coruscantes. Muitas vezes satírico e sarcástico. Bacharel em Direito e Diplomata. Escreveu livros bizarros, entre eles "Morte de D. João", "A Velhice do Padre Eterno", "Os Simples".

Guerra Junqueiro, principalmente em "A Velhice do Padre Eterno", assumia clara posição anticlerical, porém não era um ateu, como fazia supor a muita gente. Em fins do século XIX, retirou-se para propriedades suas, no Douro, demonstrando, então, preocupações místicas. Foi, mesmo, levado a um sentimento de piedade cristã e de ternura para com os humildes.

No prefácio do livro "A Velhice do Padre Eterno" (1886), editado, também, pela Lello & Irmão, em 1967, escreveu Camilo Castelo Branco: "Que é ser 'ateu'? É negar a existência de Deus. E ser `deísta' que é? É reconhecer um Deus, confessá-lo, senti-lo como alma do Universo. Guerra Junqueiro reconhece um Deus tão explicitamente quanto seria necessário para impugnar os que o negam”.

E cita, para defender sua tese, muitos versos de Junqueiro, entre os quais este:
— "Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal".

Após o advento da República, esteve em Berna, como representante de Portugal, mas, lá, demorou-se pouco, preferindo retornar à sua vida de recolhimento e de meditação, assim permanecendo até a morte.

Não era um assíduo freqüentador do soneto, mas deixou alguns como estes dois que colocamos a seguir. O primeiro, cheio da irreverência que caracterizava grande parte de sua obra:

Levas na fronte a c'roa da inocência,
levas no lábio um riso imaculado;
partiste para o céu, piedosa essência,
em procura do místico noivado.

Mas, contudo, na doce transparência,
nas linhas do teu rosto desmaiado,
eu leio-te os segredos da existência,
os mil dramas da carne e do pecado.

Esmagaste do amor as garras brutas,
cingindo ao corpo um bárbaro cilício;
mas, ó virgem das virgens impolutas,

quantas vezes, no horror do sacrifício,
não chegaste a invejar as prostitutas,
que à noite dormem sobre o mar do vício!


E o segundo, "Mater", que demonstra o alto nível de sua espiritualidade:


Se a morte d'olhar grave e pensativo,
dissesse à mãe piedosa de Jesus:
"Teu filho é homem nos teus braços, vivo;
morto, teu filho será Deus na Cruz.

Em seus braços desêja-lo cativo,
ou morto e Deus, jorrando sangue a flux,
e a toda a angústia dando um lenitivo
e a toda a escuridão perpétua luz?"

Que respondera em lagrimoso anseio,
cravando o olhar nos astros sempiternos,
a mãe de Cristo unindo o filho ao seio?

Desprenderia de seus braços ternos
o filho amado? Talvez não!... Dizei-o,
dizei-o vós, ó corações maternos!...



*

Camilo Pessanha (1867-1926) foi uma das figuras máximas do simbolismo em Portugal. Cognominado "o Verlaine português". Exerceu influência sobre os demais poetas de sua geração, como influência, também, exerceu na poesia moderna do país e mesmo no lirismo de Fernando Pessoa.

Em 1894, transferiu-se para Macau, onde lecionou filosofia. Levou vida de solitário excêntrico. Doente dos nervos, foi a Portugal várias vezes, para tratamento de saúde, mas, em 1915, retornou definitivamente para Macau.

Eis o seu soneto "Estátua":

Cansei-me de tentar o teu segredo:
no teu olhar sem cor — frio escalpelo —
o meu olhar quebrei, a debatê-lo,
como a onda na crista de um rochedo.

Segredo de tua alma, e meu degredo
e minha obstinação! Para bebê-lo
fui teu lábio oscular, num pesadelo
por noites de pavor, cheio de medo..

E o meu ósculo ardente, alucinado,
esfriou sobre o mármore correto
desse entreaberto lábio enregelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
severo como um túmulo fechado,
severo como um pélago quieto.



*
  

Augusto Gil (1873-1929) foi poeta fluente, simples e de enorme popularidade, dono de estilo agradável. Poeta lírico dos maiores de seu tempo, em Portugal.

Divulgamos um de seus sonetos, exortação angustiosa:

Ao charco mais escuso e mais imundo
chega uma hora, no correr do dia,
em que um raio de sol, claro e jucundo,
o visita, o alegra e o alumia;

pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
nesta contínua e intérmina agonia,
nem tenho uma hora só dessa alegria
que chega às coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do Destino
a movimentam vossas mãos leais,
num aceno impulsivo e repentino,

sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor, não é um seixo o que esmagais;
olhai, Senhor, que é o coração de um homem!


E acrescentamos outro desse maravilhoso poeta, intitulado "Words, words...

Contam que em pequenino costumava,
ao ver-me num cristal reproduzido,
beijar a própria boca, em que julgava
ver a boca de alguém desconhecido.

Cresci. Amei-A. E tão alheio andava
no sonho por seus olhos promovido,
que, em vez das cartas que Ela me mandava,
eu lia o que trazia no sentido.

