Ruy Espinheira Filho

Salvador, BA (1942-...)


Soneto do amor e seus sóis
Ruy Espinheira Filho

Eram teus olhos de água, olhos de água
ensombrada de folhas, eram teus
olhos de água marinha, eram teus olhos
de água límpida, ou turva, eram teus olhos 

de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos 

— e eis que teus olhos ainda são, que sempre
outros olhos e os mesmos: o amor
diverso e idêntico no azul do peito 

a amanhecer-me, a moldar-me as
asas de mergulhar no chão profundo
e patas de galgar os altos ventos. 



Soneto do anjo de maio
Ruy Espinheira Filho

Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me 

o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida — e a mágoa desertou-me. 

Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim! 

Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!



Soneto de julho
Ruy Espinheira Filho

É muito tarde para não te amar.
Tudo o que ouço é o sopro do teu nome.
O que sinto é teu corpo, que consome
— presente, ausente — o meu corpo. Luar 

em que me abraso, morro: teu olhar
ofuscando memórias, onde some
um mundo, e outro se ergue. Sede, fome
e esperança. Ah, para não te amar 

é tão tarde que tudo é já distância,
que só respiro este luar que me arde,
este sopro sem praias do teu nome, 

esta pedra em que pulsa e medra a ânsia
e esta aura, enfim, em que me envolve (é tarde!)
o que és — presente, ausente — e me consome.




Soneto do Quintal
Ruy Espinheira Filho
(para Matilde e Mario, 
em Monte Gordo, março de 91)

Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro 

decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro 

de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo, 

um gato. E essas formigas — três — conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.




Soneto da Justificação
Ruy Espinheira Filho

(a Mário Vieira)

Esta noite (ele pensa) justifica
— com seu luar abençoando os ramos
do pé de carambola — os estertores
de que surgiu o Universo. Fica 

tudo, tudo (ele pensa) redimido.
Deuses. Deus. O Acaso. Não importa.
Valeu (eis o milagre em sua porta!)
a pena que custou a gestação 

deste momento. O qual lhe justifica
(ele suspira), enfim, a paciência
de — até chegar a este luar nos ramos — 

ter (calcula) esperado cinco décadas,
sessenta dias e, fechando as contas,
alguns punhados de bilhões de anos.




Soneto noturno
Ruy Espinheira Filho

Penso na noite como um rio profundo
e lembro coisas deste e de outro mundo.
Outros mundos, aliás, que a vida é vasta
como diversa. E mesmo assim não basta,

o que nos faz tecer ainda outras vidas
nas nuvens da alma, e que nos são vividas
com tanta força quanto as outras mais,
em seus sonhos de agora e de jamais

(ou melhor: com mais força, pois estamos
ainda mais vivos no que nos sonhamos).
Penso na noite como um mar sem fim

quebrando sombras sobre o cais de mim.
E, enfim, sem esperanças e sem prece,
pressinto a noite que não amanhece

(este último tirado da ABL)





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