A Alma do Soneto

A poesia é, talvez, de todas as artes, a mais cultivada.
Segundo Baudelaire, pode-se passar três dias sem pão, mas nem um só sem poesia.
É claro, porém, que não se deve confundir a poesia com a roupagem do verso. Pode haver verso sem poesia, como pode haver poesia mesmo na prosa. Quando não há Arte no verso, este é defeituoso, é mau.

O homem nasce com o pendor para a poesia, para a música, para a pintura, para a escultura. Mas a Arte, aprende-se.

São de Alfredo Pimenta estas palavras:
— "Qual a característica específica do verso, isto é, sem a qual não há verso? O ritmo. No verso, o ritmo é a tradução musical do sentimento do poeta. O ritmo é tudo: é a alma do verso".
E mais:
— "Toda a expressão verbal do pensamento é uma expressão musical. A idéia precede a palavra; mas a palavra, a frase, passando através do nosso ouvido, é uma expressão musical".

Diz Paulo Bomfim, autor do livro "Praia de Sonetos":
— "Acho que o ritmo é a respiração do pensamento. O pensamento em cada momento respira diferente. E o soneto é o traje a rigor do pensamento — para certos momentos ele é exato, tão preciso como uma cantata de Bach".

Amorim de Carvalho diz:
— "O verso é a expressão rítmica da linguagem verbal. A poesia nasce de um sentimento de idealidade que nos faz ver as coisas através do aspecto mais ou menos elevado do sobrenatural".

São palavras de Mikel Dufrenne: — "O poeta chama um promontório de pastor, uma mulher de rosa ou céu. O poeta sabe perfeitamente que lhe foi delegado pela Natureza esse poder de nomear, que exerce com prazer, por vezes com orgulho; sabe também que a Natureza quis o poeta porque desejava a linguagem, pois quer que o homem habite o mundo como sua pátria".

A poesia é um bem comum a todos os que sentem, embora cada poeta apresente a sua característica individual.
Para Goethe, a poesia tem de ser rítmica e melódica. Malherbe a considera "suprema forma da beleza". Segundo Carlyle, "é o pensamento musical". Para Álvares de Azevedo, "o fim da poesia é o belo". Jacques Maritain acha que "há poesia em toda arte, talvez mesmo em atividades que nada têm a ver com a arte; em Francisco de Assis, Colombo, Napoleão ou Cagliostro".

Fazer um verso certo não é tudo. Há versos certos que destoam ou desagradam. Também, entre os versos bem feitos, há os que satisfazem mais, há os que satisfazem menos.

Um poema, ou apenas um verso, para agradar, tem de conter algo mais que idéia, estilo e linguagem. Existe no soneto e, de resto, em qualquer composição poética, um fator importantíssimo: é a sua alma!
Envolvendo, espiritualmente, o corpo do soneto, lá está a sua alma. Alma que só esplende se o corpo for materialmente são. Alma que só reluz se contiver um corpo perfeito.

Existe receita para se fazer um soneto que convença, tanto no corpo, como na alma? Não! Mas, existem preceitos a seguir. Existem normas, principalmente de estrutura, que precisam ser respeitadas. É um gênero até certo ponto difícil, não se pode contestar, mas as dificuldades têm de ser superadas.   

Olavo Bilac dá conselhos "A um poeta", evidentemente com os olhos na confecção do soneto:

Longe do estéril turbilhão da rua,
beneditino, escreve! No aconchego
do claustro, na paciência e no sossego,
trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
do esforço; e a trama viva se construa
de tal modo, que a imagem fique nua,
rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
do mestre. E, natural, o efeito agrade,
sem lembrar os andaimes do edifício:

porque a Beleza, gêmea da Verdade,
arte pura, inimiga do artifício,
é a força e a graça na simplicidade.


Se não há receita, pelo menos há certas regras para a construção de um soneto, um poema em que o corpo e a alma se tornem bons aliados.
Cumpre seguir tais regras, frutos de convenções, ou ajustes, ditados pela segurança de uma velha tradição. Frutos colhidos pela diligência, quase ciúme, daqueles que se conservam fiéis à poesia por eles julgada mais autêntica e mais límpida.

É necessário o domínio da arte, para dar vida à inspiração.
Sem arte, o pensamento perde a sua força de vôo. E, sem inspiração, o poema não se desenhará no papel.
Ambas têm de caminhar lado a lado. Nem uma, nem outra, pode sobreviver sozinha.
É o caso do homem cheio de saudades da infância, que Machado de Assis colocou, tão pitorescamente, no seu "Soneto de Natal":

Um homem — era aquela noite amiga
noite cristã, berço do Nazareno — ,
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal, ou mudei eu?"


A inspiração instiga o pensamento. E este adorna o verso, dá-lhe vida, transmite-lhe aquele sopro imaterial, que é a alma aureolando o corpo do poema.
Quem lê um soneto que o satisfaça plenamente, está apreciando, como um todo, a sua parte técnica e, ao mesmo tempo, a sua grande porção de beleza espiritual. Está recebendo uma mensagem completa, onde a forma e a imaginação se juntam como um coro de hinos celestiais transpondo-lhe os ouvidos e dirigindo-se diretamente ao coração.        

A arte tem as suas próprias e misteriosas leis, pois é função da inteligência criadora.
Aliás, cabe, aqui, uma pergunta de Ronald de Carvalho: "Quem poderia discernir, convenientemente, onde acaba a "forma" e onde começa a "imaginação"?







 (Das páginas 109 a 111 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto, de Vasco de Castro Lima)


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