Rodou o tempo. Estou doente e velho...
Agora, se me acerco de um espelho,
ó meus cabelos, noto que alvejais...

E as cartas d'Ela, se as releio agora,
só vejo por aquelas linhas fora,
palavras! e palavras. Nada mais!


*

Florbela Espanca (Florbela da Alma Conceição Espanca —já decassílabo sáfico — nome confirmado por Maria Alexandrina, na primeira página de seu livro "A vida ignorada de Florbela Espanca”) nasceu em 1894 e faleceu em 1930. Temperamento intensamente lírico, autora de três livros cheios de originalidade e supimpa inspiração: — “Livro de Mágoas" (1919), "Livro de Soror Saudade” (1923) e Charneca em Flor"; este último, póstumo (1930). Em arte poética, só escreveu sonetos, e todos quase sem paralelo na língua portuguesa.

Poesia que pulsa com o coração. Não é atitude literária, mas o espelho fiel de uma existência marcada e valorizada pelos sentimentos. Não obedece a convenções, nem a hipocrisias. Não é fruto, simplesmente. da imaginação. É o reflexo constante de uma vida conturbada, vida que sempre nos pareceu uma roseira agreste, na qual havia mais espinhos que rosas. Rosas de misteriosos perfumes que afogavam seus grandes sonhos irrealizados. Espinhos que machucavam, mas, também, lhe traziam blandícias estranhas e transfiguradoras. Sua alma era um oceano de sofrimentos, e a poetisa tinha por hábito cultivar, sem o saber, a angústia que a dominava.

Em um ensaio brilhante sobre Florbela, o poeta José Régio, com emotiva sinceridade, escreveu a respeito de seu "dom de manejar as palavras de modo a fazê-las render o máximo de sugestão, de insinuação, de expressão, de relevo"; e falou nos seus sonetos lapidares, "que bem creio ficarão a par dos melhores da língua".

O mais popular soneto de Florbela Espanca é, sem dúvida, 'Maria das Quimeras", uma imagem perfeita de sua alma desiludida:

Maria das Quimeras me chamou
Alguém... Pelos castelos que eu ergui,
pias flores de oiro e azul que a sol teci
numa tela de sonho que estalou.

Maria das Quimeras me ficou;
com elas na minha alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi,
que da minha alma, Alguém, tudo levou!

Maria das Quimeras, que fim deste
às flores de oiro e, azul que a sol bordaste,
aos sonhos tresloucados que fizeste?

Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
 Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras?


Aqui. o soneto "O meu condão", em que Florbela nos mostra um mundo maravilhoso de sentimentalismo:

Quis Deus dar-me o condão de ser sensível
como o diamante à luz que o alumia,
dar-me uma alma fantástica, impossível:
— um bailado de cor e fantasia!

Quis Deus fazer de ti a ambrosia
desta paixão estranha, ardente, incrível!
Erguer em mim o facho inextinguível,
como um cinzel vincando uma agonia!

Quis Deus fazer-me tua... para nada!
— Vãos, os meus braços de crucificada,
inúteis, esses beijos que te dei!

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...
se a um gesto dos teus a sombra esconde
o caminho de estrelas que tracei...


E, agora, o seu soneto “Mistério", banhado, ao mesmo tempo, de pessimismo e de perplexidade diante da Natureza:

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
uma alada canção palpita e ascende,
frases que a nossa boca não aprende,
murmúrios por  caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
fazes passar o lúgubre arrepio
das sensações estranhas, dolorosas...  

Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
o meu corpo matar a fome às rosas!


Sua vida real foi um rosário de fracassos, entremeados de alguns instantes de felicidade. Na alentejana Vila Viçosa nasceu Florbela, filha natural de Antônia Conceição Lobo. O pai era João Maria Espanca, próspero colecionador e vendedor de antiguidades. Antônia, muito pobre, loura e lindíssima, deixou-se raptar por amor; e dessa união espúria, nasceu, além de Florbela, o seu idolatrado irmão Apeles. Ambos foram, compreensivamente, criados por D. Mariana, mulher legítima de João Maria, "que culpa não tinha de  sua esterilidade". Galanteador e boêmio, gozava dos favores de El Rei. A rainha Isabel, pelo menos uma vez, foi à sua casa, aliás deixando Florbela deslumbrada ao contemplar o real vestido azul.

Florbela casou duas vezes no civil e uma no religioso, este em 1925. Maria Alexandrina omite nomes. Sabemos, apenas, que o terceiro marido foi seu próprio médico, o bom samaritano que a acompanhou até o último instante. Florbela o tratava, carinhosamente, por Mado. A raiz de um nascimento frustrado e, talvez, as suas conseqüências, proporcionaram-lhe uma vida irremediavelmente angustiada. "Meiga mas impetuosa, honesta mas sensual, mulher magnífica, cheia de atrativos", foi, mesmo assim, vítima perene de torturas amargas, calúnias, invejas, desgastes físicos e morais, insatisfações inexplicáveis, desesperos sem razão aparente. Abusava dos sedativos, dando a muitos a impressão de que desejava suicidar-se. Mas, Maria Alexandrina é veemente: "Dizem que se matou. Não é verdade. Não era a morte que procurava; era, sim, o esquecimento, o descanso, a volúpia de deixar de ser".

Morreu lúcida, serenamente, depois de sofrer um colapso e um edema pulmonar. Três ilustres médicos, além do marido, deram o diagnóstico: esgotamento e coração cansado. Negaram-lhe a pousada na terra natal. Mas, 34 anos depois, em 1964, seus restos mortais foram trasladados do Cemitério de Sendim (Matosinhos) para mausoléu próprio, no Cemitério de Vila Viçosa.

O soneto "Rústica" pode ser a imagem mais exata de seus anseios irreprimíveis (e admitimos que a autora o tenha feito com o pensamento em sua linda e pobre mãe):

Ser a moça mais linda do povoado,
pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
ver descer sobre o ninho aconchegado
a bênção do Senhor em cada filho...

Um vestido de chita bem lavado,
cheirando a alfazema e a tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
dar às pombas o sol num grão de milho.

Ser pura como a água da cisterna,
ter confiança numa vida eterna
quando descer à "terra da verdade"...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
e todos os meus Reinos de Ansiedade.



*

Fernando Pessoa (1888-1935), um dos mais importantes chefes do Futurismo em Portugal. Seu valor, em vida, foi reconhecido, apenas, pelos limitados círculos da boêmia literária lisboeta. Só começou a ser discutido, mais largamente, depois que publicou o primeiro e único livro, "Mensagem", cuja tônica é uma expressão de nacionalismo místico.

É inegável sua influência sobre as novas gerações de poetas, também no Brasil. Poeta muito original, muito pessoal, escreveu sonetos cheios de angústia e insatisfação, como este, "Súbita mão”:

Súbita mão de algum fantasma oculto
entre as dobras da noite e do meu sono
sacode-me e eu acordo, e no abandono
da noite não enxergo gesto ou vulto.

Mas um terror antigo, que insepulto
trago no coração, como de um trono
desce e se afirma meu senhor e dono
sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente
presa por uma corda de Inconsciente
a qualquer mão noturna que me guia.

Sinto que sou ninguém, salvo uma sombra
de um vulto que não vejo e que me assombra,
e em nada existo como a treva fria.



*

Fausto Guedes Teixeira (1871-1940). Lírico delicado e de requintada inspiração. O tradicional órgão da imprensa portuguesa "O Século" escreveu, a propósito de um de seus livros: “O poeta, em seus versos harmoniosos e cantantes, ergue tão alto a perfeição feminina, que todas as mulheres, ao contrário da heroína de Arvers, gostarão de ver neles descrita a sua própria perfeição".

Oferecemos, dele, este expressivo soneto:

Não há mulher que não tenha um encanto,
todas são belas seja no que for;
a alma, por mais oculta, em qualquer canto
há-de romper, e dar a sua flor.

Mas quando nada dê, temos, no entanto,
em nós, poder de tudo lhe supor,
desde a pureza, se esse amor é santo,
ao mais, se o nosso amor é bem amor.

Entre as surpresas de que nos rodeia
a vida, pode uma alma ser perdida?
criatura de amor, que seja feia?

Sonho que eu vivo, e por que, há tanto, chamo! 
Quem me dera, através da minha vida,
encontrar, afinal, a que eu não amo!...


*

João Batista Pinto Saraiva (1866-1948). Figura de relevo na poesia contemporânea de Portugal. Parnasiano de índole romântica. Poeta, jornalista e político. Foi, também, poeta satírico.

Traçou com inspiração um quadro merencório da vida:

Logo que entrava na taberna, e quando
lhe punham vinho em frente sobre a mesa,
o seu olhar de mágoa e de incerteza
era no chão que se ia concentrando.

Alguém, que um dia o esteve contemplando,
pôde contar à multidão surpresa
que ele cravava os olhos de tristeza
sobre um retrato de mulher, chorando.

A multidão dos magros bebedores
ouvia aquela narração de amores,
indiferente e estúpida, sorrindo...

E o desgraçado a um canto, embriagado,
fitava os olhos no retrato amado,
fitava os olhos e beijava-o, rindo...



*

Eugênio de Castro (1869-1944), poeta pessimista, um dos introdutores do Simbolismo em Portugal. Brilhante imaginação, imensa facilidade de expressão. Personalidade ímpar das letras portuguesas. Descendente de família de literatos que teve origens conhecidas em Sá de Miranda. Era amplamente favorável à poesia obtida à custa de trabalho planejado, artesanal.

O soneto que se segue é dedicado à sua primogênita, "Violante Maria Luisa". Estava longe de supor que a filha viesse a morrer antes dele, como aconteceu:

Acorda cedo como os passarinhos
e vem logo direita à minha cama;
sacode-me com jeito, por mim chama
e abre-me os olhos com os seus dedinhos.

Estremunhado, zango-me. — "Beijinhos,
não quer beijinhos?" — com voz de ouro exclama.
 Da minha ira empalidece a chama,
e, acarinhando-a, pago os seus carinhos.

Senhor! Que amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
dá-lhe a Virtude por amparo e guia!

e destina também, ó Pai celeste,
que a mão com que ela agora me abre os olhos, 
seja a que há-de fecharmos algum dia!


Foi escrito por Eugênio de Castro, também, este belo soneto "Luís":

Não peço para mim! Foram baldadas,
foram vãs minhas súplicas, Senhor!
Eu que um trono sonhei, fiquei pastor
de gado triste em serras escalvadas!

Eu que cegara, moço, vendo ateadas
as chamas da ambição, de astral fulgor,
contemplo agora, em frêmitos de dor,
um montão só de cinzas apagadas.

Não me queixo, e a teus pés todo me humilho!
Mas se mereço um prêmio, porque esteja
tão resignado e dócil como estou,

compensa o pai humilde, erguendo o filho:
o que me negaste, e que ele seja
aquilo que eu quis ser e que não sou!


*


Lopes Vieira (1878-1946), de grande simplicidade. Suas poesias possuem laivos de saudosismo, embora de feição modernista. Conferencista primoroso.

Mencionamos um de seus melhores sonetos, "Linda Inês":

Choram ainda a tua morte escura
aquelas que chorando a memoraram;
as lágrimas choradas não secaram
nos saudosos campos da ternura.

Santa entre as santas pela má ventura,
rainha mais que todas que reinaram;
amada, os teus amores não passaram,
e és sempre bela e viva e loura e pura.

Ó linda, sonha aí, posta em sossego
no teu moimento de alva pedra fina,
como outrora na fonte do Mondego.

Dorme, sombra de graça e de saudade,
colo de garça, amor, moça, menina,
bem-amada por toda a eternidade!

______
Verso 10 — Moimento = monumento em honra de alguém; mausoléu.


*

Teixeira de Pascoais (pseudônimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) — 1878-1952 — Grande temperamento de artista, poeta lírico e prosador de rara inspiração. Na forma, é um romântico que não conseguiu deixar de ser um clássico. A natureza tem papel importante em sua obra. E a poesia possui exuberância verbal.

O seu soneto "A uma ovelha" é magnífico:

Entre as meigas ovelhas pobrezinhas,
que eu guardo, pelos montes, uma existe
que anda, longe, balindo, sempre triste,
e vive só das ervas mais sequinhas.

Que pressentes na alma? que adivinhas?
Etérea voz de dor acaso ouviste?
Que foi que tu, nas nuvens, descobriste?
Não és irmã das outras ovelhinhas!

Sobes às altas fragas escarpadas,
e contemplas o sol que desfalece
e as primeiras estrelas acordadas...

E assim paras, a olhar o céu profundo,
faminta dessa relva, que enverdece
os outeiros e os vales do Outro Mundo.



*


Alice Moderno (1867-1946), poetisa e prosadora, nasceu em Paris, mas foi para os Açores, com 7 ou 8 anos de idade, ali morrendo. Este esclarecimento é do antologista Pedro da Silveira.

"Abelard" é um de seus mais divulgados sonetos:

Cisma um frade na cela úmida e fria,
ao pé de uma janela gradeada;
na sua fronte vasta e calcinada,
fundas rugas traçou a hipocondria.

A luz do seu olhar, tênue e sombria,
traduz uma saudade amargurada;
na amplidão brilha a lua prateada,
a lua, a companheira da agonia!

Abelard fita o éter. De repente,
o seu profundo olhar torna-se ardente,
parece que nos céus alguém divisa...

Geme a brisa do outono entre o arvoredo,
e ele ouve, balbuciando-lhe um segredo,
uma voz semelhante à de Heloísa!


*

Branca de Conta Colaço (1880-1945), poetisa, prosadora, declamadora e conferencista. Figura das mais brilhantes na arte literária de Portugal.

Relembremos o seu formoso soneto "Naquela tarde":

Naquela tarde em que nos encontramos
“para o último adeus" — nas garras frias
 Do “desgosto sem fim" que sempre achamos qualquer separação de poucos dias...

Tarde de amor em que nos apartamos,
presas das mais acerbas nostalgias,
— talvez porque os protestos que trocamos
valessem mil celestes alegrias —,
  
houve um momento — foi um sonho de Arte!
em que um raio de sol veio beijar-te,
com tanto ardor, em rutilâncias tais,

que eu fiquei muda, a olhar, num gozo infindo,
o beijo que te dava o sol tão lindo...
.................................................................
Mas o teu rosto alumiava mais...



*

Nunes Claro (1878-1948). Poeta admirável, de um lirismo cantante e precioso.

Aqui está um dos seus sonetos sentimentais:

Partiste, e a serra idílica do vento,
do mar, das névoas, mais das grandes luas,
manda dizer-te, amor, neste momento,
que, ficou triste, com saudades tuas.

E que, no inverno, enquanto o céu cinzento
tremer nos ramos e chorar nas ruas,
vestirá, com teu lindo pensamento,
as pedras pobres e as roseiras nuas.

E diz mais — que em abril, quando aí saias,
penses, ao ver florir perto as olaias,
naqueles que deixaste sem ninguém,

no sol, nas ervas, no luar, na altura.
— Só não te diz, porque é de pedra dura,
que tu penses, um pouco, em mim também!


*

Cândido Guerreiro (1872-1953). Sonetista de grandes méritos, é de sua lavra o trabalho abaixo transcrito, "Intangível":

No vôo em que me elevo a procurar-te,
mergulho no infinito, e até parece
que um murmúrio de cântico e de prece
me embala e vai comigo em toda a parte.

E toda a sombra má desaparece,
e toda a luz é para iluminar-te,
a música de Deus para cantar-te,
por ti se enflora a terra e o sol aquece.

Por ti, que enches o mundo e não te vejo,
onda incorpórea e hálito disperso,
nuvem de sonho e fogo de desejo!

Por ti, que diluída no universo,
és o dulçor que encontro em cada beijo,
a harmonia que busco em cada verso!...


*

Antônio Correia de Oliveira (1879-1960), consagrado em Portugal e no Brasil, pelos versos simples e inspirados que escreveu. Forma pura e beleza maviosa. Mais conhecido por suas trovas, relicários de doçura e graça. Olegário Mariano disse que "sua poesia consegue o milagre de espelhar a vida tal qual o destino a fez, sem malícia, sem exageros, sem mentira".

Enternecedor, maravilhoso, este soneto "Rivais":

Ó como a primavera madrugou!
Olha esses campos: como vem garrida!
— Maria, vê! Não sejas distraída...
Que belo ,sol e que feliz eu sou!

Tudo desperta em derredor: a vida acorda,
e traz um ar de quem sonhou...
— Mas tu não vês! Que pena, Amor!
passou uma andorinha, e lá se vai, perdida...

Sorris. E cismas... Que desdém o teu!
E eu fui chamar-te: — Vem! Que lindo céu!
É tudo vôo, e canto, e beijo, e graças...

Que louco eu sou! Perdoa, Amor, não era
que tu viesses ver a primavera...
Ela é que fica a ver-te, quando passas!


Fascinante, também, de Correia de Oliveira, é o soneto "que não disseste”:

Ó, como a tua carta é pequenina!
Cabe no cálix vivo de uma flor...
(No entanto, é mais pequeno o claro alvor
que espalha, em roda, a estrela matutina!)

Como é pequena a tua carta, Amor!
E vê: de encontro à sua luz divina,
a saudade, que nela se ilumina,
enche o mundo de sombra, anseio e dor!

Maria. que pequena a tua carta...
Pequena? O sonho lê-me (e não se farta!),
as coisas belas que me não disseste:

tantas e tantas, que, para escrevê-las,
só se as palavras fossem as estrelas,
fosse o papel a imensidão celeste!


*

Virgínia Vitorino (1898-1967), uma das mais populares poetisas de Portugal. Sonetista notável. Alma vibrante e plena de sentimento. Escritora de teatro, professora.

Reproduzimos, a seguir, um lindo soneto de sua autoria:

Não venhas ver-me, não! De que servia?
Nem eu tenho coragem para tanto.
Gostava muito, sim, mas todo o encanto
da tua grande ausência acabaria.

É tornar-te a perder. Num certo dia,
tu partes novamente, e todo o pranto,
ou pouco ou muito — não importa quanto
nunca o compensa uma hora de alegria.

Mas se eu não posso ter outro desejo!
Se eu, não te vendo a ti, nada mais vejo!
Como é que, sendo assim, não te hei-de ver?

Responde-te a minha alma comovida:
— Vale mais ter um mal por toda a vida
do que alcançar um bem para o perder.


*

Julio Dantas (1876-1962), poeta, médico, teatrólogo, contista, romancista, ensaísta. Foi o último dos sonetistas famosos do século XIX nascidos em Portugal. Sua obra poética mais conhecida é a "Ceia dos Cardeais". Escreveu, ainda, outros livros de excepcional valor, entre os quais "Sonetos", de páginas preciosas, líricas, elegantes. Dos poetas portugueses, é um dos mais apreciados no Brasil. Eis o seu célebre soneto "O minuete":

Ao canto do salão, olhos vagos no espaço,
ele em púrpura e ouro, ela empoada à francesa, 
o senhor Cardeal e a senhora Duquesa
assistem, conversando, a um serão do Paço.

Marca Lucas Giovine o solene compasso;
dança o minuete de Haydn a corte e Sua Alteza:
e os dois velhos, lembrando a antiga gentileza
e o tempo em que, amoroso, ele lhe dava o braço,

balbuciam, sorrindo, um tímido segredo,
escondem-se inda mais no biombo, quase a medo, como fugindo à luz da sala enorme e acesa...

E quando um criado vem servir-lhes os gelados
surpreende a dançar, velhinhos e curvados,
o senhor Cardeal e a senhora Duquesa.


Agora, o seu inolvidável soneto "A luva":

Quatro meses depois dessa hora dolorida,
voltei, já resignado e quase sem rancor,
ao ninho onde viveu aquele imenso amor
que foi o grande amor de toda a minha vida.

Compreendi então — quanta imagem querida!
que pode haver encanto e doçura na dor:
um perfume — era o teu — palpitava em redor,
 dormia num sofá uma luva esquecida.

Uma luva e um perfume: é o que resta de ti,
dos beijos que te dei, do inferno que sofri,
do teu mentido amor de juras desleais.

Que fui eu, afinal, na tua vida intensa?
o perfume que voa e em que ninguém mais pensa, 
a luva que se deixa e não se calça mais...


Evoquemos esta página imortal, "Demóstenes":

Em casa de Laís, Demóstenes entrara:
como Atenas inteira, o supremo orador
vinha comprar também, nuns minutos de amor,
o corpo escultural dessa beleza rara.

Quase a possuíra já, de tanto que a sonhara:
e ao ver, gloriosa e nua, em todo o seu esplendor, 
cingido o "stróphion" de ouro aos dois seios em flor, 
essa linda mulher que se vendeu tão cara —

tímido perguntou: —"Um só beijo fugaz,
por quanto o vendes, grega?" E ela, num gesto lento:
— "Conta mil dracmas, velho, e" tu me possuirás!”

— "Quê? Pagar por tanto ouro o beijo de um momento?
Dar mil dracmas por ti? Não, mulher; fica em paz: 
eu não compro tão caro um arrependimento".


Finalmente, oferecemos o soneto "A liga da Duquesa", uma das criações mais conhecidas e apreciadas desse grande poeta que foi Júlio Dantas:


A Senhora Duquesa, uma beleza antiga
de bastão de faiança e de cabelo empoado,
certo dia, ao descer do seu estufim dourado,
sentiu desapertar-se o fecho de uma liga.

Corou, quis apertá-la (ao que o pudor obriga!),
mas voltou-se, olhou... Tinha o capelão ao lado.
 Mais um passo, e perdeu-se o laço desatado,
e rebentou na corte uma tremenda intriga.

Fizeram-se pregões. Marqueses, condes, tudo 
procurava, roçando os calções de veludo
por baixo dos sofás, de joelhos pelo chão...

E quando já ninguém supunha -- que surpresa!
foi-se encontrar por fim a liga da Duquesa
no livro de orações do padre capelão.



*


José Régio (1901-1969). Pseudônimo do Dr. José Maria dos Reis Pereira. Prosador, romancista, ensaísta, crítico, teatrólogo, professor e poeta. Lembra Jânio Quadros que ele foi "o poeta dos dra-mas pessoais, dos problemas e conflitos do homem moderno".

Ostentamos, dele, o soneto "Lázaro":

Por damascos e púrpuras de rei,
despi, lá fora, os meus vestidos velhos;
e, entre o tumulto, as luzes e os espelhos,
insólito conviva, eu me assentei.

Erguendo a taça de cristal, brindei;
quebrei a taça de cristal nos joelhos...
E, apertando nas mãos lírios vermelhos,
ensaiei risos fúteis e cantei.

Assim vós me julgastes um dos vossos.
A mesa do festim me recebeu,
me coroaram de hera em flor os moços.

E, quando toda a orgia adormeceu, só eu!
Só eu me vi roendo os ossos
desse banquete que não era meu!


E, também, "O poeta morto" (biografia):

Barbearam-no e vestiram-no de preto,
calçaram-lhe sapatos de verniz.
Moscas varejas chupam-lhe o nariz,
e ele mantém-se pálido e correto.

Cheira a cera no quarto, já refleto
do que há mais distante no país:
... um general, dois lentes, um juiz...
com ar triste, imbecil, grave e discreto.

Logo, os críticos sérios e carecas
folhearão no pó das bibliotecas
um livro caluniado enquanto vivo

esse a quem chamam hoje ilustre e augusto...
Porque... porque ele, agora, é inofensivo
como qualquer estampa ou qualquer busto.


*

Martinho Nobre de Melo, poeta contemporâneo, nascido em 1890. Escritor. conferencista e diplomata. Durante alguns anos, serviu no Brasil  como Embaixador.

Com prazer. estampamos, a seguir, o seu soneto "Ritmo novo":

Rosas, jasmins, anêmonas e dálias,
florindo nos canteiros, ao luar,
já não vens com as rendas e as sandálias
inebriá-las de sonho ao teu andar.

Já as águas deixaram de cantar
ao ritmo dos teus passos sob as áleas...
As rainhas mágoas (ritmo novo...) embale-as
a saudade de um velho amor sem par! 

Silêncio! Evoco... Ainda, como outrora,
quero perder-me pelos longes fora,
longe da vida, de mim próprio ausente.

E que os teus dedos, flébeis como penas,
venham cerrar-me as pálpebras serenas,
ainda, como outrora, eternamente...

__________
Verso 6 — Com esse sentido, no Brasil se diz "aléia", mas em Portugal há quem diga "álea". Aurélio Buarque de Holanda também registra "álea", em seu Dicionário, mas chama a atenção para a boa forma, "aléia", de acordo a o "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa".



*

Mário Beirão (1892-1962) Excelente poeta. Colaborador assíduo de revistas literárias. Autor de livros de versos brilhantes, cheios de inspiração e lirismo.

Mostramos aos leitores o seu soneto "Enleio":

Quando, no outono, ocasos tristes douram
ruínas que a Esperança veste de heras,
e há fluidos de perdão no olhar das feras,
as almas só existem no que foram:

e quando os céus, proféticos, agouram
verdades que ressurgem de quimeras;
com grinaldas de extintas Primaveras
as mãos da Morte a tua fronte enlouram!

E, pálida, sorris, embevecida;
em teu olhar onde delira o outono
vejo extinguir-se em luz a minha vida!

Por outros mundos a tua alma voa!
E, na saudosa tarde de abandono,
um sorriso de flor nos abençoa.


*
Marta de Mesquita da Câmara, poetisa contemporânea, nascida em 1894. Sonetista lírica, seus versos contêm muita espontaneidade e singeleza.

Apresentamos o seu soneto "Contra-senso":

Ó, meu amor, escuta, estou aqui,
pois o teu coração bem me conhece;
eu sou aquela voz que, em tanta prece
endoideceu, chorou, gemeu por ti!

Sou eu, sou eu que ainda não morri.
Nem a morte me quer, ao que parece,
e vinha renovar, se ainda pudesse,
as horas dolorosas que vivi.

Ó, que insensato e louco é quem se ilude!
Quis fugir, esquecer-te, mas não pude...
Vê lá do que teus olhos são capazes!

Deitando a vista pelo mundo além,
desisto de encontrar na vida um bem
que valha todo o mal que tu me fazes!


*

Américo Durão (1893-1969) Poeta, dramaturgo, Professor e diplomata. Como poeta, distinguiu-se pelo sentido musical das estrofes.

Revelamos um de seus sonetos:

Setembro. Calma. O sol é um grito rubro
Na alegria do céu azul cobalto,
tua musical voz de contralto
cantam manhãs de abril, tardes de outubro...

Vindimas. Sob os pâmpanos descubro
cachos de ouro que ao teu desejo exalto...
Chamo por ti, erguendo as mãos ao alto...
E és, como o sol, um grito rubro!

Vens alegre e vermelha como as brasas,
depois, num vôo, as tuas mãos são asas...  
Ergues um cacho de ouro à boca em sangue.

Solta-se o teu cabelo... Mar de seda!
A bárbara volúpia me embebeda,
e unes a boca à minha boca exangue!


*

Antônio Botto (Antônio Thomaz Botto) nasceu em Portugal e morreu atropelado, no Rio de Janeiro (1902-1959), tendo sido, o corpo transportado para Lisboa. Foi amigo íntimo de Fernando Pessoa.  Considerado um dos iniciadores da poesia moderna em seu país.
Registramos um de seus belos sonetos:

Homem que vens de humanas desventuras,
que te prendes à vida e te enamoras,
que tudo sabes e que tudo ignoras,
vencido herói de todas as loucuras;

te debruças, pálido, nas horas
das tuas infinitas amarguras
e na ambição das coisas mais impuras,
e és grande simplesmente quando choras;

que prometes cumprir e que te esqueces,
que te dás às virtudes e ao pecado,
que te exaltas e cantas e aborreces,

arquiteto do sonho e da ilusão,
ridículo fantoche articulado,
eu sou teu camarada e teu irmão!"



*

João de Barros (1881-1960). Bacharel em Direito, Professor, jornalista e político, tendo ocupado a Pasta dos Negócios Estrangeiros. Tem uma extensa bibliografia, tanto em prosa como em verso, Visitou o Brasil em 1922.

Inserimos um de seus sonetos, "Dúvida":

Este — o soneto da Saudade inquieta,
em que, lembrando as horas de paixão,
pergunta à Musa, o sonho do Poeta,
se ela é fiel à sua adoração...

Este — o ritmo de amor em que, discreta
e oculta e desejosa de ilusão,
minh'alma balbucia a dor secreta
de nunca dominar teu coração...

Este — o soneto do viver profundo,
em que a frase mais pobre é todo um mundo
de incerteza, de mágoa e puro amor...

Vai para ti meu coração veemente...
— Mas tu, Amor, se existes, realmente,
nem mesmo sabes que és o meu Amor!


*

Fernanda de Castro (1900-1994). Viúva do escritor Antônio Ferro. Romancista, conferencista, teatróloga, fixou-se mais pela beleza de sua poesia. Figura entre os mais enternecidos valores do lirismo português de nossa época. Residia em Lisboa.

Oferecemos aos leitores o brinde deste seu soneto "Perdão!":

Aqui me tens, meu Deus, em confissão.
Não roubei. Não matei. Não caluniei.
Mas nem sempre segui a tua lei,
nem sempre fui a irmã do meu irmão.

Não recusei aos outros o meu pão.
Amor, algumas vezes, recusei.
Mas, por tudo o que dei e o que não dei,
eu te peço, meu Deus, o teu perdão.

Perdão para os meus erros conscientes
e para os meus pecados inocentes,
para o mal que já fiz e ainda fizer.

Perdão para esta culpa original,
para este longo e complicado mal:
o crime, sem perdão, de ser mulher.


*

Maria Helena, nascida em Lisboa (1906-1998), começou a escrever aos 4 anos!... A poesia portuguesa feminina de todos tempos forma, com ela, Virgínia Victorino e Florbela Espanca, a trindade de ouro das sonetistas líricas.

Embora também tenha feito literatura infantil e escrito para o teatro, é_ sem dúvida, na poesia, principalmente no soneto, que Maria Helena se destaca e se realiza. Costumava vir ao Brasil, tendo publicado dois livros de parceria com J. G. de Araujo Jorge: "Concerto a 4 mãos" e "De mãos dadas".

O Suplemento Literário ("O Jornal Feminino") dos "Diários Associados", do Brasil, organizou, em 1969, sob a orientação e direção de Elza Marzullo e Edmundo Lys, um Concurso de Sonetos, intitulado "Pela Glória de Florbela", comemorativo do lançamento, em 1919, do volume de estréia de Florbela Espanca, "Livro de Mágoas”. Poderiam concorrer poetas do Brasil e de Portugal.

Maria Helena foi a vencedora entre os concorrentes portugueses. com o 1º lugar e duas menções honrosas; enquanto o autor da presente obra ("O Mundo Maravilhoso do Soneto") foi o vencedor entre os concorrentes brasileiros, conquistando o 1º  lugar e três menções honrosas. Ainda receberam menções honrosas: Marysol Duque Araujo (filha de Murilo Araujo), duas, pelo Brasil; e Maria Alexandrina (grande biógrafa e amiga de Florbela Espanca), Maria Natália Miranda e Isabel Pulquério, do lado de Portugal.

Dessa poetisa, Maria Helena, aplaudimos, carinhosamente, dois belíssimos sonetos: "Transfiguração" e "Apenas sonho..."


"Transfiguração":

Prende nas tuas minhas mãos cansadas
de tanta solidão, de tanto frio;
enche-lhes o amaríssimo vazio
do arrojo de carícias realizadas!

Dá-lhes a cor lustral das madrugadas
dos dias quentes, bárbaros de estio;
despe-as, com devoção, do tom sombrio
de tantas, tantas noites consumadas!

Em seguida, num místico lampejo,
mas no calor ascensional das brasas,
beija os meus dedos trêmulos e vãos,

que, depois do milagre do teu beijo,
eu ficarei, amor, com duas asas
onde Deus colocara duas mãos.


"Apenas sonho...

Na hora magoadíssima do poente
quase apagada já a luz do dia
rezava a tua voz tão docemente,
que nem o mar, o grande mar, ouvia.

Na minha mão, a tua mão ardente;
no meu, o teu olhar que se morria,
e o mar a nossos pés, em tom crescente,
cantando, nem eu sei que litania.

Depois... sei lá que sucedeu depois!
A mesma chama nos prendeu aos dois
e a ambos fustigou, como um açoite.

Nem sei se foi subtil, se foi agreste...
Apenas sei que o beijo que me deste
foi a primeira estrela dessa noite.


*

Noel de Arriaga nasceu na Praia da Aguda, perto do Porto (Portugal), em 19 de dezembro de 1918, tendo-se formado na Faculdade de Direito de Lisboa. Tem-se dedicado à literatura infantil; e é especialista em problemas de turismo. Publicou, entre outros. os seguintes livros de poesia: "Barco sem leme", "A noite é cúmplice", "Pecados breves, breves recados", "A canção que o vento me trouxe". Reside no Rio de Janeiro.

Merece destaque "Deslumbramento":
Quando num labirinto andei perdido,
labirinto de sonhos e esperanças,
uma voz segredava-me ao ouvido:
— "O amor é belo enquanto o não alcanças.

Não tenhas pressa que depressa cansas
do que mais hás-de ter apetecido".
Receoso de colher desesperanças,
não tocava no fruto proibido.

Porém quando a distância se faz perto,
tomando certo quanto fora incerto,
e a cingir-te em meus braços me disponho,

quando da realidade me avizinho
e do sonho me afasto eu adivinho
que a realidade excede o próprio sonho!






(Das páginas 347 a 425 de “O Mundo Maravilhoso do Soneto”, de Vasco de Castro Lima)

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